A arte me salvou
Introdução
Este artigo visa discutir os objetos de ‘salvação’ do sujeito, quando adulto. Seus objetos de salvação fazem referência aos objetos secundários, aos quais ele recorre em momentos de intenso sofrimento psíquico. Os objetos secundários do adulto derivam de sua relação com os objetos primários/pais, quando criança. Seus objetos secundários podem ser: humanos - idealizados e pares amorosos - e (i)material-simbólicos - arte, literatura, dança, ciência, esporte, entre outros. Sua relação com os objetos de ‘salvação’ pode ser saudável ou patológica.
A etimologia do conceito de salvação e seu forte cunho religioso dão início a essa reflexão. Recorre-se, a seguir, a conceitos psicanalíticos consolidados - sublimação, criação, sustentação do eu no objeto - com o intuito de examinar esses objetos. Discutem-se suas relações com o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional: constructos hipotéticos oriundos da clínica da autora e do uso do método clínico psicanalítico. Além disso, recortes da história de vida de adultos e suas citações sobre esses objetos permitem apreciar vários ângulos desse tema. E, por fim, ele dialoga com o artigo da autora Os amores do eu adulto, de forma direta.
A palavra salvação tem sua origem no grego soteria, transmitindo a ideia de cura, redenção e resgate. Por outro lado, no latim salvare significa salvar e salus remete à ajuda ou à saúde. A salvação se refere à libertação de um estado ou condição indesejável para o ser humano (Balaniuk, 2014).
No cristianismo, após a queda de Adão e Eva, Deus salva a humanidade por meio da fé em Cristo e da adesão à sua Igreja. Obter a salvação significa ir para o céu, depois da morte. A salvação se contrapõe ao estado de não salvação, do qual a pessoa/humanidade deve ser redimida – dado o pecado original. A salvação conduz o homem à santidade, à felicidade e à vida eterna. A salvação eterna faz referência à salvação da alma, que se livra da condenação eterna. Por outro lado, as igrejas cristãs ortodoxas rejeitam a noção de pecado original e veem a salvação como aperfeiçoamento espiritual e purificação da natureza humana - danificada na queda. No islamismo, enfatiza-se a necessidade de fé e das boas obras para a salvação.
Assim, os incrédulos e os pecadores estão condenados, mas o arrependimento genuíno resulta no perdão de Alá e na entrada ao paraíso, ao morrer. No hinduísmo, a salvação constitui a libertação da alma do ciclo da morte e reencarnação, sendo obtida ao se alcançar a iluminação/nível espiritual mais alto/mokṣa. A salvação constitui a transcendência do fenômeno de existir, de qualquer consciência do tempo, espaço e causa - carma - e, ainda, a dissolução do senso do ser individual ou ego. Sendo assim, o céu e o inferno consistem em ilusões temporárias (Culmann, 2020).
Os objetos (i)material-simbólicos, a criação e a sublimação em psicanálise
O objetos (i)material-simbólicos - arte, literatura, dança, ciência, esporte - tem relação com a criação e a sublimação, estudadas desde a obra freudiana até nossos dias.
Freud (1916) considera que o artista detém a capacidade de exprimir seus impulsos secretos e desconhecidos, inclusive para ele, por meio de sua criação. A criação artística tem relação com a realidade psíquica do artista, seus processos de criação e seu funcionamento psíquico.
Para Freud (1926), a sublimação é o mecanismo de defesa mais sofisticado da vida psíquica. Por meio dela, as pulsões sexuais são canalizadas para um objeto não sexual, que dá lugar às atividades socialmente valorizadas: a arte, a ciência e o esporte. A sublimação liga-se ao desejo ‒ que impulsiona a criação ‒ e ao humor ‒ que diminui o sofrimento psíquico. Ela faculta liberar as pulsões agressivas do superego, que se opõem às pulsões libidinais, promove a transformação das pulsões em criações culturais.
Portanto, a sublimação significava a mudança de meta das pulsões sexuais para atividades sem fim sexual: a criação artística, a investigação intelectual e as atividades valorizadas culturalmente. Porém, o segundo dualismo pulsional levou a um novo entendimento da sublimação, fundado em novas bases metapsicológicas. Dada a tensão entre a pulsão de vida e de morte, a erotização e a sublimação se opõem à destrutividade e à crueldade. A sublimação cria novos objetos para investir a pulsão, ensejando as operações de ligação da pulsão de vida em seu domínio sobre a pulsão de morte.
Em diálogo com a importância da sublimação na vida psíquica e na cultura, a criação tem suscitado vários enfoques.
Nesse âmbito, McDougall (1995) aborda o lugar da violência e da destrutividade na criatividade, considerando a violência como elemento essencial na produção criativa. Fazer arte envolve algum grau de destruição, pois uma nova peça pode ser criada, ao se destruir os materiais necessários para sua produção. Parker (1998) escreve que o trabalho criativo demanda certa agressão. A criatividade não pode ser considerada apenas em termos de realidade interna, pois ao escrever, pintar ou costurar, entra-se numa rede de relações com práticas contemporâneas, historia criativa, materiais, audiências imaginárias e figuras internas. Carvalho (2006) entende que, para criar, o artista tem de manter contato com as pulsões destrutivas do eu. Sua maior ou menor distância dessas pulsões favorece ou prejudica seu equilíbrio psíquico. Por sua vez, Frayse- Pereira (2011) posiciona a arte - expressão do amor e da pulsão de vida - como campo de tensão com a inveja - expressão do ódio e da pulsão de morte. A inveja esteriliza a curiosidade e a criatividade humanas.
Aportes psicanalíticos acerca da sustentação do eu no objeto
Visando pensar a vivência de salvação por meio do apoio em objetos simbólico-imateriais, inicia-se com as concepções de Freud sobre o tema e envereda-se pelas propostas de outros psicanalistas, que dão prosseguimento a elas.
A étayage ou o apoio do eu no objeto de amor foi estudado por Freud em 1905. Contudo, para estudar a ideia de salvação por determinados objetos cabe destacar:
Freud (1914) assinala que os primeiros objetos da criança são a mãe ou sua substituta – pessoas que estão atentas à sua alimentação, seus cuidados e sua proteção. Nessa medida, em sua formação, o eu se apoia e depende dos cuidados dos objetos. Ademais, Freud (1926) ressalta que o desamparo constitui o estado do bebê, em sua dependência completa do outro para satisfazer suas necessidades. Ele influencia a formação do psiquismo, que se organiza graças à relação com o outro. No adulto, o desamparo constitui o paradigma das situações traumáticas. Situações de perda e de separação aumentam a excitação psíquica, que podem engolfar a psique.
Esse estado de coisas faz parte da transmissão da vida psíquica na família. Quanto a isso, Kaës (2005) declara que a família transmite, ao sujeito, configurações de objetos psíquicos - representações, afetos e fantasias - vínculos e relações de objeto.
O eu e seu apoio nos objetos da família
Dada sua herança psíquica, o sujeito fica entrelaçado à cadeia intersubjetiva de sua família. No que tange ao desamparo do bebê e da criança, bem como à sustentação do eu no outro, determinadas representações, afetos e fantasias compõem seus vínculos e suas relações de objeto. Sendo assim, o material psíquico de sua família pode ser de longa data (Almeida, 2021).
Na família - matriz psíquica do sujeito - a sustentação de seu eu no eu dos objetos primários e desses no eu dos antecessores forma um engate transgeracional. A relação do adulto com novos objetos revela-se mais saudável ou mais patológica, mais construtiva ou mais destrutiva, segundo suas vivências na família original. Sendo assim, esse herdeiro elege objetos secundários humanos ou (i) material-simbólicos. Os objetos secundários humanos são objetos idealizados por ele ou seus pares amorosos na vida adulta: namorados/namoradas e maridos/esposas. Os objetos (i)material-simbólicos compreendem: literatura, cinema, pintura, esporte, produção científica ou artística, entre outros (Almeida, 2021).
Na família, o eu rudimentar do bebê - em seu desamparo - busca seu suporte no eu mais organizado dos objetos primários. Contudo, seu desamparo constitutivo se acentua, quando esse cuidado e esse suporte dos objetos primários são precários. Logo, seu desamparo adquire um cunho patológico em virtude das ‘falhas’ dos objetos primários, no sentido de não favorecerem seu autocuidado, seu enfrentamento de situações adversas e a construção de um eu diferenciado do deles. Igualmente, os antecessores dos objetos primários não lhes permitiram desenvolver esses recursos e ter um eu próprio (Almeida, 2021).
No adulto, seu desamparo patológico se delineia como dificuldade de sustentar seu eu em si e mobilizar a força de seu desejo para se tornar o que ele deseja ser. Porquanto, ele não diferencia seu desejo do desejo dos objetos primários. Ao não se apropriar de seu desejo singular, ele não consegue sustentá-lo em si. Dessa forma, ele vem a buscar um objeto secundário humano - namorado/namorada - para suprir essas brechas em seu eu. Contudo, ele tende a ser insaciável quanto aos cuidados exigidos daquele, dadas suas faltas com os objetos primários/pais e secundários humanos anteriores. Em vista disso, ele pode desejar ser salvo por um objeto (i)material-simbólico - literatura, música, entre outros - de forma defensiva contra sua dor. Porém, essa salvação do sujeito pelo objeto (i)material-simbólico falha, de modo considerável. Essa salvação apresenta facetas idealizadas do objeto, que encobrem ser ela parcial, limitada e ilusória: faltante. O discurso do sujeito permite comparar a referida salvação com o restante de informações sobre sua vida.
O desejo, o sistema representacional e o trauma do absoluto
Visando investigar outros aspectos da relação do sujeito com seus objetos, recorre-se a três operadores teóricos - ligados à clínica psicanalítica.
O desejo configura-se como uma ampla gama de representações e de afetos, que ordena as forças psíquicas do sujeito. Potencialmente, ele estimula movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação. Enquanto vetor de orientação desses movimentos, ele visa se consolidar no mundo. Em sua formação, vivências parentais e ancestrais marcam o sujeito e seu desejo.
O sistema das representações constitui uma formação psíquica, que representa impulsos, relações de objeto e estados mentais. Na criança, esse sistema se liga ao sistema dos objetos primários e ao seu desejo. Em sua vida adulta, seu desejo se realiza de modo ‘fluido’ ou se paralisa, com base nesse material psíquico herdado de seus ancestrais. Portanto, a étayage do eu do sujeito no eu de seus pais e, destes, no de seus genitores aciona diferentes gerações. Nessa esteira geracional, o potencial representativo desse sistema pode ser alterado sob a influência do trauma do absoluto.
O trauma do absoluto nomeia um sofrimento psíquico intenso em pacientes. Caracteriza-se por representações sobre-investidas por ódio e horror: ser abandonado, desamparado, rejeitado, não-amado, perdedor, devedor, invulnerável ao amor, sofredor eterno, para sempre, sem lugar no mundo, impossível, intransponível, imutável, entre outras. O sobreinvestimento refere-se ao intenso aporte de ódio e horror, que as acompanha. Essas representações e esses afetos - ódio e horror - são antagônicos ao desejo do sujeito. Em contraposição a isso, ser amado, ser competente, ser inteligente, ser autossustentado, ser reconhecido, ter valor, ter méritos pessoais - investidas por amor – são harmônicas com a realização de seu desejo (Almeida, 2003).
O desejo, o sistema das representações e o trauma do absoluto estão interligados aos objetos de salvação do eu e à clínica psicanalítica.
O campo das vivências de salvação do sujeito pelos objetos (i)material-simbólicos
Nas próximas subseções sobre a salvação do eu mediante objetos (i)material-simbólicos, recortes da história de vida de adultos e suas citações sobre seus objetos de salvação garantem densidade humana à pesquisa. Dentre eles, há pessoas famosas ou anônimas, de várias classes socioeconômicas e com experiências de vida diversas. As subseções são: literatura, música, dança, teatro e esporte.
Nesses relatos, o uso de itálicos visa destacar citações específicas das pessoas sobre eles. Essas citações fazem parte de seu discurso e são relatadas entre aspas. Os colchetes suprimem trechos irrelevantes do relato - para a presente investigação. O uso do travessão visa deixar o relato mais claro para o leitor. E, mais, a seleção de textos em português e inglês levou em consideração aspectos biográficos detalhados, que incluíam referências ao passado e ao presente das pessoas.
A ‘salvação’ pela literatura
‘Quando eu era criança, quando eu era adolescente, os livros me salvaram do desespero: me convenceram de que a cultura era o mais alto dos valores’. ‘Eu sou muito gulosa. Eu quero tudo da vida, quero ser mulher e ser homem’. Simone Beauvoir
Simone era filha de descendentes de famílias tradicionais decadentes. Seu pai era advogado e ex-membro da aristocracia francesa, enquanto a mãe era membro da alta burguesia francesa. Ela foi uma criança atraente, mas mimada, exigindo ter tudo o que queria, sendo o centro das atenções da família. Ao crescer, ela tinha uma única amiga: a irmã. Em 1909, seu avô materno faliu e deixou sua família na desonra e pobreza. Seu pai não recebeu o dote e eles foram para um apartamento menor. Ele voltou ao trabalho, que não o agradava. O casal tentou manter o lugar na alta burguesia, durante a infância das filhas. Ela sempre teve consciência de que seu pai desejava ter um filho. Ele dizia frequentemente: ‘Vocês nunca se vão casar, porque não terão nenhum dote’ e ‘Simone pensa como um homem!’ Isso a agradava muito e ela sempre se distinguiu nos estudos. Ele acreditava que somente o sucesso acadêmico poda tirá-las da pobreza. Ela se tornou uma adolescente desajeitada, dedicada completamente aos livros e à cultura. Ela e a irmã foram para uma escola católica. Sua mãe, que ela considerava uma intrusa espiando seus movimentos, sentava-se atrás delas. Figura emblemática do feminismo e da luta pela igualdade entre os sexos, Simone pregava a independência feminina, o comportamento das mulheres devia ser exatamente como o dos homens e criticava casamento e filhos. O relacionamento aberto com Sartre - fruto de um acordo no plano racional - produziu conflitos emocionais (Seymour-Jones, 2014).
Luiz A. M: ‘Quando fui preso, [] eu passava a carta a limpo pra enviar à minha mãe. [] eram relatos íntimos com minha mãe. [] Eu estava f... na cadeia, condenado a cento e trinta e dois anos, com vinte e dois anos de idade. [] fugi de casa com onze ou doze anos []. Fui entrando na cultura do crime []. Eu fugia da Febem com os moleques []. Nós estourávamos vitrines, apropriando de bolsas, [] nós dominávamos. A polícia [] pegava todo nosso dinheiro, soltava a gente e roubávamos mais. Minha vida de moleque foi essa, até os dezoito anos. Aos dezoito, já era considerado bandido. Estávamos armados e queríamos assaltar, queríamos dinheiro, vingar! Éramos pendurados no pau-de-arara com quatorze anos, a polícia batia na gente. [] eles queriam extorquir. Quanto à prisão, ‘tenho que ajoelhar e agradecer. Tive que passar por tudo aquilo, me f... na vida, ser massacrado, pra eu [...] rolar minha lógica, minha razão. Eu era louco de tudo. Eu digo sempre que os livros me salvaram, salvam até hoje []. Aliás, não foram os livros que me salvaram, foram as pessoas que me trouxeram os livros [].
‘Eu fui o primeiro colocado no vestibular da PUC. [] Minha mãe estava na entrada da PUC, nos agarramos e choramos. Foi um momento especial pra minha mãe, [] finalmente dei uma satisfação pra ela. Ela me visitou por vinte anos, só parou de me visitar quando teve um derrame. Um mês antes de morrer, ela [] se arrastou duas horas na cadeia pra chegar até mim. [] Eu queria dar uma satisfação pra minha mãe, ela não tinha nenhum triunfo pra falar do filho pros outros. A pessoa que mais amei no mundo foi minha maior vítima. [] a única satisfação [] na vida é escrever. Quando escrevo um texto bonito, lógico, que acredito e gosto, me sinto feliz. Só nesse momento, sou feliz’.
Luciana L. B: ‘Minha mãe separou-se do meu pai quando eu beirava os dois anos. Outra vida, outro marido, novos filhos... Não tardou para que eu ficasse de lado. Fui transformada em babá dos meus irmãos. [] eu não me sentia integrante da família. Era uma miniempregada da casa e cuidadora de meus irmãos. Aprendi a ler muito cedo, praticamente sozinha. Eu amava contos de fada e minha mãe não tinha paciência pra lê-los pra mim. [] sempre fui uma criança solitária, por isso fui ler. [] ‘meus amigos’ eram livros [] que me salvaram da solidão, da depressão e da vida infeliz. Hoje, sou doutoranda em Linguística na Unicamp, publiquei dois livros com outros pesquisadores e vários artigos []. Jamais achei que fosse ser alguém, tive muita dificuldade pra estudar. Cursei o supletivo. Fiz mestrado. Fui virando gente aos poucos, porque os traumas e a depressão me corroeram por dentro. Mas segui devagar e sempre...
A ‘salvação’ pela música
Slash: ‘A música me salvou. Eu acredito que a música pode ter um impacto muito positivo na vida das pessoas e no jeito como elas se sentem. Ela me livrou de uma série de problemas que poderiam ter acontecido na minha vida’.
Slash nasceu numa área nobre de Londres, filho de uma figurinista afro-americana e de um desenhista inglês. Nos primeiros anos, ele foi criado pelo pai e avós paternos. Seu pai e seu avô tinham graves discussões, dada a relação de seu pai com uma mulher negra. Aos cinco anos, ambos juntaram-se a sua mãe em Los Angeles, onde ela era muito bem-sucedida, trabalhando com David Bowie e outros. Dados seus contatos musicais, seu pai tornou-se um popular criador de capas de discos. Assim, Slash conheceu diversos astros do rock na infância, essencial em sua formação artística. Apesar da boa situação financeira, seus pais se divorciaram devido à distância entre eles – dado o trabalho da mãe – ao ressentimento do pai com o sucesso dela e sua reprovação à criação das crianças pela sogra. Assim, ele e o irmão foram morar com a mãe, que viajava a trabalho, passando longo tempo com a avó materna. Seu pai teve vários distúrbios emocionais e um grave problema de alcoolismo. Assim, ele raramente o viu após o divórcio. A separação dos pais levou-o a ser uma ‘criança problema’. Sua rebeldia provocou sua expulsão de escolas e ele furtou roupas, discos e cobras.
Ele se casou com uma modelo e atriz. A relação foi conturbada, por ele estar sempre viajando com o Guns N' Roses, por ser infiel e pelo ressentimento dela por sua carreira não ter o sucesso desejado. Eles se divorciaram e nunca mais se viram. Após o divórcio, ele teve um longo relacionamento com outra mulher e se casaram. Ele pediu o divórcio, mas considerou sua ação como precipitada e impensada. Casaram-se novamente, mas se divorciaram - após rumores de ele ter voltado com a ex-namorada. Ele começou a fumar cigarros e a ingerir álcool com doze anos; sem uma alta dose de heroína, ele não conseguia tocar guitarra direito, sendo afetado profissionalmente. Teve uma grave overdose com heroína, crack e cocaína e uma parada cardiorrespiratória, mas se recuperou e prosseguiu com a turnê. Nos últimos anos no Guns N' Roses, ingeria mais de três garrafas de vodca por dia. Quando se dedicou a um projeto pessoal, sua dependência de álcool afetou seu desempenho musical e ele teve um ataque cardíaco. Com um desfibrilador no coração e fisioterapia, ele voltou a se apresentar. Sua mãe morreu de câncer de pulmão, mas ele continuou fumando cigarros.
Filho de pai fotógrafo e mãe apaixonada por música, Johnny Hooker afirma: ‘A arte me salvou, se não fosse por ela eu já estaria morto, embaixo do chão. Ela me faz ressignificar tudo, move o mundo para frente. [] comecei a brincar de compor, a colocar minhas angústias e revoltas na música. A música acabou me salvando no decorrer do tempo, me ajudou a suportar viver. Como tive o privilégio de ser criado em um ambiente onde a homossexualidade sempre foi muito respeitada e celebrada, eu não tenho medo de assumir o que sou. Gritar, cantar, escrever e produzir com certeza me ajudou a lidar com os meus demônios e curar minhas feridas. O que me salvou mesmo foi a minha arte’.
Lady Gaga aprendeu a tocar piano aos quatro anos, escreveu sua primeira canção aos treze e aos quatorze, cantava em casas noturnas. ‘Fui uma aluna muito dedicada, estudiosa e disciplinada, mas um pouco insegura. Eu ouvia brincadeiras por ser provocativa e excêntrica, então comecei a baixar o tom. Eu não me encaixava e me sentia uma estranha’. Aos dezessete anos, ela foi admitida na Tisch School of Arts, onde estudou música e melhorou suas habilidades de composição. No segundo ano, saiu da escola para focar-se em sua carreira musical. Seu pai pagou seu aluguel por um ano, sob a condição de que ela se rematriculasse na Tisch, caso fosse mal-sucedida. ‘Eu abandonei a minha família, consegui o apartamento mais barato e me dei mal até que alguém me ouvisse’. Ela foi estuprada aos 19 anos e tem transtorno de stress pós-traumático, devido a isso. ‘Ele me deixou grávida numa esquina da casa de meus pais, porque eu estava vomitando e doente. Fui abusada num estúdio por meses’.
Lady Gaga utiliza roupas exóticas em apresentações e outras ocasiões. ‘É como eu lido com minha insanidade. Desde pequena, escuto vozes e durante um bom tempo, eu bebi e usei muitas drogas. Foram as roupas e a arte que me salvaram. Ela foi bastante revoltada na adolescência. ‘Eu respeitava muito meus pais, mas eu era como uma granada sem o pino. Eu só queria sair de casa. Queria ir pra fora, fazer música. E quando eu não conseguia fazer isso, eu pirava e isso pirava meus pais. Sinto-me protegida pela arte. Sinto que a arte me salvou durante toda a minha vida’. Ela teve problemas com gerentes e assistentes: ‘Você não pode confiar em todo mundo, você pode confiar em sua família; pessoas que eu tinha certeza que eram meus amigos, não eram. As pessoas tiram vantagens dos artistas, é de arrebentar o coração. Eu não mais queria cantar mais, eu estava tão triste, me sentia morta. Então, eu passei um longo tempo com Tony Bennett, ele só queria minha amizade, minha voz. Eu digo a Tony que ele salvou minha vida, convencendo-me a continuar cantando’.
A ‘salvação’ pela dança
‘A dança me salvou e me reergueu!’ Samuel G. garante que a arte é fundamental em sua vida. O dançarino de break conheceu a dança através de um projeto social em 2010. Sua vida virou de ponta-cabeça quando descobriu um câncer na perna esquerda, aos dez anos. Aos catorze, teve a perna amputada e, dois meses depois, ele passou a levar a sério os treinos de break []. Em 2015, viveu uma crise por ter dificuldade em aceitar a amputação. ‘A ficha não caía que estaria sem uma perna pra sempre, precisei juntar forças pra superar isso e evoluir’. Ele já visitou vinte países e foi convidado para integrar um grupo internacional de dançarinos com limitação motora. Ele alcançou visibilidade depois de postar vídeos no Instagram. ‘Eu teria uma vida triste sem a dança e ela [] me deu esperança no momento mais difícil da minha vida’. Ele se apresentou nos Jogos Olímpicos do Rio 2016, passou a trabalhar com a dança e fez sua primeira viagem internacional []. Hoje, ele vive da dança, viaja pelo mundo e em 2020 participou do filme A dançarina Imperfeita. Sua mãe tem grande importância na sua trajetória e é fã de seu trabalho. Ele se sente muito feliz por poder retribuir a ela.
Melissa F: ‘Cresci em Cape Code. Meu corpo era forte, resiliente e eu me sentia confiante. Na primeira década da minha vida, minha mãe - feminista e psicoterapeuta clínica - me protegeu das lições obscuras da nossa cultura quanto ao corpo feminino. Aos doze anos, meu corpo precocemente desenvolvido trouxe-me a reputação de promiscuidade, antes de meu primeiro beijo. Transformar-se, de repente, de criança em algo tanto desejado quanto agredido era confuso. Meu corpo tinha [] um único poder: atrair homens. Era um poder instável: se eu dissesse sim ou não, eu me tornava sem valor e sob o risco da humilhação. Deixei que garotos mais velhos me tocassem e a punição foi um ano de implacável assédio. Entregar meu corpo foi desastroso. A primeira vez que eu dancei foi na escola aos doze; num momento, eu estava dançando com um amigo e no próximo, eu estava rodeada por vários garotos, se aproximando. Eu fiquei muito envergonhada, parei de dançar e não dancei de novo por dez anos. Dançar era uma nova maneira de entregar meu corpo. Eu precisava estar no controle dele. Cultivei uma máscara estoica, mas estava em conflito. Por natureza, tenho prazer com o físico, sou forte, sexuada e extrovertida, mas a vida me ensinou que eu era vulnerável, grande e humilhada. As drogas foram a ferramenta efetiva pra me distanciar da minha forma física. Elas me permitiam controlar como eu me sentia. Em Nova York, eu dancei [] e foi a coisa mais próxima da felicidade. Os narcóticos separam você da dor, mas não te tornam mais feliz; eu podia controlar como eu me sentia, ao nada sentir. A droga me ajudou a me sentir melhor naquele tempo obscuro, mas não me curou. [] Na minha nova vida sóbria, eu fui dançar sem qualquer droga. Enquanto eu percorria o espaço da balada, senti a batida ressoando nos meus pés e senti que eu estava viva. Agora, meu corpo era meu. Senti como uma redenção e não vou mais parar de dançar’.
Uma garota anônima: ‘ Eu batalhei com minha saúde mental por longo tempo, pois fui derrubada pelo bullying e não me via me reerguendo. O bullying diminuiu minha confiança e me senti desvalorizada. No final do nono ano, eu me associei ao clube de dança da escola. [] a dança me deu um foco: eu podia deixar fluir e me expressar. Meu amor pela dança aumentou [], me ajudando a superar a batalha comigo mesma. Eu me senti no controle de meus sentimentos e em conexão comigo mesma. Pude comunicar como eu estava me sentindo e aceitar ajuda. Isso mudou minha perspectiva sobre a vida e permitiu-me ver um futuro mais claro, que aprecio bastante’.
A ‘salvação’ pelo teatro
Leonardo C. atua na série Sintonia da Netflix, mas foi condenado por roubo de carro em 2014 e passou quatro anos numa cela []. Seu remorso se misturava com o julgamento dos parentes pelo crime. Porém, a cadeia despertou sua vocação para as artes. Ele começou a escrever livros, letras de música e a tocar violão para expressar as emoções, até descobrir o teatro. ‘As aulas me deram mais sabedoria, maturidade e foco, porque a cadeia é um mundo sem luz que não te dá direção. Eu sentia a liberdade no palco, podia ser eu sem me preocupar em ser criticado por colocar o melhor de mim pra fora. Na cela, você tem que ser reservado [],é um ambiente de ódio, tristeza, sofrimento e abandono. Teatro é a vida lá dentro e salvou a minha. É um pequeno brilho de luz’.
Quando adolescente, a atriz Marianna A. usava óculos fundo de garrafa, tinha acne [] e era extremamente tímida. ‘O teatro me salvou. Sempre quis chamar a atenção pelo meu lado cômico. Hoje, se eu fosse adolescente seria outra coisa. Hoje, tem informação, tecnologia, produtos, empoderamento, autoestima. Antes, tinha um padrão muito estabelecido de beleza. []. O mundo fechava portas e o teatro me abria outras e janelas. Ele me ajudou a encontrar um lugar que me fazia bem, me fazia bem estar com pessoas no palco. Por mais que fosse me expor, eu me sentia acolhida, abraçada’.
Um dos momentos mais difíceis da vida de M. Mion foi quando o irmão mais velho caiu do vão livre do Masp, enquanto festejava sua aprovação na Medicina USP. Essa perda lhe causou uma depressão profunda. ‘[] meu irmão de 18 anos tinha acabado de entrar na faculdade. [] eu simplesmente não fazia nada, nada. Não conseguia sair do quarto. Engordei mais de 20 quilos. Minha mãe falou: eu matriculei você em uma escola de teatro e é isso que você vai fazer, porque está dentro de você e vai te tirar dessa situação. ‘Quando eu falo tanto da arte é porque a arte me deu a vida. Eu gostei desde o primeiro dia, pois quando entrei ali, eu podia ser outra pessoa. Eu podia esquecer o que eu era, o que estava passando e podia dar vida a qualquer personagem []. Eu podia rir de novo e fazer os outros darem risada. Foi aí que a vida foi voltando pra dentro de mim. O teatro, a arte e a entrega pra essas outras vidas me tirou da depressão, me salvou e me pôs pra vida de novo, onde eu voltei a me encontrar’.
A ‘salvação’ pelo esporte
Neide S. S.: ‘Quando eu tinha seis anos, meu pai saiu atrás de ouro e não voltou. Minha mãe ficou sozinha com três filhos e nos entregou para adoção. Assim, vim pra São Paulo pra uma oficina de costura [], apenas trabalhava’. A oficina foi denunciada e, aos onze anos, ela foi adotada por outra família, começou a estudar e sonhar em ser medalhista olímpica. ‘Tinha condições pra isso, mas três anos depois, minha mãe biológica apareceu com cinco filhos e eu fui ser mãe dos meus irmãos’. Ela parou de estudar, mas continuou correndo nas corridas de rua de São Paulo. ‘Meu sonho olímpico ficou em algum lugar da minha memória e o esporte continuou na minha vida’. Em 1980, seu marido foi assassinado e ela ficou com o filho para criar. Na década seguinte, ela e as mulheres da comunidade criaram um grupo de corredoras. Em 2000, seu filho foi assassinado. ‘Perdi meu filho. Aí nasceu o Projeto Vida Corrida pra mudar a vida das crianças’. Nos primeiros dez anos, ela buscou o apoio de várias marcas esportivas, sem sucesso. [] Hoje, o projeto tem contrato com a Nike. Há vinte anos, ela transforma a vida de moradores do Capão Redondo. ‘O esporte muda vidas. Eu tinha tudo pra dar errado, mas o esporte salvou minha vida e de outras pessoas’.
Elizabete C. R.: ‘ Eu era uma criança hiperativa com problemas de comportamento []. [] o atletismo é meu ponto de equilíbrio na vida, [] passei a sonhar que seria uma atleta. [] nós tínhamos uma situação de vida precária, eu comia na escola e o treinador P. sempre trazia algo pra eu comer após os treinos. [] o atletismo me deu força e esperança de algo melhor []. Melhorei na escola, fiquei mais calma e comecei a sonhar com faculdade, porque P. enfatizava a importância de estudar []. Com quinze anos, fiquei grávida, achei que meu mundo tinha acabado, que eu teria que parar tudo [] e trabalhar. [] Continuei treinando até os cinco meses de gestação. Meu maior incentivador foi P., me buscava em casa pra treinar. Ele dizia que eu podia mudar minha vida e do meu filho e que parar não adiantaria. Eu estava sozinha []. N. nasceu [], minha mãe foi o anjo da minha vida, [] disse que eu ia terminar a escola e voltar a treinar, ela ia me ajudar. [] Sonho olímpico era muito forte, mas tive que trabalhar; surgiu a bolsa na faculdade e tive que optar. N. [] foi a maior bênção da minha vida! [] tudo que não pude ter, faço por ela, ela é doce e incrível, escolheu o esporte que amo, que salvou minha vida e me dá motivo para não desistir. Em 2020, foi a melhor atleta do Campeonato Estadual sub-16. N. em competição é uma leoa, [] tem garra e o poder incrível de se refazer, que admiro muito. Ela faz os saltos [] vai lá e resolve. É um orgulho ver que ela [] vai continuar o nome da nossa família []’.
Glaucio G: ‘A luta salvou minha vida’. Hoje, ele é professor de boxe numa academia e organiza um projeto esportivo para jovens carentes []. Ele descobriu o esporte na cadeia [] e encontrou no ringue a porta de saída do mundo do crime. ‘Quando saí, recebi mensagens para voltar ao crime, mas não aceitei. A luta me fortaleceu’. Inicialmente, trabalhou como faxineiro na academia e treinava nas horas vagas. Depois, a academia custeou seus estudos para ele se graduar como professor de boxe. Segundo o juiz Rafael Estrela: ‘O esporte contribui para diminuir a agressividade e a luta pode tornar o ser humano menos violento, pois prioriza disciplina e autocontrole. Ele exercita o respeito ao adversário, aos colegas mais graduados e às regras do bom combate’.
Discussão
Nesta seção, a ‘salvação’ pela literatura, música, dança, teatro e esporte é discutida nessa sequência. As hipóteses acerca das representações dos sujeitos apresentam limitações, visto não terem sido coletadas numa análise.
No universo de literatura, a personificação atribuída aos livros por Simone de Beauvoir - salvação do desespero e poder de convencimento de que a cultura era o mais alto dos valores - associa-se à grande valorização paterna dos livros e à sua crença de que somente o sucesso acadêmico podia tirar as filhas da pobreza. Porém, essa grande feminista - defensora da igualdade entre os sexos - desconsidera as diferenças entre os gêneros e entre as mulheres, ao defender que seu comportamento devia ser igual ao dos homens. Sua crítica aos valores burgueses como o casamento e sua recusa ao pedido de casamento de Sartre se associa à previsão paterna de que as filhas nunca iriam casar. Além disso, seu relacionamento aberto com ele gerou muitos conflitos emocionais nela. Segundo Luiz A.M., ‘os livros me salvaram e me salvam até hoje; os livros não me salvaram, foram as pessoas que me trouxeram os livros’. Apesar do amor e do sacrifício de sua mãe, ‘a única satisfação na vida é escrever, quando escrevo um texto bonito e lógico, eu me sinto feliz, só nesse momento, sou feliz. De modo diferenciado dos demais, ele atribui ser salvo às pessoas e não aos livros. Contudo, o pronome possessivo minha está ausente em ‘única satisfação’ e seu eu está ausente na frase. Ademais, a beleza da lógica esconde a falta de contato com suas emoções – culpa, depreciação/desprezo e ódio a si, por ter vitimado a mãe: ‘sou um fdp, sou um fdp e sou um angustiado’. Para Luciana L. B., ser salva pelos livros-amigos teriam permitido superar ser solitária, ser depressiva e ser infeliz. Contudo, ‘jamais achei que fosse ser alguém’ e ‘fui virando gente aos poucos’ revelam suas representações de ser subhumana e ser inferior aos demais - resgatados por meio de ser gente, alicerçada em – seus progresso e sucesso na vida escolar e acadêmica. Enfim, nos três autores, a salvação pelos livros é engrandecida, limitada e de cunho racional (Almeida, 2021).
No campo da música, ainda que Slash diga que a música o salvou de uma série de problemas, parece que ele se refere a ter parado de furtar roupas, discos e cobras. Porém, seu sofrimento com seus pais foi reeditado em sua vida adulta. Seus pais se aproximaram e se distanciaram um do outro várias vezes, desde a concepção de Slash, sua criação pelo pai e avós paternos, a traição de seu pai à sua mãe, a união dele e de seu pai à sua esposa/mãe até o divórcio do casal. Ele repete isso com as esposas, pois há idas e vindas em sua segunda relação, junto com sua traição à esposa. Além disso, tal como seu pai tinha inveja do sucesso da esposa, também sua primeira esposa tinha inveja de seu sucesso. Assim como seu pai foi bastante dependente de álcool, ele também o é. Portanto, a referida salvação é bastante restrita.
Quanto a Johnny Hooker, a arte o teria salvado da morte física – ‘ se não fosse por ela, eu já estaria morto e embaixo do chão’. ‘A arte me faz ressignificar tudo’, mas ele precisa ‘colocar minhas angústias e revoltas na música’. ‘A música me salvou e me ajudou a suportar viver’ permite pensar que há aspectos mortos em sua psique, embora ser homossexual tenha sido celebrado e ele possa ser autêntico. ‘Gritar, ser escritor e ser criativo/ser produtivo me ajudam a lidar com meus demônios e feridas’ suscita a hipótese de que ele sofreu com os pais e os outros. Não obstante reiterar novamente que ‘o que me salvou mesmo foi a minha arte’, suas angústias, revoltas, demônios e feridas denotam que ser salvo pela arte é parcial e idealizado (Almeida, 2021).
A despeito de Lady Gaga ser muito bem-sucedida no mundo da música e da arte, os abusos sexuais sofridos por ela produziram um trauma: ser abandonada, ser abusada e ser passiva. Em face disso, as roupas exóticas ‘me ajudam a lidar com minha insanidade’, ‘as roupas e a arte me salvaram’. Porém, sua grande revolta na adolescência - ‘como uma granada sem pino prestes a explodir’ envolveu ser reprimida pelos pais quanto a seu desejo de sair de casa. Seu conflito incluiu: ser respeitosa e ser confrontadora, ser obediente e ser independente, ser sã e ser louca. Ser protegida e ser salva pela arte durante toda a vida são confrontadas pelas vivências pontuais de ser insana, ser decepcionada, ser traída, ser lesada e ser roubada pelos supostos amigos/funcionários. Reativando o trauma do estupro, seu sistema representacional foi desorganizado de novo: ‘fiquei tão triste que não queria cantar mais e me senti morta’. Tão somente um grande cantor - homem que não quis tomar nada dela - salvou sua vida, reavivando seu dom/desejo de continuar cantando (Almeida, 2021).
No terreno da dança, Samuel G. diz que a dança o salvou, em face de várias perdas e lhe permitiu realizar o sonho de viajar pelo mundo. E sua experiência vivificante com a mãe o torna muito feliz, ao retribuir o que ela fez por ele. De acordo com Melissa F. até os 10 anos, seu corpo forte e resiliente ligava-se a ela ser autoconfiante e ser protegida pela mãe. Aos 12 anos, seu corpo suscitou ser atraente, ser traumatizada e ficar envergonhada. Ter prazer com o corpo, ser extrovertida e ser sexuada foram reprimidos e contrapostos por ser vulnerável, ser atraente, ser humilhada, ser dependente de drogas até que ser livre delas, ter prazer com seu corpo e com a dança foram associados a estar viva. Nesse processo, ser desvalorizada e ser punida deram lugar a ser redimida. Uma garota anônima fala de sua batalha para manter sua saúde mental, devido ao bullying, que minou ser autoconfiante e ter valor. Finalmente, por meio da dança, ela conseguiu ser fluida, ser expressiva, ser bem-sucedida, ser conectada consigo mesma e ser comunicativa (Almeida, 2021).
No espaço do teatro, para Leonardo C., ser sábio, ser maduro e ser focado ressignificaram estar preso e estar desorientado em um mundo escuro. Ser livre, ser autêntico e oferecer o melhor de si imperaram sobre ser criticado. E mais, ser reprimido, ser triste, ser sofrido e ser abandonado foram confrontadas por estar vivo e estar cheio de vida. Quanto a Marianna A., ser quatro olhos, ser feia e ser tímida deram lugar a ser empoderada, ter autoestima, ser comunicativa, ser acolhida, ser abraçada pelos outros. A fala de M. Mion sobre ‘a arte me deu a vida’ parece aludir a ele ser gerado pela arte, que se mescla à sua mãe. Sentir-se morto - como o irmão - foi elaborado mediante ser outra pessoa, dar vida aos personagens, a vida dentro de mim e ser colocado para a vida de novo (Almeida, 2021).
No mundo dos esportes, Neide S. S. superou ser desamparada e ser abandonada pelos pais, ser a mãe dos irmãos abandonados pela mãe e ser perdedora com relação ao marido e ao filho mortos. Passou a ser a ganhadora de prêmios, ser guerreira, ser a geradora de um projeto esportivo e ser a transformadora de outras vidas. Elizabete C. R. mudou de ser hiperativa, ser malcomportada na infância, ser abandonada pelo namorado na adolescência, para ser resgatada e ser incentivada pelo treinador, ser apoiada pela mãe-anjo, ser atleta, ser realizada, ser orgulhosa e ser admiradora do sucesso da filha-benção e perpetuadora do nome da família. Glaucio G passou de ser preso e ser fortalecido pelo boxe para ser disciplinado, ser autocontrolado, ser agente de seu sucesso e ser bem-sucedido (Almeida, 2021).
Considerações finais
Em se considerando a relação do sujeito com os objetos de salvação, sua condição antropomórfica aparece em relevo. Sendo assim, o sujeito se posiciona como passivo, alijado de sua identidade e anulado em seu desejo, tendo-se em vista a personificação projetada por ele nesses objetos - designados por substantivos ora concretos ora abstratos. Os relatos sobre eles possibilita comparar seu suposto grau de salvação com a vida dos sujeitos - em sua amplitude e sua realidade. No caso da literatura, o objeto é engrandecido e idealizado pelos três sujeitos, ainda que o alcance dessa salvação seja parcial e reduzida. A grandeza inserida em seu poder de salvação decorre de um enfoque parcial dos sujeitos, que se opõe a uma visão integrada sobre ele. Por outro lado, nos relatos sobre o esporte faltam elementos, para se afirmar que essa salvação também é restrita, engrandecida e ilusória. A força do legado transgeracional da família sobre o sujeito e a precariedade inicial de seu sistema das representações parece favorecer o engrandecimento e a idealização dos objetos de salvação, bem como as dificuldades de integração dessas vivências. Talvez, resquícios de ideias religiosas sobre a salvação do sujeito, igualmente, encubram a ilusão e a limitação dessa salvação.
Dentre os objetos de salvação, a biblioterapia é o termo médico acerca da terapia, que se vale da relação do indivíduo com o conteúdo de livros, enquanto experiência de cura. O recurso da música para melhorar as habilidades cognitivas - em geral - e as habilidades matemáticas - em específico - é evidenciado em vários estudos, conquanto seu poder de salvação apresente-se restrito. No âmbito da justiça criminal, os projetos de inserção social têm permitido a ressignificação de muitas vidas - ainda que não se saiba sua real dimensão de mudança.
A base sublimatória do recurso psíquico a esses objetos traduz-se como defesa contra as representações desagradáveis do ponto de vista do ego, que são reprimidas no sistema das representações. Logo, várias representações reprimidas e vários afetos - que as acompanham - não assomam a seu estrato consciente e precisam ser revisitados. Nomeadas representações desagradáveis na clave freudiana, elas remetem às facetas persecutórias do sujeito e do objeto na leitura kleiniana. As representações desagradáveis são: ser insana, ser decepcionada, ser traída, ser lesada, ser roubada, ser perdedora - ligadas a ódio. Ser abandonada, ser desamparada e sentir-se morta acompanhadas de intenso ódio são representações do trauma do absoluto. Elas bloqueiam a realização do desejo do adulto.
Para reorganizar o desejo do sujeito, faz-se necessário analisar as facetas persecutórias de si e dos objetos primários - reprimidas pelo sujeito - visando integrar seus impulsos amorosos e agressivos, o poder atribuído a si, aos objetos primários e aos objetos secundários de salvação, bem como as parcelas idealizadas e persecutórias do desejo do sujeito e desses objetos. Com isso, facetas de seu desejo - força propulsora de seu eu - podem ser integradas e os objetos secundários deixam de ser salvadores do eu. Enfim, o sujeito toma a si seu desejo, assenhora-se dele para realizá-lo junto aos demais e os objetos se revelam em sua condição intrínseca: faltantes em face de seu desejo.
Referências
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