Lampejos do eu nas modificações corporais extremas
Introdução
Tendo o intuito de examinar representações do eu de adeptos das modificações corporais extremas, este trabalho se inscreve sob o approach psicanalítico. A alusão aos lampejos do eu remete à obtenção de representações/fragmentos de seu universo mental, mediante reportagens de jornais online, publicadas em português e inglês. Dentre os jornais, aqueles de maior credibilidade junto à classe jornalística são priorizados. Para solidificar as bases científicas desse trabalho, livros e artigos são acrescentados.
De início, a definição de modificação corporal e de sua inserção na história da civilização são apresentadas. A seguir, a modificação corporal extrema é pensada sob o viés da medicina e da psicanálise, dentre outros. Ademais, concepções da autora sobre o desejo, os traumas e o sistema das representações visam auxiliar na análise dos lampejos. Na próxima seção, a aplicação do método clínico psicanalítico a uma situação extraclínica - relatos de adeptos da modificação corporal extrema sobre si e sua escolha - permite acessar os lampejos de seu eu. Com isso, aprofunda-se esse fenômeno marcante em nossa cultura contemporânea.
A modificação corporal consiste na alteração intencional e permanente de uma parte do corpo humano por razões não médicas, visando diferenciar o indivíduo de outros. Recorre a técnicas como tatuagem, inclusão de corpos estranhos - metal, madeira, silicone, piercings - produção de cicatrizes mediante escarificações, queimaduras e mutilações. As modificações corporais existem há milhares de anos. As tatuagens da mitologia da Oceania são uma forma de expressão cultural e artística, representando a identidade cultural, a história e as crenças desses povos. Seus significados estão relacionados à proteção, força, coragem, conexão com a natureza e a ritos de passagem. Na África subsaariana, a escarificação é o corte profundo na pele, cujas marcas permanentes representam a admissão na comunidade tribal adulta. Esse rito de passagem se origina da crença de que o estresse físico e emocional da criança a ajudará a resistir ao desgaste físico e mental da vida adulta. Na década de 1960, com a valorização da cultura oriental, houve a popularização das tatuagens. As perfurações e os piercings começaram na década de 1970, com o movimento punk. Atualmente pode ter conotação erótica (Schraff, 2013).
A modificação corporal não convencional
Ao longo da história, o termo aberração designou as características físicas monstruosas ou anormais não normativas, incluindo a busca de controle do diferente. Ele tem raízes na ideologia desumanizante sobre raça, na experimentação em nome da ciência e nas categorias binárias restritas de gênero. Os seres grotescos do passado eram alvo de escárnio e objeto de reverência. Como afirma Collins, as imagens de controle - sobre como as pessoas devem ser - fazem com que as práticas corporais não convencionais desafiem normas de beleza e saúde, papéis de gênero, apresentação corporal, propriedade e inscrição simbólica do corpo. As imagens de controle promovem estereótipos, mas podem ser reapropriadas e transformadas em símbolos poderosos de libertação, resistência e recuperação pelo grupo estigmatizado. Sua inconformidade com noções normativas - pele imaculada, evitação da dor, preservação da integridade corporal e self fixo e rígido - torna o modificado desviante - o estranho perigoso desacreditado, a aberração monstruosa, o maluco mentalmente instável, a estranheza desconcertante, o estigmatizado como menos humano, que desafia o significado de ser humano na sociedade ocidental (Thomas, 2012).
Bogdan (1988) examina dois tipos de aberrações, desalojadas de seus meios sociais e ressituadas no contexto ocidental. A aberração exótica está ligada à exploração do mundo não-ocidental nos séculos XVIII e XIX. O contato dos ocidentais com novos mundos levou-os a trazer espécimes destas culturas. Com sua cultura fora de contexto, eles despertaram a crença ocidental em pessoas com cauda, anões e gigantes, semelhantes às criaturas da mitologia antiga. A segunda aberração consiste nas anomalias físicas/diferenças corporais extremas inatas - o monstro, a aberração da natureza. Adams (1996) adiciona a aberração produzida por uma pessoa de constituição corporal normal, que enfatiza sua diferença em relação à média, para tornar sua aparência incomum e justificar sua exibição - o encantador de serpentes, o engolidor de espadas e as modificações corporais não convencionais (Thomas, 2012).
Essas modificações corporais não convencionais são feitas para projetar externamente uma imagem interna, inscrevendo o corpo com símbolos sobre como o sujeito se percebe e como deseja ser percebido pelo outro. Alguns sentem que sua apresentação exterior ‘normal’ não corresponde à sua percepção interna de como deveriam ser. Outros percebem seus corpos como anômalos ou incompletos, sem as modificações corporais. A autoexpressão - compartilhamento da inscrição simbólica visível e a busca do relacionamento consigo e o outro - caracteriza o corpo fora do mainstream. Assim, compartilha-se uma história por meios não convencionais, usando o corpo para personificar sua identidade e afirmar sua propriedade. Por outro lado, a patologização e a estigmatização da pessoa transgressora podem influenciar sua identidade. Porém, se a modificação corporal não convencional expressa arquétipos universais do inconsciente coletivo, ela pode manifestar a curiosidade culturalmente compartilhada sobre o corpo humano. Em suma, ao inscrever o corpo com símbolos que comunicam biografias e ideologias, empreende-se uma profunda busca por identidade, significado, conexão e reconhecimento (Thomas, 2012).
Para uma sociedade que cultua a perfeição física, com um histórico vergonhoso sobre como tem lidado com pessoas com deficiência, que valoriza a normatividade de sexo, de gênero e do corpo, não é fácil compreender a escolha de se remover uma parte do corpo - por iniciativa própria. Não é fácil compreender essa escolha, quando a cultura de massa busca a homogeneização, a disciplina, o controle, a dominação e a domesticação. Sobre o controle do corpo e da subjetividade, Foucault (1987) postula que a disciplina remete à modalidade de poder, caracterizada por medir, corrigir e hierarquizar. As técnicas, que permitem o controle do corpo, sujeitam suas forças e impõem o regime docilidade-utilidade - fabricando corpos submissos, corpos ‘dóceis’. Posto isso, as modificações corporais rompem algumas práticas da submissão e as normas vigentes de controle do corpo da nossa sociedade (Angel, 2014).
A modificação corporal extrema e a visão da medicina
O DSM-V (2014) classifica a modificação corporal extrema como transtorno dismórfico corporal, no qual a preocupação com defeitos inexistentes ou sutis da aparência causa forte angústia e/ou prejudica a capacidade funcional. Assim, a pessoa realiza determinadas atividades repetidamente - olhar-se no espelho, arrumar-se excessivamente. Esse transtorno começa na adolescência e tem maior frequência em mulheres. O rosto ou a cabeça costumam ser seus focos de preocupação, sendo que ela descreve as partes do corpo como feias, pouco atraentes, deformadas ou monstruosas. Tem dificuldade de controlar a preocupação com seus supostos defeitos, crendo que os outros estão reparando nela ou ridicularizando-a.
Essa prática pode ser vista ainda como transtorno da personalidade borderline, um padrão de instabilidade nos relacionamentos, com alterações na auto-imagem, no afeto, na cognição e no comportamento, junto com a sensação de abandono real ou imaginado. Para evitá-lo, ações impulsivas de raiva e automutilação surgem durante experiências dissociativas transitórias/despersonalização. Em períodos de estresse, podem surgir sintomas psicóticos: alucinações, distorções da imagem corporal, etc.
O cirurgião plástico e oncológico Wandemberg Barbosa afirma que essas cirurgias vão contra a fisiologia do corpo e, geralmente, são realizadas a partir de desejos adolescentes, que aumentam a chance de arrependimento. A cirurgiã plástica Marcela Cammarota informa que a colocação de materiais estranhos no organismo produz uma reação inflamatória. Em locais vulneráveis, ela é ainda mais intensa, podendo gerar a expulsão do material e até infecção. A farmacêutica Silmeri Bolognani diz que cortes na língua podem levar a infecções durante a cicatrização, já que a boca possui diversas bactérias e enzimas digestivas. A divisão da língua atrapalha a deglutição, a mastigação e a fala, causa mau hálito e se torna depósito de alimentos. A introdução de objetos sob a pele acarreta possíveis alergias, redução da vascularização da região, queloides, assimetria e hipersensibilidade no local. De acordo com o oftalmologista. Marcelo Brito, a tatuagem nos olhos/eyeball apresenta altíssimo risco. Milhões de bactérias no olho convivem em harmonia, até que o equilíbrio natural seja quebrado. As agulhas e a tinta podem carregar microrganismos das camadas superficiais para as camadas profundas do olho, levando infecções fatais à visão.
A modificação corporal não convencional sob o prisma psicanalítico
As práticas de tatuagem, piercing e escarificação demandam uma escuta não redutora de suas polissemias, pois no corpo se inscreve a história do sujeito, comunicando afetos, fantasias e desejos. Lacan (1988) liga a tatuagem/o entalhe a uma função erótica. Uma das formas mais antigas de se encarnar a libido no corpo é a tatuagem e a escarificação, modos de constituição subjetiva, que situam o sujeito para o Outro. Tão antigo e estrutural quanto o fascínio pela forma humana, o corpo fornece suporte para o significante. O corpo, lugar das cicatrizes, é marcado pelo Outro, campo no qual o sujeito se constitui. A dor na feitura das tatuagens, piercings e escarificações situa o masoquismo como constituinte do novo desenho corporal. Certas modalidades de constituição subjetiva instauradas no corpo não se acomodam aos padrões de subjetivação hegemônicos. As subjetividades à margem do padrão hegemônico, do excesso e exuberância, são constitutivas do estofo humano - não patológicas.
A modificação corporal não convencional sob outros enfoques
Conforme Ortega (2008), no início do século XX, a identidade era representada pelas condutas morais, valores e projetos de vida. As identidades somáticas/ bioidentidades deslocam as concepções psicológicas internas da pessoa e o modelo intimista de construção e descrição de si para o exterior. As descrições de si adquirem uma face mais externa, centrada na aparência corporal e em requisitos de saúde. E, ainda, elas deslocam as representações da identidade para o corpo, reduzindo o self à aparência corporal. Assim, as identidades contemporâneas são representadas no corpo
As alterações de aparência resgatam o corpo como processo vivo, no qual se passa a cena subjetiva. As modificações corporais são ferramentas de afirmação de si no mundo, modo de apropriar-se de si mesmo e tentativa de pessoalizar o impessoal na vida contemporânea. A dor faz parte da experiência de autenticidade reivindicada pela pessoa, diante da falta de receptividade do mundo para suas angustias (Nolasco, 2006).
O caráter é uma forma defensiva, que gera uma forma singular de funcionar na vida, derivada da resposta inadequada da sociedade às necessidades primárias. Os traços de caráter na body modification envolvem um grau de comprometimento, que leva a maior ou menor ousadia nessas modificações. O núcleo psicótico constitui a primeira defesa; em casos mais leves tende à esquiva dos contatos e nos mais graves, ao isolamento. Sua percepção de si mesmo é distorcida e há perda da consciência dos limites físicos. Quando o comprometimento é leve, pode ser bastante criativo. No caráter borderline, há dependência, medo da rejeição, depressão, agressividade, sensação de vazio. No duplo núcleo psicótico, em casos mais graves, há maior distorção da realidade, conflitos de identidade, instabilidade de humor, impulsividade e dificuldades para controlar a raiva. No caráter masoquista, o queixume e a lamentação constantes sobressaem. Deprecia-se e não gosta de si mesmo. Tem medo da punição, da desaprovação e de explodir e, assim, implode - autoagressão. Quando o comprometimento é leve, tem uma atitude amiga, companheira, compreensiva. Quando é grave, exagera ao superar os limites do corpo. O caráter fálico-narcisista revela bom gosto estético, sedução e a provocação visa compensar a carência de potência orgástica. Tem grande desejo de aparecer, receber aplausos e ser reconhecido. Tende a ser arrogante, vaidoso, orgulhoso, exibicionista e ostentar grandeza. Quando é leve, há grande liderança, entusiasmo, criatividade, empreendedorismo (Volpi, 2009).
No que tange às pessoas que ultrapassam o limite, excedem a fronteira e transbordam de si, práticas incentivadas culturalmente formatam o corpo e as aproximam do modelo de beleza vigente. Outras práticas inserem no corpo formas, cores e texturas distintas da espécie humana e as distanciam daquele padrão. Suas marcas corporais resgatam conhecimentos primordiais e estabelecem uma ligação entre o indivíduo e o cosmo. Envolve pontes entre o real e o imaginário e entre diferentes tempos e realidades. Há um caráter místico subjacente às práticas corporais, visando transcender os limites do corpo e assumir nova identidade, após os ritos de passagem. As intervenções buscam unificar o corpo físico e o corpo espiritual mental (Pires, 2019).
Segundo Souza e Cruz (2008), a motivação para as modificações corporais parte da reação a condições negativas de vida, integração social reduzida e necessidade paradoxal de provocação-aceitação, erotismo-dor. Há uma constante busca de novidades, intensa excitação diante de estímulos novos, impulsividade, transtornos alimentares, condutas desviantes, atividades ilegais e condutas de risco à saúde. Para Volpi (2009), os motivos para a modificação corporal incluem o modismo, o desejo de impressionar e seduzir o outro, a busca de valorizar o corpo como objeto sexual, a busca de superar a dor mediante a espiritualidade.
Tomazett (2021) entende que a modificação corporal extrema é exposta como protesto, contravenção ou revolta, ousadia e desejo de chocar as pessoas. Essa forma de sociabilidade narcísica individualista funda-se numa realidade alienada, fetichizada e reificada. A reificação fragmenta a realidade e a subjetividade, coisificando os homens e humanizando as coisas. Essa modificação revela a precarização do humano, bem como o enfrentamento da ordem estabelecida. Busca uma metamorfose de intensidade progressiva, enquanto aparência estranha à hegemônica e imagem corporal próxima do não humano, provocando o choque e o espanto, denunciando a desumanização da vida.
De acordo com Maffesoli (2001), o indivíduo errante está em uma busca sem fim à procura de si numa comunidade humana, na qual os valores espirituais são consequência da aventura coletiva, que faz com que a fronteira sempre seja adiada a fim de que essa aventura possa prosseguir. O desejo de evasão o move a caminhar, a mudar de lugar, hábitos e costumes, desejo de ampliar suas relações, estabelecer novas formas de explorar facetas de sua personalidade. Existe no errante uma busca mais ou menos consciente pela junção com a natureza, [] ele parte para experiências, que possam fazer com que viva a plenitude perdida. Os espaços sociais nos quais ocorrem fusões emocionais são as tribos urbanas, com ênfase na coletividade. A vida do errante é uma vida de identidades múltiplas, plurais e, às vezes, contraditórias.
Para Araújo (2015), a categoria estética do grotesco sempre esteve associada ao disforme e ao desvio da norma dominante. O corpo grotesco apresenta imagens da fusão entre homem e animal, vida e morte, humano e máquina: a descaracterização da forma humana. Ele desencadeia a ambivalência de afetos - contraditória expressão de desejo e repulsa, sedução e repulsa, asco e atração, amor e ódio pelo corpo. Constitui uma estratégia bastante eficiente de visibilidade dos adeptos das modificações corporais. O movimento contraditório de recusa e adesão à lógica do mercado capitalista, de fuga e capitalização se reflete em suas subjetividades. A radicalidade e a excentricidade, o excesso e o exagero das práticas têm gerado taxações patologizantes de seus adeptos.
Ícones da modificação corporal extrema
Visando acessar o mundo mental de ícones da modificação corporal extrema, lança-se mão de reportagens de jornais online sobre eles, com reconhecida credibilidade junto à classe jornalística. Publicadas em ordem cronológica, as reportagens dão a conhecer representações/fragmentos/lampejos de seu universo mental. Esses lampejos do eu advertem que as reportagens, de modo diferenciado de sessões de análise, oferecem representações dispersas, parciais e restritas de sua psique.
As aspas põem em relevo os lampejos do discurso desses ícones. O itálico destaca as representações mentais/ lampejos de seu eu expressos por eles. Os colchetes suprimem trechos do relato desnecessários para essa reflexão.
Anthony Loffredo, Black Alien, tem modificações corporais extremas e intitula seu perfil no Instagram como ‘Black Alien Project’, com um milhão de seguidores.
Em entrevista de 2017 ao jornal Midi Libre, ‘meu interesse de infância pelo fisiculturismo se transformou no interesse pela modificação corporal, à qual agora dedico minha existência. Desde muito jovem, sou apaixonado pelas mutações e transformações do corpo humano. Quando era segurança, percebi que não estava vivendo minha vida do jeito que queria. Parei tudo aos 24 anos e parti para a Austrália’. Ele não diz o que aconteceu na Austrália, que o fez querer se tornar um alienígena vivo, mas desde que voltou à Europa, ele se envolveu nisso fortemente. ‘Minha obsessão tomou conta de minha vida, minha carne está em construção. É mágico. Cada um tem suas próprias liberdades. A minha é não ter limites na mutação do meu corpo. Períodos de observação são uma boa oportunidade pra filosofar sobre a sociedade. Eles ainda veem um humano ou outra coisa? Isto é emocionante e fascinante. Adoro ver a reação à minha aparência aterrorizante e gosto de agir de acordo com a admiração e o pavor das pessoas, mas mantenho meu comportamento e interações respeitosos. Adoro entrar no lugar do personagem assustador [] à noite nas ruas escuras. Exploro o contraste entre o papel que desempenho e eu mesmo’ (Coughlan, 2023).
‘Tento deixar as pessoas o mais confortáveis possível para que ninguém fique chocado. Quando cruzo com pessoas, como os velhos, mudo de lado na rua. Também com as crianças, sou cuidadoso. Eu sei que pode ser um choque. Quero ser visto como uma pessoa normal, como qualquer outra pessoa. Trabalho, tenho família e sou uma pessoa típica. Gosto de ser visto como uma pessoa típica com emprego, família, amigos e namorada. Eu sou normal por causa disso’ (Munshi, 2023). ‘Esses procedimentos se tornaram um vício. Não consigo encontrar um emprego. [] existe um lado negativo, mesmo que seja vantajoso porque você se sente melhor’. Em meio a isso, ele removeu seu nariz. ‘É como um sonho. Eu vivo este sonho. Agora posso andar de cabeça erguida, graças a você [Oscar Márquez]. Estou orgulhoso do que fizemos juntos. Eu seguindo na minha paz interior’ (Oliveira, 2023).
De acordo com Arthur Bruel, autor do documentário sobre Black Alien, ele olha para suas fotografias antigas e diz: ‘Aqui estava feliz, mas não estava no corpo certo’. A transformação ocorreu depois de ele conversar com os pais. No Natal, o choque durou 15 minutos. ‘Provavelmente, ficaram meio tristes. Ficaram me olhando de forma meio estranha, mas tudo voltou ao normal. Minha mãe sabia que eu nunca me senti bem no meu corpo’. Anthony não gosta de fazer os procedimentos, não gosta da dor. É que fica mais perto do seu objetivo, encontrar a paz entre o corpo e o espírito dele. Anthony é sociável. Na rua, a reação é geralmente positiva e as crianças fazem fila para fotografias e autógrafos. Ele nunca planeja o amanhã. Por conta da burocracia e de sua imagem, não possui conta bancária. Tem algumas parcerias online e cobra 50 pesos por foto apenas para adultos. Se tirar cinco fotos, dá para o almoço e isso basta. Ele está muito contente com o programa e com o feedback recebido. O documentário pode ser um exercício de empatia. Minha perspectiva de mundo mudou (Coughlan, 2023).
Erick Sprague, Lizardman, tem o corpo tatuado e gastou 250 mil dólares nas modificações. Tem mestrado em filosofia, mas abandonou o doutorado em filosofia, para se dedicar exclusivamente à carreira de artista performático. Ele se refere às ideias de Wittgenstein sobre o que significa ser humano, ao alterar sua aparência para parecer outra coisa. ‘A pessoa que consegue aliar sua aparência com aquilo que deseja, aumenta sua autoestima, fortalece a ligação da unidade com o todo e potencializa sua capacidade instintiva de agir, manifestando seu verdadeiro eu’ (Teixeira, 2006). Ele está casado há vários anos. Atualmente, suas performances misturam stand-up e acrobacias de circo - comer insetos, manipular fogo e fazer suspensões. Ele exibe a tatuagem Freak/aberração no peito. Ele é ativo na comunidade de modificação corporal, com designers, que fazem joias com ímãs, para ele usar nos shows (Cardy, 2013).
‘Minhas primeiras intervenções foram realizadas após muita consideração e com desenhos do que seria meu corpo futuro. Escolhi o tema [] pelo fato de os répteis simbolizarem o poder, desde as histórias do Éden aos dragões. Eu não mudei meu estilo de vida nem meu estilo de pensar, depois das transformações. Apesar das risadas, houve um lado sério em minha transformação reptiliana. Eu não pretendia ser o Homem-Lagarto. O interesse pela arte performática me fez experimentar primeiro. Os resultados foram muito artísticos e muito conceituais. Os detalhes mudaram e se adaptaram à medida que as coisas avançavam. Desde o início, minha preferência era pela comédia em vez de acrobacias extremas. []. Optei por um caminho mais cômico. [] uma maneira mais legal de fazer coisas estranhas na frente das pessoas []. O público tende a relaxar muito rapidamente com minha aparência numa comédia. [] desliga seus filtros. Elas se tornam crianças. Deixam escapar tudo o que vem à mente. Muitas vezes me refiro a mim mesmo como um livro de colorir gigante, porque tenho o contorno das minhas escamas em meu corpo e estamos preenchendo-as. O céu é o limite para o que pode ser feito no futuro para alterar a aparência das pessoas, com os avanços da ciência. Seria ótimo se eu fosse o Homem Lagarto e pudesse andar pela rua, passando por Zebraman e Crabman. Esse é o mundo em que quero viver’ (Cardy, 2013).
Ele não ficou viciado nas modificações. ‘Deixei de estar completamente vazio, essas coisas são meio e passei a usá-las como artista. Isso contribui para a minha egomania, porque os artistas passam muito tempo tentando criar um símbolo poderoso, mas, quando você faz o que eu fiz, você se torna um símbolo poderoso. Sou essencialmente uma criatura mitológica, que existe em culturas ao redor do mundo: sou um humanóide reptiliano’ (Byrne, 2016). ‘Quando [estranhos] conversam comigo, eles aprendem o que está por detrás de tudo isso. Você tem que encontrar a felicidade naquilo que você pode ter; se você pensa que o que torna você feliz é inatingível, você se condenou ao fracasso’. Ele faz performances ao redor do mundo 300 dias por ano, sendo muito bem sucedido. ‘A única coisa melhor do que criar alguma coisa, é ser essa criação. Eu mantenho o ponto de vista platoniano de que uma vida não examinada, é uma vida que não vale a pena viver. Faço com que [as pessoas] olhem para si, tanto quanto para mim. Estou bastante bem; quando olho no espelho, sorrio’ (Franja, 2019).
Paul Lawrence, Enigma, afirma que sua carreira começou com 6 anos com as aulas de piano, flauta, balé, canto e sapateado. Sempre foi visto como outsider, mas devido a sua formação artística, foi tratado como um talento. Seu interesse pela mágica começou aos 16 anos, quando ganhou um livro de mágica. Ele se destaca como lenda histórica em modificação corporal e espetáculos de circo, tocando instrumentos e fazendo performances como cuspir fogo, engolir espadas, usar ferramentas elétricas e lâminas. Ele viaja pelo mundo com um show, em que tatuadores preenchem os espaços de seu quebra-cabeças com linha azul. ‘Eu simplesmente decidi ser azul. Não considero isso uma tatuagem, mas apenas a cor da minha pele. Eventualmente, ficarei todo azul. Este é o verso do quebra-cabeça. A arte está dentro. Embora, também esteja fora’. [] Assim, pares dicotômicos - interno e externo, natural e artificial - se confundem e mesclam no discurso. As modificações corporais trazem questões sobre o corpo, o que é ser humano e a relação consigo e os outros. Com sentido individual, são compartilhadas pelo coletivo e atuam como sinais tribais de reconhecimento (Teixeira, 2006).
‘Quando criança, meus amigos eram os X-Men e a Marvel Comics - fui para a escola trocando sonhos de grandeza sem limites por realidades de muito pouco valor. Tropecei no espetáculo aos 15 anos e comecei a engolir espadas, enfiar espinhos no crânio, comer fogo, porque era magia de verdade. Todo mundo vê uma coisa e você mostra outra - a verdade aparece como mágica. Isso é parte do porquê do que fazemos. Antes da televisão, as pessoas iam ao circo, [] as crianças viam os palhaços, também gostavam de ver o estranho, o bizarro, o incomum do espetáculo paralelo. Sou o troll furioso debaixo da ponte, mas ainda estou apaixonado pelo mundo’. Ele quer dar vida a esse amor pelo mundo e à tradição do espetáculo paralelo em um parque temático. Ele está colaborando com vários artistas locais e destaca o entusiasmo deles. ‘É incrível o quanto eles estão entusiasmados, há muito vapor, muita coragem. Não estou tentando ser oportunista, mas vejo o potencial e estou atraído por ele. Teremos o museu de itens estranhos e incomuns, que inspiram as crianças a explorar este mundo gigante em que vivemos. Este mundo é tão enorme, grande e bonito e quando você viaja, abre sua mente para outras ideias, culturas e costumes’ (Meehan, 2014). ‘Tatuar meu rosto não significa que há um monte de coisas que eu não posso fazer. Significa que há mais coisas que posso fazer do que você pode imaginar. Este é o impossível possível. É ir além do que todo mundo pode ou sonha fazer. Se há algo que eu sempre quis fazer, faço questão de fazer’. [] Faço meu show para provar que você pode ser uma pessoa legal e fazer um show. Quero ser um bom embaixador do mundo da tatuagem e manter um grande sorriso no rosto para tatuados ou não. Definitivamente é minha responsabilidade deixar todos saberem que nós, pessoas tatuadas, somos legais’ (Gilbert, 2022).
Michel Prado, Diabão, tatuador brasileiro tem como objetivo se aproximar da figura de Satan. Ele amputou um dedo da mão, para que ela parecesse uma garra animal, adicionando garras artificiais no lugar das unhas. ‘Black Alien é uma grande inspiração. É maravilhosa a determinação dele, ao avançar no projeto dele. Quando vi ele nas redes sociais, me identifiquei porque [] não tinha encontrado alguém que queria se modificar ao ponto de mudar as características humanas. Antes das modificações, eu vivia num corpo no qual não pertencia’. Ele é casado com a Mulher Demônia, há muitos anos (Ferrari, 2021). ‘A ideologia das modificações é aprender com a vida, para que eu possa viver cada vez melhor, aproveitando meu tempo na terra e ajudar o próximo a caminhar. Temos que colaborar para crescermos como coletivo’ (Catracalivre, 2022).
‘Cada mudança é pensada por mim e a decisão só é tomada, após pesquisas sobre a anatomia humana. ‘Fiquei emocionado depois da retirada das orelhas. Minha audição não foi danificada. Gostei bastante do resultado’. Seu projeto pessoal inclui transformar a mão esquerda em um membro com aparência não-humana. ‘O que mais me marcou em 2023 foi a unificação dos dedos. [] ainda não tinha sido feita, tínhamos bastante expectativa em cima. Gostei muito do resultado. Antes de me submeter ao procedimento, fiz um período de adaptação, prendendo os dedos com uma fita e realizando atividades de rotina. Fui convidado para um programa de televisão do Guinness, no qual vou concorrer como a pessoa com mais modificações na cabeça. Não fiquei só imaginando como seria. Eu realmente fiz acontecer’ (D'Almeida, 2023). Ele entrou para o Guinness como o homem com maior número de implantes na cabeça. ‘Foi algo muito especial e surreal. Um sonho realizado []. fiquei emocionado, com lágrimas nos olhos, enquanto recapitulava minha vida. Experiência que vou guardar para sempre no coração e na memória. []. Competir em algo que amo e escolhi como estilo de vida foi muito bom. Até o final do ano, [], vou concorrer para o Guinness Book e pegar o título de homem mais modificado do mundo’ (D'Almeida, 2023).
Henry Rodriguez, Red Skull, gastou 30.000 libras em cirurgias para se transformar nesse supervilão nazista arquiinimigo do Capitão América. ‘Gostaria de destacar que venho de uma família muito modesta e tradicional. Não foi fácil pra minha família aceitar meu estilo de vida, mas eles são minha família e fazem parte de mim. Minha família é a única coisa que importa. Meu filho tem três anos. Se ele me aceita e me ama, não me importo com os outros. O que importa para mim é ser feliz e me aceitar. Sempre seremos julgados. [] somos os únicos que podemos conseguir o que queremos. Desde criança, sempre gostei do que era diferente, extrovertido e sou fanático por quadrinhos. Decidi ser quem sou e me sinto bem comigo mesmo. Comecei este projeto há cerca de sete anos. Eu queria me transformar nesse incrível personagem, que realmente admiro desde pequeno. Há semelhanças entre esse personagem e eu em personalidade e atitude. A única coisa que não temos em comum é sua ideologia nazista. Sempre me senti atraído por sua forma única, sua personalidade extrovertida e sua singularidade. [] estamos aqui para educar as pessoas’ (Robinson, 2016).
‘Queríamos fazer algo único. [] quando meu médico me mostrou os rascunhos, eu vi o Red Skull. Foi um projeto de vida que planejamos, há muitos anos. Adicionei outras transformações para me afastar da imagem clássica do Red Skull e dar individualidade a ele. É uma paixão. A dor faz parte da busca pelo sonho. Faz parte da atração. [] Nunca avisei minha família com antecedência []. Cada vez que me viam, ficavam surpresos com as novidades em mim. No início, o impacto social e visual foi chocante para eles, mas eles se habituaram muito facilmente ao meu novo visual. Meu filho de sete anos sempre me diz que sou seu superpai. Não me arrependo, desde que ele continue me chamando de super papai. Se ele quiser fazer uma jornada semelhante, ele deveria pensar bem sobre isso. Que ele deve ter cuidado para não seguir um impulso. Se ele decidir ir em frente, vou apoiá-lo e garantir que ele seja encaminhado a um profissional’. Olhando suas fotos, antes das modificações, ‘eu não me vejo diferente de quem era antes. É como se você fizesse uma cirurgia de mama. Você fez uma mudança estética, mas não é pessoal, o ser humano será sempre o mesmo. []. Vivo pra isso e tenho muitas pessoas me apoiando e o que estou fazendo não me torna uma pessoa melhor ou pior. Meus dias são bastante normais e minha vida no estúdio de tatuagem combina bem com meu visual’ (Auraha, 2020). Ser Red Skull na vida real [] começou aos 24 anos. ‘Sempre fui mais inclinado a vilões do que a super-heróis. []. É pra isso que eu vivo. Meu corpo é meu uniforme, minha carta comercial. Não dá pra ir a estúdio de tatuagem e ver os funcionários como se estivessem num banco’ (Ashley, 2022).
Wildson Santos, Dark Vírus, é tatuador e body piercer, ama filmes de terror, tem o corpo quase todo tatuado e muitos piercings. ‘Eu não me importo com a opinião das pessoas e gosto de causar medo nelas. []. Acredito que quem fala mal de mim, sente inveja por não ter coragem de fazer o que quer com o próprio corpo. Desde criança, sempre quis ser uma pessoa diferente. A aparência humana não estava me agradando, [] minha mente já estava além do físico. Eu tinha que me transformar, mas primeiro começou na mente. Depois veio a parte estética, que ficou incrível e maravilhosa. Minhas inspirações para as mudanças se originam na vivência. É o que você passa na vida e vai colocando. Tem que ser muito pensada. É aquilo que você quer fazer e sabe os riscos’ (Blogger, 2014). ‘Minha vida mudou para melhor, porque sou reconhecido no cenário de tatuagem e piercing no Brasil’ (Drew, 2017).
Com o Guinness, me interessei pelas pessoas que mudaram completamente a imagem. Homem Gato, [] me fez mudar inteiramente minha visão de mundo. Eu pirava no cara e me perguntava: como o ser humano pode ficar nesse nível?’ E ainda, o Homem Enigma e o Homem Lagarto. []. ‘Gostava das coisas mais pesadas, radicais e trash. Por isso, me encantava com esses caras. Desde muito novo, a arte esteve presente na minha vida. Minha mãe trabalhava com pintura em tela e sempre incentivou meu gosto pela arte. Em certas culturas, orelhas alargadas são sinônimo de paciência e de sabedoria. Em muitos deuses orientais observa-se isso. No Brasil, os índios Caiapó utilizam alargadores []. Tinha um desejo enorme de fazer isso em mim’ (Baioff, 2017). Decidiu partir para algo mais pesado ou trash. O objetivo das modificações é ‘desconstruir a imagem de perfeição criada por Jesus’. Os olhos pintados de preto são para ‘matar a ideia de que o branco é o espelho da alma’ (Schuquel, 2018). De descendência indígena, ele diz: ‘Todas as modificações têm um significado místico. A tatuagem faz parte do rito de passagem indígena []. Se não doer, não vale a pena. A principal mudança deve vir de dentro. [] para quem quer ser igual a mim, comece a mudança pela mente. Não precisa mudar a aparência, se você não mudar o interior. [] desejo o bem a quem me quer bem’ (Catracalivre, 2022).
Discussão
Black Alien adora explorar as reações das pessoas à sua aparência aterrorizante. ‘Gosto de agir de acordo com a admiração e o pavor das pessoas, mas mantenho meu comportamento e interações respeitosos. Adoro entrar no lugar de um personagem assustador [] à noite nas ruas escuras’. Ser assustador contradiz ser respeitoso. De modo inconsciente, seu eu ser fascinado e ter prazer com o terror e a impotência das pessoas - que o repudiam - implica atribuí-los ao papel que desempenha. Ter seu nariz removido suscita: ‘É como um sonho. Eu vivo este sonho. Agora posso andar de cabeça erguida, graças a você. Estou orgulhoso do que fizemos juntos. Eu seguindo na minha paz interior’. ‘Aqui estava feliz, mas não estava no corpo certo’. Essas frases denotam ser realizado, ser grato, ser orgulhoso e estar em paz na parceria com o modificador. Ser transformado depois de conversar com seus pais revela ter consideração por eles. Ele parece ser solitário, ser isolado da comunidade de modificação corporal e ser despreparado para monetizar sua aparência, de forma planejada e bem-sucedida.
O homem-lagarto é um artista performático inserido na comunidade de modificação corporal, que colabora com ele. Denota ser intelectualizado, ser racional, ser reflexivo e ser prudente: ‘Minhas primeiras intervenções foram realizadas após muita consideração. Escolhi o tema pelo fato de os répteis simbolizarem o poder. Eu não pretendia ser o Homem-Lagarto’. Este personagem é fruto de experimentação e adaptação à realidade. Ele prefere ser leve e ser cômico ao se aproximar do público: ‘preferência pela comédia, [] maneira mais legal de fazer coisas estranhas na frente das pessoas [], desliga seus filtros’. Consegue ser independente das modificações. ‘Deixei de estar completamente vazio, essas coisas são meio e passei a usá-las como artista’. Ser um símbolo poderoso alia-se a ser feliz, ser perseverante e ser bem sucedido: ‘Você tem que encontrar a felicidade naquilo que você pode ter; se você pensa que o que torna você feliz é inatingível, você se condenou ao fracasso’. Ao examinar sua vida, pode ser criativo e ser realizado. ‘A única coisa melhor do que criar alguma coisa, é ser essa criação. Uma vida não examinada, é uma vida que não vale a pena viver. Quando olho no espelho, eu sorrio’. Ele conseguiu integrar sua aparência física com seu desejo, ter autoestima, ser uno com o todo, ser instintivo ao agir: seu verdadeiro eu.
Desde criança, Enigma foi preparado para ser artista e estar integrado ao mundo dos shows. Sua tatuagem azul é percebida por ele como a cor da sua pele. Sua tatuagem no rosto lhe abre horizontes para além dos demais, podendo ser legal, ser realizador, ser embaixador e ser responsável pela boa imagem dos tatuados junto aos outros. ‘Tatuar meu rosto significa que há mais coisas que posso fazer do que você pode imaginar. É ir além []. Quero ser um bom embaixador do mundo da tatuagem []. minha responsabilidade é deixar todos saberem que nós, pessoas tatuadas, somos legais’.
Diabão tem um longo casamento e procura criar bons vínculos com os demais. Ser aprendiz, ser otimista e ser solidário com o outro, ‘A ideologia das modificações é aprender com a vida, para que eu possa viver cada vez melhor, [] ajudar meu próximo a caminhar. [] colaborar para crescermos como coletivo’. Revela ser reflexivo quanto as modificações e ser prudente ao fazer testes preliminares. ‘Cada mudança é pensada por mim e a decisão só é tomada, após pesquisas sobre a anatomia humana’. Deseja ser inédito e ser recordista: ‘a unificação dos dedos [] ainda não tinha sido feita. [] fiz um período de adaptação. []. Eu realmente fiz acontecer’. Ele entrou para o Guinness como o homem com o maior número de implantes na cabeça. Ao ser realizador ativo de seus sonhos, saboreia ser realizado: ‘muito especial e surreal. Um sonho realizado []. Experiência que vou guardar para sempre []. Competir em algo que amo é muito bom’.
Red Skull enfatiza sua busca quanto a ser aceito por sua família tradicional, basilar para ele. ‘[] destacar que venho de uma família muito modesta e tradicional. Não foi fácil pra minha família aceitar meu estilo de vida []. Minha família é a única coisa que importa. Se [meu filho] me aceita e me ama, não me importo com os outros. O que importa para mim é ser feliz e me aceitar. Sempre seremos julgados’. Dessa forma, ele revela ser independente da opinião alheia, que julga tudo sempre. Ser determinado visa ser realizador de seu desejo. ‘[] somos os únicos que podemos conseguir o que queremos. Decidi ser quem sou e me sinto bem comigo. Sempre me senti atraído por sua forma única, sua personalidade extrovertida e sua singularidade’. Ser autêntico e ser educador A despeito de sua aparência incomum, ele se diferencia da ótica nazista e busca educar os demais: ‘A única coisa que não temos em comum é a ideologia nazista. [] pra educar as pessoas’.
Na parceria com o modificador, ele busca ser inédito e ser singular. ‘Queríamos fazer algo único. [] o Red Skull [] um projeto de vida que estávamos planejando há muitos anos. Adicionei outras transformações para [] dar individualidade a ele’. Essa paixão lhe permite aceitar a dor, que se conjuga ao desejo de ser aceito pela família - flexível e amorosa ante suas modificações. ‘É uma paixão. A dor faz parte da busca pelo sonho. Faz parte da atração’. Ele demonstra ser sensível diante do choque da família, sendo o amor e a aceitação do filho vitais para ele. ‘O impacto [] foi chocante para [minha família], mas eles se habituaram muito facilmente ao meu novo visual. Meu filho sempre me diz que sou seu superpapai’. Respeita o desejo singular do filho de fazer ou não as modificações: ‘se ele quiser fazer uma jornada semelhante, ele deveria pensar bem sobre isso’. Ainda que suas modificações sejam vitais para ele, parece minimizar sua radicalidade e sua marca pessoal - inclusive trocando eu por você: ‘eu não me vejo diferente de quem era antes. É como se você fizesse uma cirurgia de mama. O que você fez foi uma mudança estética, mas não é pessoal, o ser humano será sempre o mesmo’. Sua rede de apoio social propicia ser independente dos parâmetros de ser melhor ou pior, mas ressalta ser normal: ‘[] muitas pessoas me apoiando e o que estou fazendo não me torna uma pessoa melhor ou pior. Meus dias são bastante normais e minha vida no estúdio de tatuagem combina bem com meu visual’. Assume seu desejo vital e seu visual sintoniza com seu ambiente de trabalho - quiçá comparado ao banco por sua informalidade e pelo alto custo das modificações: ‘Sempre fui mais inclinado a vilões do que a super-heróis. []. É pra isso que eu vivo. Meu corpo é meu uniforme, minha carta comercial. Não dá para ir a um estúdio de tatuagem e ver os funcionários como se estivessem num banco’.
Dark Vírus ama filmes de terror e gosta de provocar medo. ‘Eu não me importo com a opinião das pessoas, gosto de causar medo’. Valoriza-se ao ser corajoso e ser invejado por alguns: ‘[] quem fala mal de mim, sente inveja por não ter coragem de fazer o que quer com o próprio corpo’. Seu desejo de transformação corporal é antigo, tendo sido planejado para chegar ao resultado bastante satisfatório. ‘Desde criança, sempre quis ser uma pessoa diferente. A aparência humana não estava me agradando, []. Eu tinha que me transformar, mas primeiro começou na mente. Depois veio a parte estética, que ficou incrível e maravilhosa’. ser planejador e ser reflexivo está satisfeito inclusive como profissional. ‘Tem que ser muito pensada. É aquilo que você quer e sabe os riscos []’. ‘Minha vida mudou para melhor, porque sou reconhecido no cenário de tatuagem e piercing no Brasil’. Seu desejo de se destacar no âmbito mundial, envolve o encanto com modelos radicais: ‘Com o Guinness, me interessei pelas pessoas que mudaram completamente a imagem. Gostava das coisas mais pesadas, radicais e trash. Por isso, me encantava com esses caras [Homem Gato, Homem Enigma e Homem Lagarto]’. Seu primeiro modelo e incentivadora quanto à arte foi sua mãe: ‘Desde muito novo, [] minha mãe [] sempre incentivou meu gosto pela arte. Com suas variadas referências culturais, o misticismo e a primazia da mudança interior sobre a exterior guiam suas mudanças; ‘eu tinha um desejo enorme de fazer isso em mim’: orelhas alargadas []. deuses orientais []. índios Caiapó. Todas as modificações têm significado místico. [] rito de passagem indígena []. Se não doer, não vale a pena. [] Comece a mudança pela mente. Não precisa mudar a aparência, se você não mudar o interior’. Na esteira de seu gosto por amedrontar as pessoas, fica implícito seu desejo de que algo ruim aconteça a quem não gosta dele: ‘desejo o bem a quem me quer bem’.
Com base nos relatos em foco, não há quaisquer indícios de que os seis adeptos da modificação corporal extrema tenham o transtorno dismórfico corporal, pois não mencionam forte angústia com defeitos inexistentes na aparência, tampouco descrevem partes do corpo como feias, deformadas ou monstruosas. Descarta-se, ainda, o transtorno da personalidade borderline, padrão de relacionamentos instáveis, com alteração na auto-imagem, no afeto, na cognição e no comportamento (DSM-V, 2014).
As modificações corporais não convencionais são feitas para projetar externamente uma imagem interna, inscrevendo o corpo com símbolos sobre como o sujeito se percebe e como deseja ser percebido pelo outro. Alguns sentem que sua apresentação exterior ‘normal’ não corresponde à sua percepção interna de como deveriam ser. A autoexpressão - compartilhamento da inscrição simbólica visível e a busca do relacionamento consigo e o outro - caracteriza o corpo fora do mainstream. As imagens de controle - como as pessoas deveriam ser - podem ser reapropriadas e transformadas em símbolos poderosos de libertação, resistência e recuperação pelo grupo estigmatizado (Thomas, 2012). Ainda na defesa dessa escolha, a cultura de massa busca a homogeneização, a disciplina, a dominação e a domesticação do corpo e da subjetividade. Posto isso, as modificações corporais rompem algumas práticas da submissão e as normas vigentes de controle do corpo da sociedade (Angel, 2014). Ultrapassando o limite, excedendo a fronteira e transbordando de si, as formas, cores e texturas distintas da espécie humana inseridas no corpo demarcam sua distância do padrão de beleza vigente (Pires, 2019). Contudo, não há indícios que confirmem Tomazett (2021) quanto a modificação corporal extrema configurar protesto, contravenção, revolta, ousadia e desejo de chocar, dada a sociedade capitalista. Exceto as menções de Black Alien e Dark Vírus quanto a gostarem de produzir medo nas pessoas e chocá-las, os demais parecem integrados consigo e com sua comunidade. No tocante a Dark Vírus, suas marcas corporais resgatam conhecimentos primordiais e estabelecem uma ligação entre o indivíduo e o cosmo. Há um caráter místico subjacente às práticas corporais, visando a transcendência e a ruptura dos limites do corpo, após os rituais de passagem. As intervenções buscam unificar o corpo físico e o corpo espiritual mental (Pires, 2019).
Para Lacan (1988), certas modalidades de constituição subjetiva instauradas no corpo não se acomodam aos padrões de subjetivação hegemônicos. As subjetividades à margem do padrão hegemônico, marcadas pelo excesso e pela exuberância, são constitutivas do estofo humano - não patológicas. Contudo, a obsessão e a compulsão pelas transformações corporais, bem como sua radicalidade - que se opõe à fisiologia do corpo - são dignas de nota.
Considerações finais
Circunscrevendo um domínio entre o fascínio e o horror, o fenômeno atemporal das modificações corporais tem resvalado para o das modificações corporais extremas, cujas especificidades advêm de mudanças sócio-históricas e de avanços médicos necessários para fazê-las. O fascínio pela modificação corporal extrema prevalece nos adeptos e o horror a ela tende a prevalecer nos não-adeptos. Na contemporaneidade, a constituição da subjetividade de seus adeptos traduz uma nova forma de subjetivação e de identidade, que busca a si na imagem corporal inédita.
A radicalidade das modificações tem se apoiado na estrutura cirúrgica e nos cuidados pós-operatórios, bem como no conhecimento técnico de profissionais competentes. Por fim, essas considerações acerca dos lampejos do eu demarcam que sua obtenção em reportagens curtas é mais restrita e limitada do que o acesso ao eu do sujeito, nas várias sessões de análise.
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