Flashes do eu ferido de incels extremistas

Introdução

Este trabalho enfoca algumas representações do eu ferido de incels extremistas, sob o prisma teórico da psicanálise. A referência aos flashes designa a obtenção de elementos parciais de sua vida mental, mediante reportagens de jornais online, publicadas em português e em inglês. Na seleção desses jornais, priorizam-se aqueles de maior credibilidade junto à classe jornalística. Para as informações de cunho científico, livros e artigos científicos são acrescentados. O termo extremista se aplica aos assassinatos em massa cometidos por cinco incels - pequena parcela desse amplo grupo.

A princípio, apresentam-se a definição de incel e sua inserção em movimentos de radicalização online. A seguir, estudos acerca de assassinos em massa reportam seu narcisismo, demandando pensar o transtorno de personalidade narcisista. Dado que dois incels extremistas tem Asperger, o transtorno do espectro autista é apresentado. Logo adiante, a misantropia - condição apresentada pelos cinco incels - é discutida. Ao lado desses aportes teóricos, as concepções da autora sobre o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional ajudam a compreensão desse tema. Na próxima seção, a obtenção de representações do eu ferido de incels extremistas deriva do uso do método clínico psicanalítico numa situação extraclínica - relatos dos incels sobre si e seus atos. Neles, há indícios de traumas com as figuras parentais, dentre os fatores que contribuem para esse fenômeno atual.

O termo incel é um diminutivo de ‘involuntary celibates’ ou celibatários involuntários - homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e que culpam as mulheres sexualmente ativas/stacys e os homens atraentes e sexualmente ativos/chads por sua condição. O adjetivo extremista remete aos incels, que cometeram assassinatos em massa e se suicidam em seguida. A despeito da apologia ao estupro presente nos grupos de incels, o apogeu de sua agressividade tem se desvelado em tiroteios e assassinatos em massa.

Radicalização online e incels

Na atualidade, a extrema direita não pode mais ser vista apenas sob o prisma da política clássica. Combinando vetores diversos, ela inclui métodos de manipulação pública e de prestidigitação da informação, que dificultam identificar onde termina a realidade e começa uma dimensão inventada/metaverso. A alegoria da pílula vermelha - suposta realidade verdadeira, mas cruel de Matrix - foi transformada em metáfora política e em arma na guerra cultural, proposta por um movimento online de direita radical. A manosfera constitui um conglomerado de sites, blogs, plataformas de imagens/chans e fóruns, nos quais os jovens despejam seus ódios, rancores, temores e reivindicações - disseminando teorias conspiratórias racistas, misóginas e antissemitas, com potencial para a violência. Nesse ecossistema digital de misoginia extrema, a red pill se transforma em ideologia extremista. Ela captura jovens brancos frustrados, raivosos e ansiosos com os avanços dos direitos de vários grupos e descrentes de uma futura condição econômica abastada. Uma suposta ditadura ginocêntrica aboliria os direitos dos homens e destruiria famílias tradicionais. A supremacia masculina - em polinização cruzada com outras ideologias extremistas - tem sido motor de atos de terrorismo da extrema direita e do extremismo violento ideologicamente motivado. Há relação entre a misoginia extrema, a extrema direita e diversos atentados.

Entre as subculturas online da manosfera, a inceldom envolve um longo histórico de extremismo violento ideologicamente motivado e atentados terroristas. Ele começou em 1997 com o projeto ‘Movimento dos celibatários involuntários’, que reunia pessoas sem relações afetivas e/ou sexuais. Logo, o projeto foi invadido por conteúdos de misoginia e uma amálgama de crenças extremistas, teorias conspiratórias, ideias de determinismo biológico, niilismo e misantropia. Para os incels, as mulheres são a causa de seu sofrimento e responsáveis pelo celibato involuntário dos menos favorecidos estética e geneticamente. Sua radicalização resvala para o racismo e a xenofobia: a relação de mulheres com negros e/ou imigrantes/homens inferiores, significa que os incels foram preteridos. De forma paradoxal, eles tendem à autovitimização e ao narcisismo: o mundo não lhes dá o merecido valor e seu status imutável de inferiores implica que nunca ascenderão na hierarquia masculina - pílula negra. Logo, a ideação suicida e a automutilação são recorrentes entre eles. Na incelsfera, a crença de que as mulheres são repulsivas, subumanas e/ou maquiavélicas alia-se a de que sistemas políticos autocráticos com hierarquias de gênero, classe e raça são melhores do que a democracia, pois, naqueles, as mulheres teriam que escolher os incels. No extremo da radicalização, eles desenvolvem imenso desprezo pelos seres humanos - homens atraentes, imigrantes, judeus, negros, LGBTQIA+. A glória advém de atos de vingança, com o maior número de vítimas possível. Em sua cosmovisão, o extremismo violento ideologicamente motivado é o ato supremo de purificação (Prado, 2022).

Estudos acerca de assassinos em massa

Estudos acerca de assassinos em massa sugerem que problemas mentais graves são fatores importantes em vinte por cento dos casos. Em contrapartida, as distorções de personalidade são muito mais comuns - crises de raiva, paranoia, mania de grandeza, sede de vingança, narcisismo e insensibilidade patológica. A característica de personalidade mais típica desses assassinos é a paranoia associada a uma insatisfação constante, segundo o Dr. Stone, psiquiatra forense. Complementando, Dr. Meloy, psicólogo forense, afirma que sua característica mais óbvia é a crença de que foram enganados ou traídos. Outras características incluem: enorme narcisismo, forte sentimento de injustiça e desejo de notoriedade. Além disso, o problema é visto de uma óptica bastante pessoal e geralmente envolve uma grande perda. Kabacznik acrescenta: ‘A misoginia sempre existiu. Mas a internet possibilitou que esses homens se agrupem, procurem semelhantes em vez de procurar ajuda. Em vez de serem encorajados a superar as decepções e os desapontamentos, eles encontram uma subcultura que os incentiva a afundar na própria amargura, que cria um ciclo vicioso de isolamento, decepção e ódio. No entanto, a misoginia, o ódio e os comportamentos destrutivos não podem ser justificados por doenças mentais. A perturbação desses jovens pode estar relacionada com doenças e traumas, mas também está sendo alimentada pela ideologia do grupo incel’ (Welter, 2022).

Do ponto de vista da comunicação não verbal, aqueles que cometem crimes violentos - particularmente tiroteios em massa, usam bombas e praticam atos terroristas - com frequência apresentam expressões de desprezo crônico, raiva crônica e desgosto crônico. Eles revelam sinais de aviso não considerados pelos demais, imitação e idealização de grandes atiradores por outros e sugerem que o acesso às armas não constituí problema para eles, pois, muitas vezes, usam as armas de seus pais (Body language sucess, 2015).

Transtorno de personalidade narcisista

Tendo por horizonte o narcisismo dos assassinos em massa, cumpre estudá-lo.

O transtorno de personalidade narcisista designa um padrão de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. As dificuldades para regular a autoestima demandam afiliar-se a outras pessoas ou instituições, bem como desvalorizar os outros para manter sua superioridade. Sua prevalência é maior entre os homens do que entre as mulheres. As comorbidades incluem: transtorno depressivo, anorexia nervosa, transtorno de uso abusivo de substâncias ou outro transtorno - histriônico, borderline, paranoico. Com relação à etiologia, o componente hereditário se alia à crítica excessiva ou elogios e admiração excessivos dirigidos à criança. Sua crença quanto a ser superior, original ou especial favorece sua arrogância e sua altivez. Têm fantasias sobre seu grande valor e grandes realizações - inteligência ou beleza avassaladora, prestígio, influência e viver um grande amor. Deseja ser incondicionalmente admirado, ligada à crença de merecimento. Deseja se relacionar com pessoas extraordinárias e talentosas como ele, para melhorar sua autoestima. Sua frágil autoestima depende da consideração positiva do outro. Sensível às críticas e ao fracasso, sente-se humilhado e derrotado com frequência. Pode responder com raiva, desprezo, contra-atacar de modo violento e evitar situações em que pode falhar - para proteger sua grandiosidade (DSM-5, 2014).

Transtorno do espectro autista

Considerando-se que dois incels extremistas são portadores da síndrome de Asperger, passa-se a estudá-la.

O DSM-5 prescreve que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) acarreta déficits na reciprocidade socioemocional - na comunicação ou na interação social - e comportamentos repetitivos. Dados seus diferentes graus de comprometimento, há pessoas com dificuldades pouco perceptíveis de socialização e outras com grande afastamento social, deficiência intelectual e maior dependência de cuidados dos outros. A Síndrome de Asperger constitui o autismo de nível 1, o grau mais leve em comparação com os níveis 2 e 3. A criança com Asperger tem interesses restritos e não interage como as demais (DSM-5, 2014).

Misantropia

Tendo em vista que os incels acabam tornando-se misantropos, cabe refletir acerca dessa condição.

Segundo o dicionário Houaiss (2023), a misantropia significa ódio à humanidade ou falta de sociabilidade. A palavra tem sua origem nas palavras gregas misos equivalendo a ódio e anthropos significando homem. A misantropia descreve a descrença na humanidade e a filantropia se baseia na crença da ajuda pessoal para a melhoria da vida das pessoas.

A misantropia descreve o ódio pela humanidade. Seu perfil inclui pessimismo, tristeza, solidão e, não raro, genialidade em atividades intelectuais e artísticas. Dessa forma, uma pessoa misantropa é vista geralmente como anormal ou divergente dos padrões sociais. Por vezes, é vista como especial ou um gênio.

Para Harris (2022), a misantropia não tem um significado único e fixo, arquetípico ou valor moral no período moderno. Ela suscita questões filosóficas - vício e virtude, razão e loucura, autenticidade e inautenticidade, indivíduo e sociedade, condições sociais para a virtude, concepções do eu e formação moral do indivíduo. Há uma longa história de patologização da misantropia como transtorno mental. Certos misantropos listam as falhas humanas, sob a influência cristã de vícios e pecados capitais. Porém, a condenação da humanidade pode coexistir com a compaixão pelas pessoas que sofrem. A sinceridade e a franqueza marcam os misantropos virtuosos, com compromisso com a verdade. Logo, há modos mais gentis de misantropia marcados por uma postura tolerante e esclarecida. Por outro lado, misantropos podem estar fixados no mundo exterior, sendo incapazes de introspecção e autocrítica.

Na antiga Grécia, a misantropia remonta a Tímon de Atenas, peça que narra a trajetória de um jovem mecenas, que sofreu com a ingratidão dos amigos, se isolou e passou a desconfiar de todos. Sócrates entende que a misantropia ocorre quando a pessoa deposita muita confiança em outra. Quando essa confiança é quebrada, resulta uma desconfiança intensa e irreversível. Para Platão, na misantropia, uma pessoa, sem discernimento, confia noutra em demasia, crendo que ela é verdadeira, razoável e confiável. Após várias decepções com amigos, ela passa a odiar a todos. Até o século XVIII, há poucas menções do termo e seu foco abarca sátiras com misantropos fictícios - Timon. Mais tarde, os misantropos são reais - Rousseau e Swift. A misantropia tornou-se um tema importante do século XVIII em diante. No Iluminismo, as críticas à humanidade focam em pessoas específicas. As falhas aparecem em pessoas patologicamente más ou sob condições sociais e históricas bastante ruins. Como ódio à humanidade, dissocia-se do ódio de pessoas reais, podendo-se admirar aquelas livres das falhas da massa. A reforma do mundo - ativismo moral, religioso ou político - convive com a acomodação à corrupção do mundo (Harris, 2022).

Na sociologia, a misantropia surge a partir do desencantamento com o mundo. A pessoa pode perder a esperança na melhora de pessoas egocêntricas, próximas a ele. Além disso, o capitalismo privilegia a meritocracia, o livre mercado e a competição. A misantropia é uma anomia social, dado o estado turbulento da sociedade e transformação de tradições. Na psicologia e na psiquiatria, a misantropia pode surgir por traumas, decepções e outros episódios. Ela não é uma doença psicológica e sequer um termo científico que descreve um estado mental (Doctoralia, 2023).

Dentre suas causas, há o individualismo e a falta de solidariedade do capitalismo; o desencantamento com o mundo, com relações interpessoais frias e voltadas para necessidades práticas; descrença no progresso humano; decepções pessoais, generalizadas para a humanidade; traumas, que causam tristeza, solidão, revolta. Suas características são: falta de ânimo e interesse pelas relações sociais; desconfiança das pessoas; estilo de vida solitário, com habilidades e trabalhos ligados à arte ou à intelectualidade; outsiders: pessoas que não se inserem nos padrões sociais.

Cottom (2006) propõe que, no pensamento contemporâneo, o inumano detém papel significativo na definição de humanidade. O inumano não significa crueldade ostensiva ou extraordinária. Abrange também o sobre-humano, o sobrenatural, o demoníaco e o subumano; os reinos do artifício, da tecnologia e da fantasia. Nesse contexto, a misantropia pode ter fontes morais admiráveis, quando começa pela virtude - generosidade em Timon e razão em Gulliver - mas sofre o abuso dos outros.

O desejo, o sistema representacional e os traumas

Para se examinar os flashes do eu ferido de incels extremistas, faz-se mister recorrer a alguns operadores teóricos - de base psicanalítica.

O desejo configura-se como uma ampla gama de representações e de afetos, que rege o conjunto de forças psíquicas. Potencialmente, ele fomenta movimentos psíquicos do sujeito em direção aos seus objetos de satisfação. Em geral, funciona como vetor de orientação desses movimentos, de modo a se objetivar no mundo. Em sua constituição, vivências parentais e ancestrais marcaram o sujeito e seu desejo. Desse modo, seus desejos e seus sistemas representacionais se imbricaram nessa relação.

O sistema das representações constitui uma formação psíquica, que representa os conteúdos mentais. O desejo e o sistema representacional da criança ligam-se aos dos objetos primários. No adulto, seu desejo se realiza de modo ‘fluido’ ou fica paralisado, com base no material psíquico herdado dos pais. Sob esse background, o potencial representativo do sistema é alterado pelo trauma. Suas falhas representativas favorecem o sofrimento psíquico, que se perpetua para muito além do tempo-espaço do trauma.

O trauma do absoluto compreende as representações sobre-investidas por ódio e horror: ser desamparado, abandonado, rejeitado, fracassado, derrotado, não-amado, perdedor, impossível, entre outras. Abrange ainda as representações de tempo - para sempre, eterno, infinito; espaço - sem lugar no mundo e estados de desorganização da matéria - ser morte, estar morto. O sobreinvestimento refere-se ao intenso aporte de ódio e horror, ligado a elas. Essas representações e esses afetos - ódio e horror - são antagônicos à realização do desejo do sujeito. Contraponto a isso, ser amado, ser competente, ser inteligente, ser reconhecido, ser valorizado, ter méritos pessoais, entre outras - investidas por amor - são representações e afeto harmônicos com seu desejo, em seus fundamentos originais e autênticos (Almeida,2005, 2016).

E, ainda, na construção do desejo e do sistema representacional da criança, ocorre a nomeação de suas características pelos pais. Eles podem designá-la como: anjo ou praga do inferno, flor ou verme, boneca ou monstrenga, cachinhos dourados do papai ou neguinha do cabelo de piaçaba, fada com cabelos dourados ou bruxa do cabelo desgrenhado. Em cada par, as segundas representações são traumáticas, depreciativas e alienantes do desejo. Nessa nomeação depreciativa, seus vários talentos ficam travados. Seu desejo abarca o conflito entre seus impulsos e características frente à projeção/invasão de representações depreciativas sobre ela. Nessa medida, seus estados confusionais surgem quando ela busca satisfazer seu desejo, mas introjetou as representações alienantes do desejo. Fortes gradientes de ódio no sujeito se associam à idealização e à perseguição do objeto. Disso decorre a projeção de representações centrais para efetivar seu desejo num objeto idealizado-persecutório, quando adulto. Uma criança representada pelos pais como gulosa e balofa pode projetar ser bela, ser magra e ser elegante, numa amiga idealizada - quando adulta. Outra criança inteligente e focada - quanto às habilidades intelectuais - pode se sentir, se representar e se comportar aquém de seu potencial, ao ser nomeada como burra e descabeçada. A identificação da criança com essas representações faz com que seu desejo não se diferencie do desejo parental. Elas enfraquecem a autonomia de seu desejo e seu vigor para materializá-lo na vida adulta.

Certas situações atuais - que se opõem ao desejo do adulto - reativam representações traumáticas do passado. As representações depreciativas - ser incompetente, ser estúpido, ser desastrado, ser cafajeste, ser terrível, ser um traste, ser problemático, ser desprezível, ser promíscuo, entre outras - são investidas por ódio. Elas imobilizam o sistema de forma mais branda que no trauma do absoluto, cujas representações são sobre-investidas por ódio. O sobreinvestimento de ódio nas do absoluto se diferencia do investimento de ódio nas depreciativas. Esses diferenciais de investimento sinalizam as alterações econômicas nas representações e as falhas representativas do sistema. Elas demandam muita análise, para deixarem de antagonizar as potencialidades e talentos do adulto (Almeida, 2005).

O desejo, os traumas e as alterações no sistema estão interligados aos flashes do eu ferido de incels extremistas.

Representações do eu ferido de incels extremistas/assassinos em massa

Visando pensar a arena psíquica de incels extremistas, recorre-se a reportagens de jornais online sobre eles, com reconhecida credibilidade junto à classe jornalística. Em ordem cronológica, as reportagens revelam representações/fragmentos/flashes de seu universo mental. Esses flashes do eu sinalizam que as reportagens, diferenciadas de sessões de análise, oferecem representações dispersas, parciais e limitadas da psique.

As aspas remetem às frases emitidas pelos cinco incels. O itálico destaca as representações mentais expressas por eles enquanto flashes de seu eu ferido. Os colchetes eliminam partes do relato desnecessárias para essa reflexão. As letras maiúsculas utilizadas pelos incels são encontradas em seu texto original.

Marc Lépine matou quatorze mulheres, tendo ferido dez mulheres e quatro homens em Montreal, em 1989. Seu pai era autoritário, possessivo e violento com a esposa e os filhos. Ele também foi negligente e abusivo com os filhos, abandonando-os quando Marc tinha sete anos. Ele nunca mais viu seu pai e recusava-se a falar dele. A instabilidade e a violência da família incluíram mudar frequentemente de cidade e a apreensão da casa e dos bens, quando o pai não pagou a hipoteca. Quando ele não pagou a pensão alimentícia, sua mãe voltou a trabalhar e as crianças ficavam com outras famílias durante a semana, vendo-a no final de semana. Depois do divórcio, ele voltou a morar com a mãe e mudaram para uma casa de classe média. Aos quatorze anos, ele mudou seu nome para Marc Lépine, citando seu ódio ao pai como razão para usar o sobrenome da mãe. Sua baixa auto-estima era exacerbada pela acne crônica e sua irmã humilhou-o publicamente por isso e por sua falta de namoradas. Ele fantasiou sua morte e ficou muito feliz quando ela foi para um abrigo por comportamento delinquente e abuso de drogas. Quando adolescente, ele usava um rifle de ar, para atirar em pombos. Ele gostava de filmes de terror e admirava Hitler. Ele não foi aceito nas Forças Canadenses por dificuldades com autoridades e por ser antissocial. Na fase adulta, viveu ‘sete anos sem alegria’, foi demitido do hospital por comportamento agressivo, desrespeito aos superiores e descuido no trabalho. Ele ficou furioso com sua demissão. Queria uma namorada, mas não se sentia à vontade com as mulheres. Ele mandava nelas e mostrava seu conhecimento para elas. O massacre foi planejado por vários meses, com a intenção de morrer em ‘um incêndio de glória’. Em sua carta de suicídio, ele alegou motivos políticos, culpando as feministas por arruinar sua vida. ‘Elas sempre me enfureceram, querem manter as vantagens das mulheres (seguro mais barato, licença maternidade prolongada etc.) e monopolizar as dos homens’. Sua antipatia incluía ainda mulheres de carreira e em ocupações tradicionalmente masculinas, que deviam cuidar da família. Sua mãe perguntou-se se ele sofreu um distúrbio de apego devido ao abuso e ao abandono na infância, se ele a via como feminista e se o massacre era uma tentativa inconsciente de se vingar de sua negligência, ao seguir sua carreira. O psiquiatra da polícia sugeriu que ele tinha um sério distúrbio de personalidade, pois escolheu a estratégia de múltiplos homicídios e suicídio. Sua extrema vulnerabilidade narcísica incluía fantasias de poder e sucesso, altos níveis de autocrítica e dificuldades com rejeição e fracasso. Sensação de impotência e incompetência foram compensadas por uma vida imaginária violenta e grandiosa. Outros psiquiatras sugeriram que ele era psicótico, sem contato com a realidade, tentando apagar as memórias do pai brutal e ausente, enquanto se identificava inconscientemente com uma masculinidade violenta. Além disso, ele sofreu várias perdas e rejeições em sua vida (Montreal Massacre, 2017).

George Sodini matou três mulheres, feriu nove numa academia de ginástica e se suicidou em 2009. Ele tinha um relacionamento distante com o pai, raiva da mãe e do irmão. Nos posts raivosos em seu blog, ele revela sua fixação nas rejeições de mulheres e sua frustração sexual.

‘Muitas garotas são tão belas como se não fossem humanas, são muito gostosas/comíveis’. [] ‘As mulheres simplesmente não gostam de mim. Existem trinta milhões de mulheres desejáveis nos EUA []. Todas as noites, vou pra cama sozinho. Sem sexo desde julho de 1990. Sem namorada desde 1984. Não sou feio ou tão esquisito. Prova de que sou um erro total. Garotas e mulheres não me olham uma segunda vez. Há algo muito errado comigo’.

‘Um homem precisa de uma mulher para ter confiança, [] pra passar a noite e que também é uma amiga. Esse tipo de vida é um mundo fechado, do qual sou totalmente excluído. Os outros rapazes conseguem fazer isso com sucesso. Meu pai nunca - nem uma vez - conversou comigo e me disse o que ele sabia. Ele foi apenas um inútil doador de esperma. Meu irmão sempre tentou me embaraçar ou desencorajar meus esforços quando eu buscava conseguir coisas, especialmente garotas. O resultado é que estou aprendendo o básico por tentativa e erro aos quarenta, desencorajado. []

Mãe - A CHEFE central. Não a cutuque ou ela ficará louca e vingativa por anos, ela é a Chefe acima de todos os Chefes.

Meu irmão - CHEFE []. Gostava de embaraçar rapazes na frente das namoradas. O maior e o mais autocentrado otário, vai bem financeiramente.

‘O futuro nada reserva para mim, eu nunca passei um fim de semana com uma garota. Eu não tenho filhos, amigos íntimos, nada; se você não tem nada, você nada tem para perder. É difícil viver sentindo uma corrente subterrânea de medo, preocupação, descontentamento e desamparo. Eu me masturbo desde os 13. Obrigada mãe e irmão e pai por ignorarem-me COMPLETAMENTE ao longo dos anos, todos vocês me ajudaram PROFUNDAMENTE a ser assim.

À primeira vista, Elliot Rodger parecia um garoto privilegiado de Hollywood. Contudo, sua vida foi influenciada pelos altos e baixos na carreira do pai como fotógrafo e diretor freelancer. Seu filme custou US$ 200.000 do dinheiro de uma casa - anos de renda perdida. ‘Tudo que meu pai me ensinou foi errado. Ele me criou para ser um cavalheiro educado e gentil, que não vence no mundo real. As garotas [] migram para o macho alfa, que parecem ter mais poder e status. Todos os garotos populares eram [] idiotas detestáveis, mas pra eles todas as meninas corriam. [] o mundo era um lugar brutal e os seres humanos eram animais selvagens. Tudo o que eu queria era me encaixar com os garotos populares, mas fui ridicularizado e insultado por eles. Eles me fizeram sentir tão inferior e indesejável. Eu nunca vou esquecer essa experiência. [] Meu pai estava tão envolvido com seu trabalho fracassado que não se importava com a minha vida. Se meu pai fracassado tivesse tomado decisões melhores na carreira, não desperdiçaria dinheiro naquele documentário estúpido. Eu o amaldiçoei. Ele nunca me preparou para um mundo tão cruel, nunca me avisou que se eu não atraísse garotas, minha vida cairia num poço miserável de desespero! [] Sua segunda esposa não só me expulsou da casa do meu pai, como me proibiu de ir lá, mesmo pra uma visita curta. Ele não fez nada para impedi-la, sendo o homem fraco que é. Eu sou o filho mais velho! A casa deveria ser MINHA antes dela! Qualquer respeito que eu ainda tinha por ele desapareceu completamente. Senti-me traído e humilhado. [] Meu pai estava morto para mim. Minha mãe era tudo que me restava neste mundo sombrio.

Minha mãe me contou que eles estavam se divorciando; ela que antes me disse que isso nunca aconteceria. Ela sabia do que eu gostava e do que não gostava e fazia de tudo para tornar minha vida agradável e prazerosa. Ela sempre me dava o que eu queria, na hora que eu queria. Na casa dela, todas as minhas necessidades eram atendidas com excelente precisão. Ela se entregou a mim mais do que meu pai e a segunda esposa jamais fizeram. []. Ela me pressionava pra conseguir um emprego e nunca me deixava em paz. Nós brigávamos muito e morar com ela se tornou um aborrecimento extremo. [] Eu queria que ela tivesse se casado com um homem rico. Eu continuei a incomodá-la pra fazer isso e ela recusou. Eu sempre vou me ressentir dela por isso. Juntar-me a uma família de grande riqueza teria salvado minha vida. Eu teria um status alto o suficiente para atrair lindas namoradas e viver acima de todos os meus inimigos. Todos os meus terríveis problemas teriam sido aliviados instantaneamente. []. Pra me deixar mais confiante, minha mãe me deu um BMW. []. Ter um carro melhor do que a maioria me fez sentir mais confiante. Ela devia ter comprado este carro pra mim antes. []. Eu odiava o namorado da minha irmã. Falei pra minha mãe bani-lo de casa, mas ela não atendeu minhas exigências. Pior, ela falava dele com admiração. Um inimigo havia se infiltrado na casa de minha mãe, único lugar em todo o mundo onde sempre busquei refúgio da injustiça. As coisas estavam ficando muito fora de controle.

Em 2014, ele feriu quatorze pessoas e matou outras seis a tiros e facadas, na Califórnia, suicidando-se em seguida. Considerava-se ‘o que há de mais próximo a um Deus vivo’ e o ‘ideal e magnífico cavalheiro’. Em seu manifesto misantropo - Meu Mundo Distorcido - encontra-se: ‘Na faculdade, [] todos experimentam sexo, diversão e prazer. Mas eu tive que apodrecer na solidão. Não é justo. Vocês, garotas, [] deram sexo e amor a outros homens. Tenho 22 anos de idade e ainda sou virgem, nunca beijei uma menina. Tem sido muito torturante. É uma injustiça, um crime. Eu sou o cara perfeito, o mais perfeito cavalheiro. [] vou matar as vagabundas dissimuladas e frescas, que eu desejei tanto. Todas me rejeitaram e me olharam como um homem inferior. Vocês verão que eu sou o mais superior dos machos alfa. Vou matar os caras populares, [...] que sempre me rejeitaram e me trataram como um rato. Hoje eu serei um deus comparado a vocês, animais. Eu queria sexo, amor, afeto e adoração. Todas as meninas me trataram como lixo. Vocês acham que eu não mereço vocês. A humanidade é uma espécie nojenta, miserável e depravada. Se eu tivesse poder suficiente, reduziria vocês a pilhas de crânios e rios de sangue. Eu odeio todos vocês. Vocês merecem a morte’.

Cristopher Harper Mercer assassinou nove pessoas, feriu oito e se suicidou no Oregon em 2015. Em seu manifesto, ele diz: ‘eu sempre fui a pessoa mais odiada do mundo. Desde que cheguei a esse mundo, eu tenho estado sob cerco. Sob ataque []. Toda minha vida tem sido um empreendimento solitário. Uma perda depois da outra. E aqui estou eu aos 26, sem amigos, sem trabalho, sem namorada, virgem. [] essa sociedade gosta de negar a pessoas como eu, essas coisas. Pessoas da elite, que permanecem com os deuses’. Tem muita animosidade contra os negros.

Sua mãe disse: ele nasceu com bastante raiva e era perpetuamente louco com o mundo. Ambos tinham a síndrome de Asperger, que pode limitar o desenvolvimento social e levar a colapsos do comportamento. Aos dezoito, ele desistiu dos medicamentos por causa dos efeitos colaterais. Ele era recluso em casa, sempre usando as mesmas botas de combate e calças do exército. Segundo os vizinhos, ele colecionava armas e regularmente ia a um stand de tiros com a mãe. Mãe e filho compartilhavam o fascínio por armas. Segundo seus posts, ela mantinha armas em casa - rifles AR15 e AK7 junto com uma Glock - tinha orgulho de seu conhecimento acerca delas, bem como da habilidade e do conhecimento do filho das leis sobre armas. E, ainda, postou: ‘ninguém vai invadir minha casa, sem ser convidado e admitido’. Ele progressivamente ficou interessado em perfis de atiradores, raivoso por não ter namorada e amargo com o mundo, que trabalhava contra ele. Num site, postou: ‘procuro alguém que compartilhe minhas crenças e seja similar a mim, eu gosto de filmes de horror e meus hobbies são matar zumbis. Aos dezesseis, depois que os pais se divorciaram, sua mãe o protegia de crianças falando alto e de cachorros latindo.

Jake Davison matou cinco pessoas - inclusive sua mãe - no Reino Unido e se suicidou em 2021. Ele tinha porte de arma de fogo. Em um vídeo, ele falou: ‘Estou socialmente isolado, sou virgem, não consigo atrair mulheres. Às vezes, penso em mim como o Exterminador do Futuro, [] tentando cumprir sua missão’. Noutro vídeo, falou: ‘eu me sinto derrotado pela vida, sou gordo e virgem e é difícil ter força de vontade, quando a vida nunca me recompensou. Não tenho mais vontade de fazer nada. Sempre na mesma casa, na mesma situação, na mesma posição’. Minha mãe é vil, disfuncional e caótica’. ‘A pessoa não atraente não merece amor e está destinada a ser infeliz e fracassada, cada vez que procurá-lo. Em meio a isso, ele recebeu apoio de saúde mental e sua mãe teria lutado para obter ajuda para ele.

Discussão

Nesta seção, a análise do discurso dos cinco incels e de suas referências aos pais permitem discernir suas dificuldades nas relações primárias, enquanto fator importante para sua formação e seus atos extremistas.

A partir do relato sobre Marc Lépine, aventa-se a hipótese de que suas representações incluíam: ser abandonado, ser violentado, ser submetido, ser impotente, ser negligenciado, ser perdedor, ser instável. A ascensão profissional e financeira de sua mãe pode tê-lo feito se sentir abandonado e negligenciado por uma feminista, que prorizou sua carreira. Com base na avaliação dos psiquiatras, ele se sentia bastante vulnerável na realidade, suscitando como defesa ser poderoso e bem sucedido na fantasia. Dessa forma, as representações do trauma do absoluto - ser abandonado, ser rejeitado, ser fracassado - se juntaram às representações autodepreciativas - ser vulnerável, ser impotente, ser incompetente. Além disso, ser homem e ser grandioso demandavam ser violento. Portanto, a magnitude do ódio em sua psique era intensa (Almeida, 2005).

Do discurso de George Sodini destaca-se sua idealização da beleza feminina num plano sobrehumano: ‘Muitas garotas são tão belas como se não fossem humanas’. Sua estimativa do número de mulheres desejáveis - trinta milhões - assume uma dimensão colossal irreal, porque ele não foi efetivamente rejeitado por todas elas. De sua avaliação estética relativamente benevolente - ‘não sou feio ou tão esquisito’ - ele passa a um nível de desvalorização avassaladora de seu eu: ‘sou um erro total e há algo muito errado comigo’. Frente a tamanha dor psíquica, a mulher seria uma espécie de talismã: ‘homem precisa de uma mulher pra ter confiança’. Como sua mãe foi dominadora - não amorosa, não confiável e incapaz de valorizar seus talentos - formaram-se as representações de ser impossível ter sucesso no mundo: ‘esse tipo de vida é um mundo fechado, do qual sou totalmente excluído’. A isso se somou o pai distante inútil doador de esperma e o irmão, que o impedia de buscar o que desejava. Disso resulta a ironia de seu agradecimento à família, destacado em letras maiúsculas: obrigada por me ignorarem COMPLETAMENTE, vocês me ajudaram PROFUNDAMENTE a ser assim. Ser totalmente excluído é uma representação do trauma do absoluto. Portanto, seu sofrimento tem ligação com as relações familiares e com sua herança psíquica (Almeida, 2005).

Eliott Rodger evidencia seus intensos conflitos na relação com seu pai e sua madrasta. No que tange à mãe, ela constituiu seu porto seguro. Contudo, ao que parece, as provisões materiais fornecidas por ela para ele superar questões internas - BMW para garantir a segurança do filho - e a falta de maturidade do filho frente às frustrações revelam falhas nessa relação. O papel e continência do terapeuta quanto ao seu sofrimento também suscitam indagações.

Sendo assim, ele oscilava entre o máximo grau de valor de seu eu - ‘o mais próximo de um Deus vivo, ideal e magnífico cavalheiro, o cara perfeito, o mais perfeito cavalheiro, o mais superior dos machos alfa. um deus’ - e o mínimo grau de valor – ‘homem inferior, rato e lixo’. As mulheres altamente desejadas foram transformadas em vagabundas dissimuladas e frescas. Os caras populares foram convertidos em animais. Contudo, ele se sentia tratado como rato e lixo. Sua intensa rejeição demandava a adoração como contrapartida. A progressão da idade cronológica como marco social se confunde com a iniciação sexual como ritual de passagem para uma masculinidade valorizada: ‘sou virgem, nunca beijei uma menina’. Quiçá, ele se sentia um menino diante das mulheres. Seu sofrimento psíquico se generalizou, à medida que partiu de um plano de grande dor – ‘todos e todas me rejeitaram’’ - e se alastrou para a humanidade nojenta, miserável e depravada’. O poder destrutivo e fragmentador de seu ódio se refletia em pilhas de crânios e rios de sangue dos outros (Almeida, 2005).

Mercer Harper sentia-se cercado por ódio e ataques desde sempre: ‘eu sempre fui a pessoa mais odiada do mundo, sob cerco, sob ataque’. Sentia-se solitário e perdedor: ‘uma perda depois da outra’. Ele culpava a sociedade/entidade abstrata pela perda de seus objetos de desejo: ‘eu aos 26, sem amigos, sem trabalho, sem namorada, virgem. Por outro lado, conceituava-se como pessoa da elite, próxima aos deuses’. Tendo Asperger, sua reclusão em casa e sua sensibilidade a sons altos - gritos de crianças e latidos de cachorros- permitem compreender a fala materna: ele nasceu bastante raivoso, era perpetuamente louco com o mundo. Ao lado da herança genética do Asperger, usar sempre as mesmas botas de combate e calças do exército, colecionar armas e regularmente ir a um stand de tiros associam-se à influência de sua mãe. Sendo assim, ele progressivamente ficou raivoso por não ter namorada e amargo com o mundo, que trabalhava contra ele (Almeida, 2005).

Jake Davison posicionava-se como: ‘socialmente isolado, virgem, não consigo atrair mulheres’. Seu sofrimento favorece sua identificação com o Exterminador do Futuro, ‘tentando cumprir sua missão’. Exterminar pessoas tem sintonia com: ‘eu me sinto derrotado pela vida, é difícil ter força de vontade, quando a vida nunca me recompensou’. Ser derrotado, estar paralisado em seu desejo de melhorar de vida se articula a ser estático: ‘sempre na mesma casa, na mesma situação, na mesma posição’. A isso se junta: ‘A pessoa não atraente não merece amor e está destinada a ser infeliz e fracassada, cada vez que procurá-lo. Provavelmente, esse conjunto de representações de seu eu se baseia na relação com sua mãe má, incapaz de amá-lo, de satisfazer seu desejo e de recompensar seus esforços: ‘minha mãe vil, disfuncional e caótica’. Logo, ser derrotado, estar paralisado, ser descrente, ser estático, ser repulsivo/não atraente, ser não amado, ser infeliz e ser fracassado consistem em flashes de seu eu ferido, construído na relação com sua mãe disfuncional e caótica (Almeida, 2005).

Demarca-se o intenso sofrimento psíquico dos incels com as pessoas, desde o início de suas vidas. Inúmeros fatores vêm se somar a essa condição.

Partindo-se de sua herança genética, faz-se necessário retomar seus transtornos.

Em todos eles, várias características do transtorno de personalidade narcisista aparecem: grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. Suas dificuldades quanto à autoestima demandam afiliarem-se a pessoas ou instituições, bem como desvalorizar os outros para assegurar sua sensação de superioridade. Sua crença quanto a ser superior, original ou especial favorece sua arrogância e sua altivez. Têm fantasias sobre seu grande valor e grandes realizações - prestígio, influência e viver um grande amor. Deseja ser incondicionalmente admirado, junto com sua crença de merecimento. Sua frágil autoestima depende da consideração positiva do outro, bem como sua autoimagem e senso de eu associam-se à admiração e estima do outro. Sensível às críticas e ao fracasso, sente-se humilhado e derrotado com frequência. Pode responder com raiva, desprezo, contra-atacar de modo violento e evitar situações em que pode falhar - para proteger sua grandiosidade (DSM-5, 2014).

Quanto ao transtorno do espectro autista, o DSM-5 afirma que acarreta déficits na reciprocidade socioemocional - na comunicação ou na interação social - e comportamentos repetitivos. A Síndrome de Asperger constitui o autismo de nível 1, o grau mais leve em comparação com os níveis 2 e 3. A criança com Asperger tem interesses restritos e não interage como as demais (DSM-5, 2014).

Distorções cognitivas ligadas à genética e à estética, igualmente, contribuíram para seu sofrimento psíquico. Configurando retratos de sua paradoxal repulsa e atração pelas mulheres, eles se revelam misóginos, à primeira vista e misantropos, sob um enfoque mais preciso. Concebem uma graduação de valor entre homens e mulheres a partir da estética e da raça, entendendo os belos e belas como geneticamente privilegiados. Nessa visão restritiva da genética, desconsideram que uma pessoa bela pode herdar uma doença rara e sofrer muito com ela. Nesse caso, essa herança genética impõe uma condição aquém do privilégio. Uma pessoa bela pode ser usada como mero objeto sexual e descartada depois, pode ser sequestrada para o tráfico sexual, entre outras situações possíveis. Além disso, ao exaltarem à enésima potência a condição de ser belo - pouco frequente na espécie humana - condenam ao sofrimento psíquico grande parte dela. Desconsideram, ainda, que pessoas não bonitas em termos de aparência podem ter herdado vários talentos e alcançar uma boa colocação no mundo.

Consideráveis conflitos familiares aparecem nos cinco rapazes, incluindo forte ódio a familiares e as demais pessoas. Além disso, a adesão ao mundo virtual incel potencializou suas reações patológicas em face de seu sofrimento. A esse respeito, Kabacznik (2022) afirma que a perturbação desses jovens pode estar relacionada com doenças e traumas, mas também está sendo alimentada pela ideologia do grupo incel.

Esse grupo contribuiu para que sua misoginia se potencializasse, chegando à misantropia. No tocante à sociologia, a misantropia surge a partir do desencantamento com o mundo. A pessoa pode perder a esperança na melhora das pessoas egocêntricas, próximas a ele. Além disso, o capitalismo privilegia a meritocracia, o livre mercado e a competição. A misantropia é uma anomia social, dado o estado turbulento da sociedade e a transformação de tradições. Na psicologia e na psiquiatria, a misantropia pode surgir por traumas, decepções e outros episódios. Ela não é uma doença psicológica e sequer um termo científico que descreve um estado mental (Doctoralia, 2023).

Considerações finais

Ao se examinar os perfis emocionais dos cinco incels misantropos, surgem a questão da herança genética de transtornos, a força destrutiva do ambiente familiar e o impacto das redes sociais em nossos dias. Elas viabilizaram que seus posts, com pedidos de ajuda, fossem disseminados, mas infelizmente, eles não foram devidamente ouvidos. Ao que parece, os relatos acerca de suas vidas e seus atos foram atravessados pelo estereótipo e pelo preconceito de eles serem homens desequilibrados e maus.

Sua misoginia se alicerçou em suas relações com suas mães e com mulheres jovens insensíveis e não empáticas. A generalização que transformou a misoginia em misantropia e as falhas na acolhida e na mudança de seu sofrimento pela manosfera e pelo inceldom fermentaram ainda mais seu sofrimento.

Os aportes teóricos, oriundos de diversas províncias do saber, permitiram uma visão complexa e mais ampla desse fenômeno contemporâneo, perpassado por intenso sofrimento psíquico dos incels e das pessoas ao seu redor.

Referências

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Isla Vista shooting: Elliot Rodger's elaborated attack plan.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 28/09/2023
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