Um céu azul (e branco?)
O absurdo sempre me deixa estupefato. A sensação arrepiante de questionar se aquilo que está se percebendo é aquilo mesmo, ou se são os sentidos pregando uma peça sempre me abisma. Quando experimento o absurdo das ironias espirituosas, isto é, informações ou eventos contraditórios que nos provocam o humor por justaposição causando uma situação absurda (como uma espécie eclipse improvável de significantes) somos capazes de fruir com alegria do momento.
Até ontem eu me sentia assim na rede do firmamento azul: navegar por apenas amenidades e ditos espirituosos. Uma confortável Àgora de familiaridade, respeito, consciência de classe e memes, onde o que é sério é tratado sem leviandade e o que é meme é tratado como meme, e não levado a sério.
Iludido
Esse lugar ainda não existe, embora parte de nós se engaje em tentar o criar. Eu oscilo entre acreditar que estamos caminhando nessa direção em alguns momentos, e em outros, sentir-me um utópico ingênuo que por proteção se esquece do lado perverso das gentes.
Os eventos que presenciei ontem me aturdiram. Lembrei-me o quanto experimentar a sensação de absurdo pode ser nauseantemente tóxica, e para uma pessoa brasileira como eu, há a tendência de uma má lembrança desse tipo de sensação. Eu imagino que eu não tenha sido o único a se sentir assim, sentir o absurdo ruim, detestável, impraticável, nesta última terça-feira, dia treze de julho.
Sim, meus consagrados, dia treze de julho, o dia em que se comemora o gênero musical nascido da guitarra potente de uma mulher negra, a incrível Rosetta Tharpe, uma verdadeira tempestade se formava no céu, demonstrando que qualquer nostalgia do "passarinho lá do início" ou de uma rede social atóxica, respeitável e fundamentalmente inclusiva está mais longe de nós do que jamais esteve.
A rede do firmamento anil é uma das tantas plataformas surgidas na decomposição do cancro digital misantropo (e especialmente transfóbico) que se tornou o canarinho índigo¹ e com potencial risco para rapidamente ir de "utopia possível" da rede social inclusiva para reduto infernal da extrema-direita cyber criminosa.
Descortina-se um cenário de guerra cultural conhecido que envolve a certeza de impunidade dos opressores e o racismo estrutural e de algoritmo, onde de um lado há toda uma comunidade de usuários e desenvolvedores independentes comprometida na construção e manutenção de um ambiente seguro para todos² e do outro lado está o silêncio incômodo de uns desenvolvedores oficiais, as respostas vagas e genéricas de outros, a mudez constrangedora de parte dos usuários somados a decisão política (porque é uma decisão política) de não se considerar as questões sociais como são: questões sociais, e não um aspecto técnico de programação de algoritmos, ainda que este aspecto seja relevante.
Ontem, junto aos fios em que compartilhávamos os nossos álbuns de rock favoritos, monitorávamos (e até o atual momento, continuamos monitorando) a posição, ou melhor dizendo, a não-posição (que é uma posição absolutamente) dos responsáveis pela plataforma sobre a facilidade com a qual racistas podem criar contas e propagar conteúdo criminoso antes de serem efetivamente banidos e expulsos.
Usuários mais antigos da plataforma relataram que há meses sinalizam os administradores sobre perfis flagrados disseminando conteúdo racista. A comunidade LGBTQIAP+ se mobilizou e somou esforços com a comunidade negra para denunciar esse tipo de comportamento. Há meses esses usuários estão alertando sobre as lacunas da rede com relação a utilização de palavras racistas e discriminatórias na elaboração dos nomes dos perfis, bio, etc. além da produção e repercussão de conteúdo criminoso.
Eu consegui identificar um evento em específico como o catalizador da reação da comunidade (reação que contou com um forte empenho do chamado "brazilian super cluster", o conjunto de usuários brasileiros da plataforma), porém, não se trata absolutamente de um caso isolado. Pode não ter sido o primeiro, mas certamente não é o único caso e se não forem tomadas providências, não será o último.
Um perfil criado há mais ou menos um mês (?) (até onde pude apurar) utilizou em seu @ uma palavra altamente discriminatória para se referir a pessoas negras. Atualmente nos remetemos a utilização desta palavra sem a dizer propriamente como N-Word. Um usuário fez uma captura de tela e denunciou. Viralizou. Uma boa parte da comunidade se mobilizou e insistentemente se marcou os desenvolvedores nas postagens. O assunto estava pautado.
No fluxo de postagens e repostagens, infelicidades foram ditas e o racismo velado de uns tantos (alguns brasileiros, infelizmente) ficou evidentemente exposto. Há sempre o show de leviandade de quem só quer gerar engajamento, fazendo-me lembrar das palavras de Djamila Ribeiro:
Opiniões vazias sobre questões tão sérias, por si só, podem até não matar, mas com certeza ajudam a apertar o gatilho ou pulam o cadáver no chão.
Veio a separação do joio e do trigo, bloqueios realizados. Houve a turma da isenção, e devidamente enquadrada como quem favorece a cultura do opressor. E nenhum remorso sobre os bloqueios que eu próprio realizei. Se precisar desenhar, a gente desenha:
Em entrevista concedida ao Jornal Nexo, Lia Vainer Schucman, pesquisadora de relações raciais e professora da UFSC falou sobre o papel dos brancos na luta antirracista. Em determinado ponto da entrevista quando perguntada sobre qual tem sido de forma geral o comportamento da população brasileira diante da questão racial historicamente, ela foi clara:
Negar o racismo. Dizer que racista é o outro, nunca você mesmo. Acreditar na democracia racial, ou seja, na ideia de mérito, de que, se esforçando, brancos e negros teriam a mesma chance. É silenciar e deslegitimar a denuncia da população negra. [A consequência disso] é uma desresponsabilização. Brancos - até os brancos progressistas - têm se desresponsabilizado da questão racial como centro da desigualdade brasileira. É como se o racismo fosse um problema para os negros resolverem
Que ao menos reflitam sobre, ao contrário dos desenvolvedores que até o momento da publicação deste texto não publicaram nenhuma retratação ou responsabilização pelo papelão a que se prestaram.
Houve também a criação de novas e promoção das já existentes listas de pessoas negras da plataforma, bem como listas de perfis que devem ser bloqueados para o bem da comunidade. Independente das conclusões que qualquer um que viveu o momento poderá chegar, é indubitável que a questão racial foi pautada e mais indubitável ainda é de que lado da história nós queremos e devemos estar. E foi bonito ver como parte da comunidade pressionou (e ainda está pressionando) para que efetivamente vença o respeito e a dignidade no espaço digital que se constrói a cada postagem. Mas que saibamos que isso não é o suficiente.
Aos demais, aos criminosos, aos racistas, aos misóginos, aos transfóbicos, aos infelizes, aos mentecaptos e energúmenos de toda espécie, resta duas opções: voltar ao bueiro de onde saíram e (idiotas que são) continuar produzindo provas contra si mesmo até que chegue o momento (e ele chegará) onde serão devidamente processados e punidos, ou se calar de uma vez por todas.
No que depender do que vivenciamos ontem, haverá resistência. E o profundo desejo de que a resistência que se expressa no virtual, seja real nas atitudes e reflexões de cada um no seu dia a dia dentro e fora das redes pois é essa resistência que fará o opressor a ter medo de falar o que pensa em público, porque a essa altura o Brazilian Super Cluster já sabe que "chapéu de fascista é marreta".
¹Assim como a rede que leva nome de proboscídeo pré-histórico, a rede do pintinho amarelo que dá trocadilho escatológico com nosso idioma, a rede cujo nome se refere a falta de harmonia entre as notas soando juntas, etc.
²Inclusive provavelmente é/foi assim que eu e você chegamos ou chegaremos lá: Com a sensação incômoda de ser um exilado, expulso da praça pública digital pela presença maciça e encorajada de perfis alt-right com discurso protofascista, equipados com robôs, notícias falsas, campanhas difamatórias e pornografia criminosa, sendo atacado e na mesma medida silenciado pelo algoritmo ou do shopping-center onde o cliente e o produto são a mesma coisa que se tornaram as redes sociais daquela "outra" empresa você sabem do que eu estou falando.