O berro do boi
Uma nova família se mudara para o condomínio campestre, rodeado por propriedades rurais de atividades econômicas diversificadas como lavouras, hortigranjeiros e pecuária. A paz foi imediatamente catapultada para bem longe, por conta da algazarra promovida com música eletrônica em volume bombástico até altas horas da madrugada. Pela categoria do imóvel, poder-se-ia imaginar os locatários detentores de posses. O muro alto do empreendimento recém-inaugurado obstruía a visão da interminável baderna, porém uma voz infantil em particular chamava a atenção, sempre aos brados e destilando impropérios obscenos a todo o momento, manipulando continuamente um aparelho celular conectado a potentes caixas de som.
Logo o pirralho de oito anos cismou em se incomodar com o berro dos bois, mantidos no terreno contíguo, levando invariavelmente o imbróglio à apreciação judicial. Na simplicidade de homem traquejado com a lida no campo e a experiência dos anos vividos, o criador sabiamente justificou junto à autoridade que a vocalização entre animais é algo natural e que no caso específico, fora emitida por uma dócil vaquinha da raça Jersey, que instintivamente procura por sua cria quando desgarrada. Mas que a balbúrdia matutina emitida pelos animais da fauna local como maritacas, bem-te-vis, quero-queros e outros bichos barulhentos superavam sobremaneira o volume de lamúrias pontuais da estimada e profusa parceira láctea. O argumento foi robusto o suficiente para encerrar definitivamente o assunto.
Guardadas as devidas proporções de condição social, estrutura familiar e conceitos morais, o berro do boi ecoa entre as famílias da atualidade. Longe de a analogia parecer excêntrica ou desconexa com o tema, os sinais de que os pilares basilares da sociedade estão sendo lenta e gradativamente corroídos estão por toda parte. Aqueles costumes que outrora proporcionavam harmonia entre os integrantes do núcleo familiar foram subjugados pelas incontáveis bugigangas tecnológicas. Os momentos de interação e do salutar diálogo no aconchego do lar acabaram substituídos pela futilidade descartável das mensagens instantâneas e a imensa maioria é desprovida de sentimentos verdadeiros, uma forma de pasteurização negativa das relações interpessoais. O uso constante e inadequado dos dispositivos tecnológicos tem acelerado o surgimento de diferentes patologias de difícil diagnóstico, que se mostram altamente nocivas à saúde do ser humano. As sequelas físicas e emocionais se proliferam em todas as faixas etárias com maior incidência de gravidade em crianças e jovens, naturalmente mais suscetíveis por conta da lapidação do caráter e da personalidade ainda não devidamente consolidada.
É inegável a relevância do emprego racional dos meios tecnológicos para a inserção social na vida moderna. As crianças já nascem inseridas na tecnologia e passam a depender desse conceito primordial durante toda sua existência. Ocorre que nada substitui o amor, o carinho, o afago, a dedicação, a correção de atitudes, o empenho em mostrar aos rebentos o caminho a seguir. A omissão na educação dos filhos, principalmente ao franquear indiscriminadamente o acesso à Internet sem supervisão preventiva, tende a estimular comportamentos indesejáveis, inadequados e por vezes de difícil reversão. A liberdade a ser confiada aos pequenos deve ser proporcional às suas responsabilidades na hierarquia familiar. Quando esse equilíbrio fica comprometido, é hora de se rever conceitos e estabelecer limites. Essa é uma fórmula antiga, mas quando utilizada corretamente, se mostra por demais eficiente. Felizmente, o encrenqueiro mudou-se com a família, passando a atazanar novas “vítimas” em outras paragens. Agora, a vaquinha “Mimosa” e seus semelhantes poderão berrar à vontade