Dando nome aos bois

É possível discutir política sem degenerar para uma pendenga regida pelo fígado, e não pela razão e pelo sentimento? Isso não é só possível, é essencial, se nós, “animais racionais”, pretendemos de fato ser mais racionais que animais. E a razão, junto com o sentimento de empatia e solidariedade, é questão de sobrevivência neste momento em que a civilização, graças a uma engenhosidade ainda adolescente e irresponsável, tornou-se capaz de aniquilar toda a vida no planeta, promovendo guerras, queimando matas, dizimando a biodiversidade, poluindo rios, mares, ar, exaurindo solos agricultáveis, desencadeando o aquecimento global, incitando os povos ao ódio, à segregação, à mentira, concentrando riqueza e privilégios, disseminando miséria e pandemias...

Mas quantos ainda não enxergam que vivemos esta aguda crise civilizacional! Os arranjos que vivemos fracassaram, urge substituí-los por novos arranjos, agora regidos pela justiça social e amor ao próximo. Se teimarmos continuar alienados, fazendo de conta que tudo vai bem, estaremos no caminho sem volta do colapso. Mas tudo indica que ainda somos animais demais para esta inadiável tarefa de mudança. Ainda somos manipulados por estímulos viciosos repetidos incansavelmente pelos facciosos meios de comunicação. Eles nos tratam como os cães de Pavlov, amestrando-nos e incutindo-nos o medo, o ódio, o individualismo, destruindo nossos sonhos de fraternidade, emancipação e bem-estar social.

É hora de deixarmos de ser animais de laboratório de experimentos que visam o condicionamento reflexo da população, transformada num rebanho obediente a uma elite que acumula a riqueza gerada com o trabalho de todos. É preciso desmontar esse perverso arranjo, sustentado por capatazes que intermediam o jugo da elite sobre o rebanho subjugado. Esses capatazes são verdadeiros capitães do mato da civilização atual, que disfarça o escravagismo numa sórdida relação patrão versus trabalhador, elite versus povo. Eles são os políticos fisiológicos e corruptos, os chefes da mídia mentirosa lacaia do poder econômico, os empreendedores ambiciosos e inescrupulosos, os aliciados pela cantilena da cupidez, os pregadores que incutem o pecado, a servidão e a fé cega... Enfim, todos aqueles que, por medo, ignorância, empáfia ou ganância, compactuam com a vil espoliação do ser humano e da natureza. Eles são os bois a quem é necessário dar o nome.

Já estamos num mundo de guerras: pelo poder e hegemonia mundial, pela posse de recursos naturais, pelo domínio geopolítico, contra os povos originários remanescentes e suas terras, a guerra de classes, as guerras religiosas fratricidas, as guerras raciais e étnicas, a guerra cognitiva, a guerra da insegurança e criminalidade, a guerra ideológica... Urge outro confronto: o da razão, amorosidade, justiça social e coragem, contra o ignominioso e avarento jugo das elites e seus capitães do mato, o alheamento e medo das massas.

Entretanto, este outro confronto não deve significar opor-se com as mesmas armas que já têm sido usadas nestas tantas guerras. Assim acabaríamos por substituir um sistema ambicioso e cruel por outro. As armas que precisam ser utilizadas são justamente o despertar, a compreensão, o discernimento, o inconformismo, a coragem e, sobretudo, a solidariedade. Estas são as armas que vão construir a nova civilização.

Já há dois mil anos foi-nos transmitida a lição que ainda não aprendemos: “amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo”. Nossa noção de Deus é muito diversa. Há quem diga que, independente das diferentes concepções, temos que aprender a respeitar sua criação: a natureza, que dá suporte à vida. Ela é o maior de todos os milagres. Amar ao próximo e a si mesmo: outra parte deste grande desafio, que está a nos testar.