Zé Fortuna e Pitangueira
Hoje, 20 de janeiro de 2018, pus no meu simples e velho radinho o CD com músicas cantadas por Zé Fortuna e Pitangueira. Enquanto meus ouvidos degustavam o som, minha memória viajava, viajava, viajava...
Assim voltei a 1968 ou 1969 ou 1970? Sei lá, mas, a memória entrou no prédio 126 da Avenida São João, onde na entrada ao lado ainda permanece o Restaurante Guanabara. A memória foi também à Estrada da Conceição, quase esquina com Rua José Bueno. Penso que o número é 997. Nessas memorizações vieram-me coisas boas. Mas quando a memória foi para a Praça da Sé, contive, com dificuldade, as lágrimas que insistiam em cair. A primeira lembrança foi os três anos que frequentei aquele prédio ao cursar no Colégio Comercial Aliança, o Técnico em Contabilidade. Certo dia, numa aula de Direito Comercial o professor divagava por campos estranhos à matéria, momento em que ele dizia que o ensino comercial endurecia o coração, uma vez que se centrava em valores materiais deixando o humano. Mostrava mais ele que os pais se espelhavam no sucesso de pessoas próximas para projetarem as profissões dos filhos. Marcante me foi o exemplo trazido por ele. Tomou o operário de fábrica, que ao ter próximo os mecânicos, pessoas bem pagas, na ocasião, queriam, nesta profissão, ver os filhos. Parece que ele até falava de mim com meu pai. Isso, porque, quando eu ainda mocinho sonhador, e Garrincha o bola da vez, esbocei casa afora, um drible, e eu mesmo me aplaudia, quando papai me repreendeu: ocê só pensa em chutá bola, tem de ser é “mercancar”. Mercancar. Isso mesmo, era assim que ele articulava. Outro exemplo desse professor, no intuito de nos materializar sua ideia, foi ao citar a música sertaneja em que a inspiração era nas tragédias rurais por ser esse o meio em que ele vivia ou era o público alvo. E aí que entram Zé Fortuna e Pitangueira que mais adiante voltarei a retratar. Agora vou à minha segunda lembrança. Lá na Estrada da Conceição. Foi quando ficou sacramentado que meu coração era são-paulino. Tudo por culpa do Gino, do Amauri e do Maurinho que fizeram os três gols e deram o título de Campeão Paulista do Glorioso, que ainda não era do Morumbi, ao derrotar o alvinegro da Marginal sem número, dito Parque São Jorge, por três a um. Por isso que a cada vitória que Morumbi impõe a Itaquera, registro-me um título de campeão. Tem mais. Foi nessa moradia que meu pai chegou a casa carregando um pesado móvel. Pensei que fosse um guarda-roupas. Apesar de termos poucas, a quantidade de irmãos era grande e bem que comportava mais um local para repousar nossos úteis trapos. Mas, não era. Chegava ali o nosso “Astória”. Nosso primeiro rádio que com nós ficou até não ter mais voz. E ele foi o responsável pelo meu gosto aos irmãos Zé Fortuna e Pitangueira, muito tocados nos programas musicais das rádios, e pelos 78 rotações, que tanto giraram na vitrola de meu Astória. Passo então a minha terceira memorização. Com lágrimas fui à Praça da Sé. Quem conhece o repertório dessa dupla, percebe como ela viajava pela tragédia. Por quê? Porque viveram isso. E fizeram literatura aos que viveram isso. Destacam-se dois campos: o crime passional e a guerra. O primeiro muito comum numa sociedade em que a mulher para ser traidora bastava mexer os olhos para os lados ou esticar a visão para frente. Girar a cabeça para trás nem pensar. A guerra, segundo campo. Na sua época as marcas das duas grandes guerras mundiais ferviam nos corações dos brasileiros. Não sei se dos urbanos, mas, dos camponeses, muito. Sem compreender a ocorrência, perderam filhos, perderam lavoura, perderam a esperança. Ganharam medo, ganharam doenças. Só continuou igual a exploração dos mais fortes aos mais fracos. Só continuaram iguais a submissão e a repressão. Pensando bem, nada mudou. E se Zé Fortuna e Pitangueira estivessem ainda na ativa, o primeiro seria mais fortuna e o segundo daria pitangas de ouro, pois a Praça da Sé lhes daria temas em abundância para suas brilhantes composições. E se eles fossem à Cracolândia, ao Parque Dom Pedro, andassem de ônibus, de metrô, na CPTM, visitassem a periferia, os temas de guerra e crimes passionais seriam temas levíssimos.
Adílio dos Santos
20.01.2018 – horário de verão