Do Cabeça de Porco ao Jacarezinho: reivindicações de cidadania contra aparatos de repressão
Daniel Ribeiro Gallupe Coelho
RESUMO
A reivindicação de cidadania é algo presente na história negra do Brasil. Tanto no pós-abolição como no período escravista, é possível notar as movimentações políticas, sociais e culturais que reforçavam essa busca pela cidadania. Neste trabalho, serão analisados três principais eventos e as coincidências existentes entre eles, de modo à criar a percepção de que todos os eventos que envolveram reivindicação de cidadania, por parte dos negros, tiveram uma situação em comum: o uso dos aparatos de repressão, à fim de manter e conservar a ordem social branca e burguesa.
Palavras-chave: reivindicações de cidadania; aparatos de repressão; pós-abolição.
ABSTRACT
The claim to citizenship is something present in the black history of Brazil. Both in the post-abolition period and in the slavery period, it is possible to notice the political, social and cultural movements that reinforced this search for citizenship. In this work, three main events will be analyzed and the existing coincidences between them, in order to create the perception that all the events that involved the claim of citizenship, on the part of blacks, had a situation in common: the use of repression apparatuses, in order to maintain and conserve the white and bourgeois social order.
Keywords: citizenship claims; repression apparatus; post-abolition.
1. INTRODUÇÃO
A silenciosa madrugada do dia 06 de maio de 2021, na Zona Norte do Rio de Janeiro, jamais imaginaria-se como precursora de um longo dia de terror que estava por vir. É a madrugada o momento final de descanso dos moradores do subúrbio carioca. É nela, também, que estes partem de suas casas em direção às lojas, shoppings centers, postos de gasolina e afins, para darem início às suas jornadas de trabalho. Nenhum morador da favela do Jacarezinho, ao dormir na noite anterior, conseguiria imaginar que ao final do dia seguinte, o bairro onde morava tornar-se-ia notícia no mundo inteiro, por uma ocasião triste, lamentável e desumana.
O que se viu naquela manhã de 06 de maio, uma semana antes do dia 13, data em que se completaria 133 anos da assinatura da Lei Áurea - que libertou os cativos -, foi uma verdadeira chacina de negros periféricos, realizada pelas forças de "segurança" do Rio de Janeiro. O episódio ficou conhecido como Massacre do Jacarezinho e entrou para a história como a chacina mais brutal já ocorrida na cidade, superando em números de mortos, a trágica e famosa Chacina da Candelária, ocorrida em julho de 1993, quando oito meninos foram assassinados por um grupo armado, no qual os suspeitos de cometerem o crime, eram policiais militares. Todos os mortos na Candelária eram crianças e adolescentes em situação de rua.
A operação policial do dia 06 de maio teve início por volta das quatro horas da manhã e só terminou no fim da tarde. Antes do término, já haviam relatos de moradores que davam conta de que uma chacina havia acontecido na comunidade. Os relatos eram, entre outras coisas, sobre assassinatos a sangue frio, cometidos pelos agentes públicos envolvidos na operação. Relatos sobre vítimas, que mesmo rendidas, desarmadas e sem oferecer qualquer tipo de resistência, foram assassinadas.
Outros relatos davam conta, ainda, de vítimas que foram mortas com requintes de crueldade, à facadas, igualmente rendidas e desarmadas e até um homicídio praticado na presença de uma menina de 9 anos de idade. Ao todo, o massacre terminou com 28 mortos, sendo todos eles negros e pardos.
2. OS ESCOMBROS, A CHIBATA E A CASA DA RUA SÃO MANUEL
Já inteirado os fatos mais relevantes (ou tristes) sobre o Massacre do Jacarezinho, passemos à narrativa sobre a demolição do "célebre" cabeça de porco. As crônicas contam sobre um "aparato de guerra", montado exclusivamente para a derrubada do cortiço. Dentre as coisas que mais chamam a atenção, está o cerco que a polícia fez ao cabeça de porco e às ruas que davam acesso à ele.
A intensidade da violência em questão não chega perto e não pode se comparar ao episódio do Jacarezinho, de certo, mas há a necessidade de notar a lógica da burguesia branca, sempre disposta à impor uma "boa" dose de violência à população negra.
É verdade que todos os episódios envolvendo repressão à população negra são capazes de nos revelar uma forte consciência que os negros, no decorrer da história, possuem sobre os seus próprios direitos. Todo ato realizado pela população negra é em sentido de reivindicar a cidadania que, historicamente, sempre lhe foi negada.
Para além disso, podemos enxergar nesses atos, a nobre, justa e ousada tentativa de burlar os mecanismos burgueses que impedem a sua ascensão econômica e social. Não há, sequer, um episódio de repressão aos negros em que não tenha havido uma resposta.
É interessante notar a resistência dos moradores do cabeça de porco. Ainda que uma das alas do cortiço houvesse sido interditada um ano antes pela Inspetoria Geral de Higiene, e que a interdição geral do cortiço e a sua posterior demolição era apenas questão de tempo, os moradores do cabeça de porco resistem até o último momento. O fato de 2 mil moradores permanecerem habitando o cortiço depois de receberem intimação para deixar o local e que alguns só deixaram as suas casas após serem demolidas, é uma aula que a história nos fornece, através de personagens negros, sobre como resistir à opressão e desmandos. Para além die revelar que essas pessoas tinham consciência de que habitar aquele local era um direito delas.
Para dar fim aos cortiços, os prefeitos Cândido Barata Ribeiro e Francisco Pereira Passos tiveram uma poderosa força aliada: a imprensa, que sempre difundia os discursos dos especialistas e higienistas, sobre o quão insalubre era a presença de cortiços na cidade e que essas habitações eram focos propícios para a propagação de epidemias. Além disso, a falsa ideia de que habitações como o cabeça de porco serviria de abrigo para pessoas "viciosas", serviu como premissa para a derrubada dos cortiços.
Outro episódio marcante de resistência negra foi a Revolta da Armada (1910), onde os marinheiros liderados por João Cândido, reivindicaram os seus direitos dentro de uma instituição militar, onde pouco é permitido indagações e ponderações, menos ainda reivindicações.
A historiografia, por muito tempo, construiu uma narrativa que explica o motivo da revolta estar associado à lembrança que o castigo físico da chibata representaria para os negros: a memória da época em que foram escravos. Entretanto, em 1910, nenhuma profissão, fosse ela civil ou militar, tinha como punição um castigo físico, exceto a de marinheiro. É muito mais plausível e aceitável que a revolta de João Cândido e seus companheiros tenha nascido da percepção da realidade social do que de lembranças de um passado atrelado ao cativeiro.
Assim como os prefeitos engajados na reforma urbanística do Rio de Janeiro tiveram a mídia, a violência e o ódio de classe como aparatos para usar contra os cortiços, o alto oficialato da marinha também teria o seu e o usaria. De modo ainda mais fácil, pois eram eles próprios os detentores e aplicadores do tal. Usaram do código militar para punir e expulsar os marinheiros revoltosos.
A casa da Rua São Manuel foi um dos pontos onde se deu o massacre do Jacarezinho. Nela morreram dois jovens. O caso que investigava a morte dos jovens, foi arquivado, assim como a maioria dos processos que foram abertos para investigar as mortes ocorridas na chacina.
No último evento de análise, a reivindicação de cidadania e o aparato de repressão se tornam ainda mais claros. De um lado, dois jovens se rendendo ao Estado, ou seja, uma clara reivindicação de cidadania. Se render é um ato praticado por alguém que tem, em sua consciência, a certeza de ser possuidor do direito de ser julgado. Do outro, policiais, o aparato de repressão preferido da burguesia, a mesma que se acha no direito de decidir quem vive e quem morre.
Os escombros do cabeça de porco, o castigo físico da chibata na marinha e os assassinatos na casa da Rua São Manuel, ao final, representam a mesma coisa: a negação da cidadania dos negros, por parte da branquitude que detém o poder. A branquitude conhece o direito dos negros, porém não os reconhece, mesmo sabendo que suas reivindicações são legítimas. Reconhecê-los significaria abrir mão de seus privilégios e romper com a ordem social criada por ela e para ela.
3. A VINGANÇA BRANCA
A chacina ocorrida no Jacarezinho poderia não ter sido tão cruel se não fosse um fato ocorrido logo nos primeiros momentos da ação policial: a morte de um policial branco.
Segundo a análise de especialistas em segurança pública e relatos dos moradores, o massacre ocorrido posteriormente à isso, teria sido uma forma de vingança cometida pelos policiais.
Pode-se entender tal vingança à partir da concepção de "pacto narcísico", conceito da autora Cida Bento. Tal pacto, segundo ela, é um acordo não verbal para defender e reproduzir os privilégios da branquitude.
Nessa ocasião específica, podemos compreender a defesa do privilégio à vida. Dentre todos os privilégios, o privilégio à vida é o mais importante e valorizado pela branquitude.
A comprovação deste fato pode ser notada na declaração do atual governador do Rio de Janeiro, concedida em entrevista à um veículo de imprensa, em maio deste ano, ocasião em que se completava um ano do massacre.
Na ocasião, Cláudio Castro, em um ato de desumanidade, chamou as vítimas da chacina de "vagabundos". Disse ainda que o único "herói" que era digno de ter um memorial era o policial branco, que havia morrido durante a chacina.
A declaração de Castro é perfeita, no sentido de demonstrar o pacto narcísico da branquitude: apenas o policial branco é digno de ter um memorial com o seu nome; apenas o filho branco do policial, da idade do filho branco do governador, sente a falta do pai.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história que foi escrita pelos negros no Brasil é um ciclo constante de reivindicação de cidadania. É algo notável e de fácil compreensão. Em todos os processos históricos que os envolvem, os negros buscam incessantemente o reconhecimento e os direitos que sabem ter, pois todo ser humano os tem.
O embate entre essa reivindicação e a ordem social branca e burguesa ocorre também nesses processos. Tal embate é algo corriqueiro e cotidiano, é fruto da tentativa dos negros querendo romper, subverter ou reverter essa ordem ao passo que ela tenta se preservar.
Um episódio semelhante ao da casa da Rua São Manuel é narrado por Saidiya Hartman, no ensaio Vênus em dois atos. No ensaio, a narrativa se volta para a história de duas meninas escravizadas mortas à bordo de um navio negreiro. O caso chega até a justiça, que inocenta o capitão do navio por falta de provas.
Tal episódio aponta para a ideia cíclica de reivindicação de cidadania, ela se repete em vários episódios, em períodos históricos distintos.
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