A barbárie escancarada
Bárbaros, todos nós somos um pouco. Assim como também somos um pouco divinos. Particularidade dos seres humanos; temos ainda muitas reminiscências de nossos ancestrais selvagens. Mas já temos também alguma percepção do sagrado que nos transcende. Somos criaturas intermediárias entre o ignorante e o sábio! Alguns dizem que nosso lado instintivo selvagem é tânatos, catalizador de todo impulso destrutivo. Herança da primordial agressividade essencial para a preservação da espécie. Nosso lado amoroso e criativo é eros. Ele vem se fortalecendo ao longo da evolução do Homo sapiens e da civilização.
Comportarmo-nos ou como egoístas bestas-feras ou como solidários seres amorosos, dependendo de muitas variáveis: o meio familiar, a vizinhança e amigos que temos, a educação formal e informal, as experiências de vida, a cultura do nosso povo, o momento civilizacional que estamos vivendo e até nosso humor num dado momento, que depende de circunstância objetivas e subjetivas. A resultante é que podemos ou ser uma besta-fera individualista e violenta, ou ser alguém fraternal, compreensivo e conciliador.
Desde sempre a besta-fera que reside em nós tem sido manipulada para promover disputas e guerras em favor de conquistadores. A velha máxima “dividir para conquistar”. Mas nas últimas décadas a manipulação alcançou sofisticação extraordinária, com o advento das redes sociais, algoritmos, bots e empresas digitais destinadas à desinformação. Paradoxalmente, o avanço tecnológico, num primeiro momento, propicia o desequilíbrio do frágil arranjo de bem-estar social civilizatório, que temos construído com vagar e dificuldade ao longo de milênios. Se, pouco a pouco, vamos superando a barbárie e nos aproximando de uma sociedade mais humanizada, ao mesmo tempo manifestam-se forças contrárias à emancipação dos seres humanos. É a reação de tânatos, inconformado com a prosperidade de eros.
O mundo dá evidências de que estamos bem num destes momentos de reação de tânatos: segregacionismos exacerbados, fundamentalismos, guerras, fanatismos, extremismos. No Brasil não é diferente. Elegeu-se um líder que personifica tânatos: genocida, segregacionista, violento, negacionista, escatológico, devastador ambiental... Mas que, contraditoriamente, tornou-se o mito de uma parcela da população: tanto aqueles com ele identificados na reação de tânatos quanto aqueles manipulados pelas tecnologias da desinformação. Com a agravante que estas ressentidas vítimas de tânatos foram ludibriadas e convencidas que sua ira representa os ideais da pátria, da família, de Deus e da liberdade.
Os acontecimentos dos últimos meses, que atingiram clímax no vandalismo deste domingo em Brasília, desmascaram tânatos, manifesto naqueles que não souberam evitá-lo. Antes tarde que nunca! Caída a máscara de cidadãos patriotas, que nunca foram de fato, agora estes adeptos de tânatos têm que mostrar coragem para vencer o ódio destrutivo que as cegou e retornar a eros, para retornarmos à marcha de prosperidade da civilização.