A repressão do obsoleto

Reprimir significa tolher, impedir, às vezes por qualquer meio. Pode ser só pela intimidação ou pelo mentiroso convencimento, ou até por meios criminosos violentos, como amiúde acontece nas ditaduras e nos totalitarismos. No caso, estamos falando da repressão exercida pelo obsoleto. O que é o obsoleto? É tudo aquilo que não funciona, já está ultrapassado, suas falhas resultam em dificuldades intransponíveis.

Os mecanismos de funcionamento da sociedade que estamos vivendo estão obsoletos. Não acredita nisso? Então como interpretar as tantas crises que estamos vivendo: aquecimento global, pandemia, guerras, embargos econômicos, recrudescimento das desigualdades e exclusão, massas de refugiados deslocando-se entre países, ascensão dos segregacionismos e fundamentalismos, descontrole de preços de bens estratégicos tais como alimentos e hidrocarbonetos, o alastrar da desinformação via mentiras digitais...?

Tantas crises resultam da evolução. Ela, ao par do progresso, gera também desequilíbrios e a necessidade de novos arranjos, compatíveis com o progresso alcançado. A mulher, depois de poder votar, quer também participar da vida em igualdade com os homens, quer ser respeitada e protegida por leis que não reproduzam um ancestral e cruel patriarcalismo. O antes analfabeto, após alfabetizar-se e qualificar-se profissionalmente, quer trabalho digno, quer ter direitos reconhecidos, começa a ter melhor noção da injustiça social que o penaliza, passa a reivindicar justiça.

Se o progresso da sociedade não é capaz de atender a estas, e muitas outras, novas demandas, desencadeiam-se as crises. As mencionadas acima são só algumas delas. É o momento, então, de mudar. Urge mudar! Antes que a crise, aprofundada, a demandar solução que não chega, passe a ser insolúvel. Então deixa de ser crise, passa a ser colapso. Da crise ainda podemos sair, encontrando correções planejadas. Já o colapso foge do controle, as consequências são imprevisíveis. No exemplo do aquecimento global, a crise já existe. Já sabemos que existe, quais suas causas, quais suas consequências atuais e futuras, como podemos evitá-las ou mitigá-las. Temos vaga ideia de quais possam ser as consequências futuras, se não soubermos evitar o colapso. Só sabemos que serão desastrosas.

Mas há sempre quem negue a crise. São os arautos da repressão ao alerta, da repressão à verdade, do negacionismo, da desfaçatez. São principalmente os privilegiados pela crise, e que não querem mudanças. Apesar de reconhecerem tratar-se de situação crítica. São imediatistas e egoístas, não acreditam que o colapso venha a acontecer ainda durante sua existência, só vai se abater sobre gerações futuras. Nâo são obsoletos, são antes extremados egoístas, que só se importam consigo mesmos.

Mas há também aqueles que não conseguem, ou têm medo de mudar. Mudanças assustam. Ainda que seja pouco, teme-se arriscar o que já se tem. São também egocêntricos, de uma natureza diferente. Não têm lucidez nem desprendimento, não atinam que, se não houver mudança, todos, a começar dos menos privilegiados, vão sofrer as consequências. São os obsoletos que reprimem a reflexão sobre a necessidade de mudar, de adequar-se aos novos tempos.

Estes últimos são os verdadeiros obsoletos, usualmente logrados pelos privilegiados. Do despertar destes, que são em grande número, depende o reconhecer a crise e envidar soluções, antes que aconteça o colapso.