O povo e o poder

Em recente compromisso em Nova Iorque, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso foi interpelado na rua e questionado sobre a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. A resposta foi curta e grossa: “Perdeu, mané. Não amola”. A réplica, notadamente em tom de desabafo endereçada a um insistente transeunte, buscava desvencilhar o eminente magistrado do inesperado inconveniente. A julgar pela expressão metafórica empregada, em um primeiro momento tem-se a impressão de que o destinatário final da reação relâmpago seria o “importunador” pontual. Só que não. Alguns dias depois, eis que a mesma manifestação foi utilizada pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), ao ser abordado na fila de embarque do aeroporto no Egito. Nota-se que no caso do parlamentar, houve a nítida intenção em reproduzir exatamente a mesma frase depreciativa de cunho político, acompanhada de indisfarçável escárnio estampado no semblante. Ainda que empregada como escopo de defesa diante de uma situação que se mostrava constrangedora, o parlamentar não hesitou em repetir por algumas vezes o aforismo instantâneo.

O dicionário classifica o termo “mané” como “sujeito tolo, menos inteligente ou com pouca capacidade intelectual”. Em ambos os casos em que a frase foi utilizada, a intenção maior ficou evidente: atribuir ao inoportuno interlocutor o estigma pejorativo aos que optaram pela chapa perdedora nas últimas eleições. Acontece que a mensagem subliminar da expressão abrange, por analogia, todos os 58.206.354 eleitores que votaram no mandatário atual e não apenas os “manés” importunadores. Esses, por uma questão de deferência e civilidade haveriam de modular o tom ao se dirigirem a autoridades de tamanha relevância, uma vez que se faz necessário distinguir a individualidade do cidadão com o cargo ora exercido. Isso inclui os que vergonhosamente endereçaram ofensas a outros ministros da Corte Suprema brasileira, expondo uma intolerância inaceitável com integrantes do Poder Judiciário.

Em que pese as circunstâncias embaraçosas dos entreveros entre cidadãos brasileiros e altas autoridades, o resumo da ópera converge para o mesmo ponto. O povo é tratado por estratos superiores da sociedade com distinções explícitas. Com maior ou menor intensidade, visibilidade ou finalidade, mas sempre considerados como eternos subservientes pelos ocupantes dos poderes. Está escrito na Constituição que “todo poder emana do povo, e em seu nome é exercido”. Que ironia, o mesmo poder outorgado aos representantes transitórios através do sufrágio universal, oriundo dos preceitos basilares da democracia e em tese exercido pelos eleitores, agora textualmente qualificados como “manés”. Ocorre que são exatamente as dezenas de milhões de “manés” que fazem o País funcionar; que plantam, transportam e colocam na mesa dos brasileiros e do planeta os produtos indispensáveis para saciar as necessidades básicas da população; são “manés” que garantem a produção e o abastecimento de combustíveis, medicamentos, vestuário e toda uma vastíssima gama de bens e serviços indispensáveis à manutenção da vida; são “manés” que sofrem diariamente com a péssima qualidade dos serviços públicos, que são esfolados por impostos extorsivos, mas nunca perdem o otimismo na esperança por dias melhores; são os “manés”, homens e mulheres, honestos e trabalhadores, que através de sua dedicação diária, viabilizam as incontáveis regalias a que um senador ou um ministro são contemplados, até por direitos legalmente assegurados, em função do cargo que exerçam.

Uma personalidade pública deve refletir antes de emitir qualquer opinião pessoal, sob o risco de ser mal interpretada, originando perspectivas adversas. Mesmo em situações de visível constrangimento, representantes dos poderes da República, sem exceção, haveriam de demonstrar equilíbrio, sensatez e vez ou outra, um lampejo de humildade, sentimentos à altura de sua importância perante a sociedade. Com toda vênia que o caso em questão requer.