A ILUSÃO DA MEDIOCRIDADE

Faz exatamente 101 anos da publicação, em alemão, de Massenpsychologie Ich-Analyse, em português traduzido como Psicologia das Massas e a Análise do Eu, do austríaco Sigmund Freud (1856-1939). Anteriormente, em 1895, o francês Gustave Le Bon (1841-1931), igualmente publicou Psicologia das Multidões. Ambos são textos seminais que contribuem significativamente ao entendimento do comportamento humano enquanto grupo, conjunto e multidão.

Segundo Le Bon, o fenômeno das massas humanas são fundamentais para melhor compreender os tempos contemporâneos, principalmente em um mundo globalizado, predominantemente urbano, digitalizado e com tendências de reações e radicalizações de várias matizes. Para ele, o ser humano quando parte inserida na multidão abre espaço para a irracionalidade selvagem que nos habita oculta e reprimida por dentro.

O indivíduo, demonstra Le Bon, tem predisposição a sofrer o enfraquecimento da moral pessoal e de sua própria autonomia, individualidade e personalidade, quando influenciado pelo comportamento coletivo emergente. Vem de Le Bon o conceito de “teoria do contágio”, que nos auxilia compreender a histeria hipnótica das massas humanas em movimento. É como se multidão se tornasse uma entidade única, uma espécie de “mente coletiva” com vida própria. O comportamento coletivo cria, assim, um tipo de fenda psíquica por onde pode vazar emoções extremadas e até mesmo violentas. A irracionalidade inicialmente detectada não é de todo irracional, pois dessa forma a massa se dispersaria anarquicamente em uma fraticida luta de todos contra todos (Thomas Hobbes).

Todavia, tal ausência de maior contenção interna das emoções, na verdade se transforma em uma quase selvageria canalizada na figura de um líder, muitas vezes ilusoriamente visto como messiânico. Isso demonstra que do ponto de vista instintivo somos animais de manada, apenas trocamos o nome manada por multidão.

Freud, por sua vez, entendeu o fenômeno acima como uma liberação das forças inconscientes que habitam a alma humana, sob o debilitar dos freios morais e interditos superegóicos. E nessa onda desinterditada podem emergir vários desejos socialmente reprimidos. O psiquismo em grupalidade revive suas origens tribais de hordas primitivas.

Freud, à época, foi mais afundo que Le Bon ao perceber o liame afetivo do amor em tais situações de comportamento em manada. Todavia, trata-se de um amor idealizado que desencadeia o processo de identificação, no caso com um líder. O desejo irracional de ser oprimido por um líder de cunho opressor e com características agressivas, além da perda da identidade individual, demonstra a regressão psíquica a estágios anímicos basilares e primordiais da natureza humana, fomentando o poder gregário primitivo de ter que fazer parte de um grupo para sobreviver, como fora com os nossos ancestrais milênios atrás. Isso faz com que o sujeito, sem se aperceber, ceda a movimentos animalescos de rebanho. Nesses momentos o comportamento se transforma em algo estúpido e abrutalhado, algo que anteriormente o mesmo sujeito isoladamente não apresentaria.

Vejamos o que transcreveu Freud ao citar Le Bon: “pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala na civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos”. Parece evidente, portanto, que a diminuição da capacidade intelectual que se dissolve nas massas atinge mais potencialmente pessoas medianas e medíocres intelectualmente. Mas isso não torna imune pessoas mais consolidadas intelectivamente e cultas.

Pelo acima exposto, torna-se compreensível que indivíduos emocionalmente mais carentes e frágeis em termos cognitivos e intelectuais são mais sensíveis ao contágio das massas, onde a mediocridade de vidas banais e desinteressantes, a inexpressividade social e o vazio existencial encontram ilusoriamente a fantasia épica e heroica capturada pela sensação de pertencimento, importância, grandiosidade homérica, que, na verdade subjaz em todos devaneios e anseios narcísicos do ser humano. Desejos, fantasias, idealizações e desvarios se misturam com ares de realidade e onipotência.

Por mais significativa, destacada, relevante e elevada que seja a existência de dados indivíduos sobre os demais, no fundo no fundo todos somos homens comuns, medianos, banais e vulgares. Porém, como disse o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), “o homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares”.

Depois que fisgados pelas massas e pelos discursos messiânicos dos falsos líderes que se acreditam (ou enganam os demais) salvadores da humanidade, muitas vezes até em nome de ideologias e crenças que podem ser manipuladas, o individuo anulado em sua individualidade e hipnotizado pela sedução de se ser grandioso, entra em situações momentâneas ou prolongadas de transes que parece os ligar a uma divindade que só ele (leia-se as massas) tem.

Portanto, cuidado com as multidões. Elas podem ser muitos viróticas e contagiosas, e, depois, o estrago já está feito

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 17/11/2022
Reeditado em 17/11/2022
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