O que é dívida histórica?
O conceito de dívida histórica é um termo que divide opiniões. É citado e comentado em várias mídias diferentes, sob os mais variados aspectos. Ora provoca indignação, ora mobiliza as militâncias e ações políticas. Apesar de muito se falar, pouco se explica. Quando se trata do assunto na maioria das vezes, ou é com desconhecimento de causa, ou viés ideológico, o que esvazia o termo e suas discussões.
A dívida histórica é a ausência de políticas públicas e sociais voltadas aos setores mais fragilizados da sociedade brasileira. Dentre eles, os negros, os indígenas, as mulheres, as pessoas com necessidades especiais, crianças e adolescentes, idosos, imigrantes etc. É uma gama de grupos sociais, que vai muito além de qualquer recorte. Mas nesse texto, irei tratar da dívida histórica voltada as pessoas negras.
As questões étnico-raciais são as que mais incomodam os brasileiros. Crédulos da democracia racial, pelo fato da mestiçagem da nossa formação sócio-histórica, estaríamos livres do racismo e do preconceito racial. É como se uma parcela de carga genética desse ou daquele grupo nos fizesse tão iguais que não seriam mais necessárias qualquer tipo de investimento em políticas públicas e sociais pelo Estado.
O ledo engano se desfaz com a própria história do Brasil. Os homens e mulheres escravos abolidos em 13 de maio de 1888 não se tornaram cidadãos de fato. O país que os acolhera como cativos não fez uma reforma agrária, não lhes deu indenização, não lhe permitiu o acesso a cargos públicos, não ofertou educação, substituiu a mão de obra dos negros por colonos assalariados europeus e asiáticos, e quando das reformas urbanas do início do século XX, foram escorraçados de suas casas e empurrados para as favelas.
Sem educação, emprego, participação política-institucional, terra, um lar e sem esperança, a comunidade negra brasileira viveu sob uma desigualdade social crônica. Na ausência do Estado e da democracia, lhes restou a violência urbana. As cotas raciais e sociais se tornaram a porta de acesso para uma verdadeira mudança no Brasil. Homens e mulheres negras, além das classes mais pobres, ingressaram no Ensino Superior.
Formados, garantiram acesso aos cargos públicos, empregos mais bem remunerados ou até mesmo montaram o seu próprio negócio. No fim e ao cabo, saíram da extrema-pobreza. As cotas são acusadas de serem um paliativo, e podem vir a ser se as estruturas sociais permanecerem as mesmas. O que me interessa aqui são os seus resultados positivos.
Se fala de cotas como se o Brasil tivesse descoberto a pólvora. O que era uma novidade no país até o início do século XXI, já não era algo novo na Índia e no EUA do século XX. Ambos os países, um por motivo religioso e outro pelo histórico da escravidão, respectivamente, sofriam com uma sociedade marcada pela desigualdade socioeconômica e o preconceito. Só cotas participativas na educação puderam minorar as desigualdades, repito, tão crônicas como as do Brasil.
Apesar dos resultados positivos, os argumentos contrários as cotas não cessaram de nascer. Para alguns, desqualifica o Ensino Superior, o que é invalidado pelas pesquisas realizadas pelas diversas universidades públicas e institutos de pesquisa. Outros afirmam que acirram o racismo, quando, na verdade, só faz reafirmar a identidade da população negra. Um dos argumentos aponta a apropriação de vagas, o que não ocorreu visto que as vagas de ampla concorrência aumentaram ao longo dos anos.
Por fim, dizem que as cotas diminuiriam a alto-estima das pessoas negras, o que não é verdade, não tem nada que levante mais nosso alto-estima que estudar e garantir um diploma. Lógico que ações afirmativas como cotas raciais e sociais advindas da Lei 12.711 de agosto de 2012 foi um passo importante, não o primeiro, e nem mesmo o único a ser tomado para uma mudança na sociedade brasileira.
Ao se falar em dívida pública, o sujeito aponta para si mesmo e diz: “Eu não devo nada aos negros”. É muito alta-estima ou falta de senso crítico se considerar como único responsável pela inclusão e permanência de um grupo aos seus plenos direitos. Nossa sociedade é tão egotista, narcísica e individualista que o sujeito considera o acesso do outro a cidadania como um privilégio. Ser cidadão não é um privilégio, é o básico.