Vamos deixar de passar pano

Se há uma coisa que precisamos aprender nestes tempos em que vivemos é a deixar de tentar justificar, minimizar e normalizar as atitudes de pais abusivos, tóxicos e narcisistas. Em suma, temos de deixar de passar pano nas atitudes de pais que abusam física e/ou psicologicamente de seus filhos. Embora os noticiários passem notícias de pais que chegam a matar os filhos, a nossa sociedade ainda se apega à ideia dos pais como seres invariavelmente dotados de amor incondicional. Ninguém está negando que existem pais amorosos e sadios, porém temos de reconhecer que existem pais que nunca deveriam ter gerado filhos, porque são abusivos e tóxicos ao extremo. Infelizmente, muitos filhos de pais assim, especialmente crianças e adolescentes, quase nunca encontram ajuda quando a procuram. O mais comum é que ouçam frases como: “É o seu pai, é o jeito dele, você tem que respeitá-lo e procurar entendê-lo”; “É assim mesmo, procure ser mais compreensivo” ou “Você não pode falar mal da sua mãe. Mãe é uma só. Um dia, você vai entender a sua mãe”.

Quando vemos mães e pais monstruosos nos filmes e novelas, tipo a Branca de Por amor, a Carminha de Avenida Brasil ou o Saulo de Passione, ficamos incrédulos e chegamos a nos perguntar se há genitores capazes de tamanha crueldade para com os próprios filhos. Muitos, especialmente quando falamos sobre esses péssimos pais que aparecem nas novelas, chamam a Globo de Globolixo e falam que essas novelas ajudaram a acabar com as famílias pois fomentariam o ódio entre os familiares. Tal afirmação é equivocada. Desde tempos antiquíssimos sempre existiram famílias disfuncionais, nas quais os membros se detestam. Pais perversos e capazes de maltratar e até matar os filhos não são novidade. A questão é que agora temos visto mais gente que se dedica a estudar sobre pais tóxicos e narcisistas, como Virgínia Coser, ela própria filha de uma mãe narcisista. Em seus vídeos, Virgínia fala principalmente de como crianças e adolescentes que sofrem nas mãos de pais cruéis raramente encontram ajuda, visto que as pessoas de fora, que não convivem com tais pais, tendem a justificar as atitudes dos mesmos. No caso de pais narcisistas, pesa o fato de que eles são ótimos atores e, fora do ambiente doméstico, têm comportamentos exemplares. Além disso, na nossa cultura, tem-se a tendência de olhar com reprovação para os filhos que se queixam do comportamento dos pais. Filhos que reclamam dos pais ficam logo malvistos e são qualificados como filhos ingratos e incompreensivos. As pessoas que não convivem com os pais abusivos logo dirão que os filhos têm que procurar entender o lado dos pais, que tudo que os pais fazem é para o bem dos filhos. Uma moça, uma vez, queixou-se com a avó materna que o pai estava sempre a chama-la de gorda e de porca e a avó justificou a atitude do pai, dizendo: “Minha filha, o seu pai está lhe aconselhando para seu bem. Ele não quer que você fique uma balofa de gorda.” Essa mesma moça, ao reclamar com uma senhora que o pai gritava com ela, chamando-a de burra e criticando tudo que ela fazia, escutou: “O seu pai exige para seu bem. Ele só quer que você faça as coisas direito.”

Muitas pessoas, inclusive as de gerações mais antigas, veem a questão dos pais tóxicos como mimimi e frescura. Elas logo vão dizer que os filhos de hoje estão muito cheios de direitos, e quando alguém diz que castigos físicos podem causar traumas, usam o seguinte argumento: “Nada disso, antes os filhos eram tudo educados com vara e não ficavam traumatizados. Eu mesmo apanhei e nem por isso fiquei com traumas.” Como vemos, é muito difícil falar sobre pais que maltratam os filhos, porque muitos não entendem que as coisas mudam e que é mais do que necessário reconhecer que existem pais perversos que torturam os filhos com castigos físicos, negligência, cobranças excessivas e humilhações. E que não podemos mais normalizar os abusos. Não se educa os filhos xingando-os, humilhando-os, exigindo deles mais do que podem fazer nem falando mal deles para outras pessoas, como muitos pais fazem. Há pais que, não contentes em maltratar os filhos em casa, ainda vão expô-los fora de casa, dizendo às pessoas de fora que os filhos são burros, lentos, ingratos e incompetentes. Lamentavelmente, a nossa sociedade tende a achar que os pais são sempre certos e os filhos, errados. Quando um pai ou mãe se queixa de um filho ou filha, dizendo que o mesmo é mal-agradecido e dá muito trabalho, logo haverá quem acredite. Mas caso um filho vá dizer a alguém que tem pais abusivos, o mais comum será que as pessoas de fora passem pano nas atitudes desses pais, justificando e minimizando. Temos que aprender de uma vez que ser abusivo não é normal e nunca é uma maneira de educar uma pessoa. Pais que chamam os filhos de burros e imbecis não estão educando os filhos. Estão destruindo sua autoestima e gerando seres problemáticos. Devemos salientar que filhos criados em ambientes familiares tóxicos são presas fáceis de pessoas abusivas. Muitas moças criadas por pais machistas e narcisistas ficam como se tivessem um ímã para parceiros tóxicos e que as desrespeitam. Uma moça, quando se queixava com o pai por ele chama-la sempre de burra, escutava dele como desculpa que ele a estava educando e que só se educava alguém sendo exigente e gritando. Esse mesmo pai mentia sobre ela, inventando que pessoas iam se queixar dela para ele dizendo que ela era uma pessoa bruta, mal-educada e insuportável. Ela começou a desconfiar que o pai mentia a respeito dela quando ele falou que uma colega da faculdade com quem ela se dava muito bem havia dito que ela a havia tratado com brutalidade.

Se os filhos de pais perversos procuram ajuda entre os membros das igrejas(católicas ou evangélicas) que frequentam, o mais comum é que não sejam ajudados. Uma moça, ao dizer a um senhor de uma igreja evangélica que sonhava se afastar do pai narcisista, ouviu a seguinte frase: “Você não deve querer se afastar do seu pai. O que você precisa é orar para que vocês se entendam. Ele é seu pai e você precisa ajuda-lo para que ele se volte para Cristo.” Várias crianças que pediram ajuda a pastores e padres foram chamadas de ingratas e escutaram que tinham que ser obedientes pois se deve honrar pai e mãe. Aliás, pessoas que frequentam o canal de Virgínia Coser falaram que ficaram malvistas nas igrejas que frequentavam por terem “falado mal” da mãe ou do pai. Por sinal, uma mulher filha de mãe narcisista, que era da Igreja Adventista de Sétimo Dia, disse que o pastor da tal igreja defendia castigos físicos. Houve o caso de um rapaz judeu, espancado pelo pai desde os cinco anos, que foi pedir ajuda ao rabino. O rabino insinuou que se ele apanhava do pai era porque tinha dado motivos e que devia procurar ser um bom filho. Esse mesmo rabino procurou depois o pai do rapaz e contou tudo a ele. Como resultado, o pai espancou o filho com uma varinha, deixando-o cheio de marcas. Outros argumentos usados pelos religiosos é o que essa é uma “cruz que deve ser carregada”, um “desafio que Deus dá para que se cresça espiritualmente” ou então uma dívida espiritual, um “karma de outra vida”. Alguns evangélicos até dizem que isso não é o pai ou a mãe que está agindo assim, já que seria o “Inimigo” ou seja, o demônio controlando aquela pessoa.

Portanto, temos de admitir que ainda há muito que se evoluir no sentido de se prestar auxílio aos filhos de pais abusadores. A sociedade tem que entender que pais (mesmo os que amam os filhos) não são perfeitos e que há pessoas que, embora tenham gerado os filhos, não têm uma natureza amorosa e compreensiva e não são capazes de educar adequadamente os filhos para que sejam pessoas felizes e realizadas.