Cultura da paz
Muito acertadamente, as vozes que estão se manifestando pela recuperação da democracia e da civilidade no Brasil estão falando em “cultura da paz”. Porque talvez nunca tenhamos tido no país um momento de tanta exaltação da violência e da barbárie.
Se o cidadão brasileiro ainda tem dúvidas sobre o significado do momento que estamos vivendo, é bom lembrar alguns dados: glorificação de torturadores; explícito apreço de criminosos milicianos; convite ao armamento dos “cidadãos de bem”, que são os ricos, brancos, caçadores, atiradores e colecionadores de arsenais; proposital negligência no enfrentamento da pandemia que ceifou já quase setecentas mil vidas; escárnio com as vítimas da pandemia e seus familiares; projetos de lei para isentar policiais de morte em ação; afirmação que dissidentes políticos e ideológicos devem ser exterminados; ofensas chulas a todos e tudo que não seja narcísico espelho; acordos espúrios com o que há de mais sórdido na política, o nefasto “centrão”, que é o balcão de venda de votos; orçamento secreto, sigilo de dados; malabarismos viciosos com o orçamento da União; escatologia; negacionismo; perseguição à cultura, às artes, à ciência; negligência com a saúde e a educação; explícito incentivo à violência; mentiras sobre o sistema eleitoral; agressões e mentiras sobre os poderes da República; manipulação eleitoreira da fé religiosa; benesses sociais temporárias em período eleitoral... Difícil entender quais são as razões de tal despropósito ainda não ter motivado o empenho das instituições em afastar do poder quem está pervertendo a jovem democracia brasileira, e ameaçando o futuro da nação. Com certeza não serão só as razões visíveis, que vão desde a inescrupulosa cupidez até o inconfessável rabo preso.
O Brasil, que já foi o destino de refugiados e perseguidos de todo o mundo, que aqui buscavam esperança de acolhimento, dignidade e prosperidade, hoje fermenta a cizânia entre antes amigos e irmãos. A violência, até o extremo do ensandecido assassinato pelas multiplicadas armas de fogo, substituiu as inócuas pilhérias, que antes apaziguavam discussões ideológicas.
Nesse cenário, a cultura da paz parece ser essencial. Paz: o desarmar-se. Não só da arma de fogo real ou simbolizada com o gesto das mãos. Mas encarar o outro, o diverso, como alguém que tem os mesmos direitos, e não como o inimigo a ser combatido e exterminado. E procurar, através da interação e do diálogo, encontrar o equilíbrio justo de direitos e deveres. Diálogo baseado nos três princípios que há mais de dois séculos a humanidade já reconheceu: liberdade, igualdade, fraternidade. A única qualidade que não se deva tolerar talvez seja aquela da negação do direito do outro: a presunção da supremacia.
Cultura da paz! Muito apropriadamente foi dito: o poder pode mudar rapidamente; modos de produção e relações sociais demoram mais; cultura demora muito mais, pode exigir o tempo de gerações. Exemplos: a Revolução Francesa mudou o poder e mostrou-nos valores universais, mas ainda não aprendemos a praticar estes valores; a Lei Áurea libertou os escravos no Brasil, mas até hoje a escravidão não é só uma nódoa histórica, é um atavismo social e mental. Para não falar que Cristo é venerado há mais de dois mil anos!
A mudança cultural demanda perseverança, paciência, tempo. A cultura da paz, antídoto da cultura do ódio, demanda também fraternidade.