A Piriguete da internet e o Show das poderosas: as mulheres e a reprodução do patriarcado

O que trago para discussão neste pequeno texto é a reprodução do patriarcado, neste caso, pelas próprias mulheres, o que é mais problemático, para não dizer, assustador. Todavia, infelizmente, a estrutura da nossa sociedade, sendo patriarcal, estimula o tempo todo a concorrência entre as mulheres, ao invés do sentimento do que hoje chamam de sororidade. Esta é, por excelência, uma das maiores estratégias para essa estrutura se manter.

Trarei como exemplo alguns trechos de músicas e filmes, ou seja, artefatos culturais, para poder problematizar essa questão.

Vejamos...

“Essas piriguete de internet, rapariga digital, nunca vão superar uma mulher real. Essas piriguete de internet que todo mundo mordeu. Quer trair, cê trai com uma mais bonita do que eu” (Rapariga digital, autoria de Naiara Azevedo).

Na música, vemos uma mulher chamando a atenção para o fato de que o marido (ou namorado) possa estar traindo-a com uma “piriguete”, mulheres vistas como fáceis e interesseiras .

Mesmo em filmes que têm uma proposta de desestabilizar, de questionar os padrões dominantes, são reproduzidos velhos e arcaicos clichês. Talvez porque, mais do que velhos e arcaicos, eles ainda estejam bem presentes na cultura e no pensamento da sociedade atual. Ao ser traída, a mulher se culpa e chama a “outra” de “vadia”, enquanto o marido, acaba sendo inocentado.

-“Aquela vadia” (se referindo à amante, óbvio!).

O que achas que eu deveria ter feito?

- [...] Acabado com ele.

- Mas não. Eu o perdoei. Percebi que a culpa também era minha (Do filme “Laços de afeto”, 2022).

No dia a dia, vemos exemplos do funcionamento do patriarcado, quando mesmo na ausência dos homens, as mulheres julgam moralmente umas às outras, quando uma mulher possui vários parceiros ou se optar em não se casar ou, ainda, no que diz respeito à responsabilização da mulher por ser traída pelo marido. Conforme Cisne (2018)*, isso não quer dizer que as mulheres sejam “culpadas” em reproduzir esse sistema. Mas que “as mulheres são sínteses das relações que estabelecem, mediadas por uma sociedade alienante e alienadora” (CISNE, 2018, p. 90).

É preciso compreender o patriarcado como um sistema de dominação, porque só assim poderemos entender, por exemplo, porque as mulheres ajudam na reprodução da sua própria dominação/opressão. O patriarcado é um sistema de dominação tão forte, que o próprio dominado internaliza e reproduz a dominação, no discurso e na prática. Ou seja, quando uma mulher compete com a outra, ou tem inveja da outra, assim, elas muito mais ajudam na manutenção do sistema de dominação, ao invés de combatê-lo. Mas não se está aqui culpabilizando as mulheres. Ao contrário, como entende a pesquisadora Mirla Cisne, isso tudo quem faz é o sistema patriarcal. Nós vivemos dentro de um sistema patriarcal e todos acabamos reproduzindo-o consciente ou inconscientemente. Mas isso não é o mesmo que dizer que as mulheres são machistas.

Outra música que traz muito claramente a competição e até uma afronta de mulheres para com outras mulheres, é Show das poderosas, da cantora Anitta, que fez muito sucesso, inclusive. Impressionante como sua letra está se dirigindo às mulheres, até na hora em que ela diz: “Solta o som que é pra me ver dançando, até você vai ficar babando”, não se dirige aos homens, e segue: “Para o baile pra me ver dançando. Chama atenção à toa, perde a linha e fica louca”, ou seja, é para outra mulher (ou, para outras mulheres, “as invejosas”). É o que vemos na letra.

Prepara, que agora é a hora

Do show das poderosas

Que descem e rebolam

Afrontam as fogosas

Só as que incomodam

Expulsam as invejosas

Que ficam de cara quando toca

Se não tá mais à vontade, sai por onde entrei

Quando começo a dançar, eu te enlouqueço, eu sei

Meu exército é pesado, e a gente tem poder

Ameaça coisas do tipo: Você!

O patriarcado é uma engrenagem que pode ser e é acionada por homens, mas também por mulheres. Tão forte que faz com que suas maiores vítimas sejam transformadas em uma espécie de fiéis escudeiras na reprodução de discursos e práticas. Justamente esta é uma das maiores formas de essa estrutura se manter. Como nos fala a socióloga, Heleieth Saffioti, além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, funciona como uma engrenagem quase automática, pois pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. É como uma “máquina bem azeitada”. Assim, ela analisa o sistema de dominação patriarcal, utilizando-se para isso, de uma obra-prima do cinema chinês, o filme Lanternas Vermelhas de Zhang Yimou (1991). O filme aborda, com muita maestria, essa problemática mostrando como as mulheres, as concubinas, “realizam ações para atrapalhar umas às outras, sempre visando à atenção do Senhor e os benefícios de uma noite com ele” (https://www.planocritico.com/critica-lanternas-vermelhas/).

A pergunta que não quer calar é: o patriarcado terá fim? Tenho para mim que não veremos essa mudança acontecer, porém, não é por isso que devemos “cruzar os braços”. De acordo com outra socióloga, de quem aprecio muito as ideias, Danièle Kergoat, a mudança nas relações sociais, o que ela entende como rapport sociaux, só é possível quando acontece no nível das práticas sociais, ou seja, no momento em que não apenas em nossas relações interindividuais operamos mudanças, como entre um casal, por exemplo, mas nas relações macro, que são as relações entre grupos. Isto é, a mudança, para ser efetiva na sociedade, precisa acontecer no âmbito estrutural e não apenas intersubjetivo. Desse modo, segundo Kergoat, “é possível pensar a utopia!”

*CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 2018.

(Publicado em 22 de maio de 2022 no Jornal O Tempo, Minas Gerais)

Vera Kalsing
Enviado por Vera Kalsing em 04/07/2022
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