O preço do desapreço
Vamos entender por “desapreço” a negligência, o descuido, a falta de zelo, a pressa que é inimiga da perfeição. Tudo aquilo que fazemos sem o devido cuidado. Às vezes fazemos até ignorando o que estamos fazendo: uma alienação, consciente ou inconsciente. Em qualquer dos níveis de importância de nossa vida: a higiene e a saúde pessoal, o cuidado com a casa, a educação formal e a informal, a formação e a dedicação profissional, o trato com os amigos e com todos os demais com quem convivemos, as convicções que abraçamos e que expressamos na hora de debater, argumentar, escolher, votar.
Há uma parábola bem conhecida que procura nos alertar que o desapreço não compensa. Ela conta a história de um homem que, após a morte, vê-se num mundo em que todos são convocados a fazer um percurso ao longo de uma planície, carregando cruzes. Cada um com sua cruz. O homem logo nota que as cruzes não têm o mesmo tamanho. A sua não é a maior, mas há muitas menores que ela. Começam a caminhar todos juntos, no mesmo rumo. Até que o homem se incomoda de ver tantos carregando uma cruz menor que a sua, e resolve cortar um pedaço, diminuindo-a e aliviando-se. Mais um trecho caminhado, mais um arroubo de comodismo, mais um pedaço cortado. Depois de várias podas na sua cruz, os caminhantes chegam a uma profunda grota, com largura variável. Cada caminhante tem seu lugar certo para atravessar a grota. A cruz é exatamente o comprimento que serve de ponte na passagem de cada um. O homem que diminuiu sua cruz descobre então que ela já não serve de ponte. Ficou muito curta. O guia da caminhada dirige-se então a ele dizendo que é necessário retornar e emendar a cruz com os pedaços cortados. Só assim ela voltará a ter o comprimento necessário para ultrapassar a grota.
A parábola é uma metáfora da vida. Quantas vezes não tentamos diminuir nossos encargos e depois descobrimos que só fizemos duplicar nosso trabalho? Talvez a diferença principal entre a parábola e a vida é que lá o homem parece ter um aprendizado definitivo ─ “Quer ultrapassar a grota? Então trate de trazer a cruz do tamanho certo!” ─ Já na vida, parece que demoramos a aprender a persistir nas nossas responsabilidades, para alcançar um objetivo. Damos ensejo ao aforismo de que só aprendemos pela dor. Não cuidamos adequadamente da nossa saúde, sofremos de doenças que poderíamos evitar. Não cuidamos de triar as informações e estímulos que recebemos, acabamos vítimas de manipulações e de impulsos que nos são completamente estranhos e desnecessários: consumimos produtos e ideias que, ao invés de nos ajudarem e nos emanciparem, nos atrapalham e nos fazem inseguros e submissos.
Talvez a mais nefasta consequência do nosso desapreço e desatenção seja a escolha que fazemos na hora de votar, nas situações em que o voto é a forma de manifestação e decisão. Não dedicamos tempo e reflexão para fazer escolhas que representem a defesa do interesse coletivo, e não do interesse pessoal ou de minorias elitistas e oportunistas. Muitas vezes nem nos damos ao trabalho de refletir por que valorizar o interesse coletivo, e não o interesse de minorias.
O momento de uma eleição remete à parábola do homem que tem de atravessar a grota com a cruz. Se formos conscienciosos, e escolhermos estadistas, capazes de empatia, as tensões sociais vão ser amenizadas. Vamos ultrapassar os abismos que dividem a sociedade, e avançar. Se escolhermos oportunistas, incapazes de compreender a premência da inclusão e da equidade, as grotas vão ficar ainda mais largas. As cruzes para ultrapassá-las ficarão ainda mais encurtadas pelas fraudes ao longo do percurso. As tensões vão se agravar.