O xadrez, o poker, e como não confundir otimismo com positividade tóxica

 

No início de 1989, durante a minha primeira aula de Educação Física no Segundo Grau, eu menti. Uma pequena mentira que mudou minha vida. Como era o ano de mudança entre Primeiro e Segundo Graus, a maioria dos estudantes vinham de escolas diferentes, e não se conheciam. Por isto o professor de Educação Física pediu que todos se apresentassem, dizendo o nome, o Colégio de onde vieram, e o esporte que praticavam.

 

Eu era um CDF. Para quem não conhece, é o termo pejorativo que se usava na época para o que hoje chamamos de nerd. Cu de ferro, no sentido que fica sentado horas estudando. Eu simplesmente não praticava esporte nenhum. E escolhi uma pequena mentira para expressar isto. Disse que o esporte que eu praticava era o xadrez. Uma forma de declarar minha minha valorização de coisas intelectuais sobre coisas físicas. Não era verdade, e sim uma espécie de vaidade intelectual. Eu até gostava de xadrez, mas não jogava com frequência. Tinha lido um livro (muito ruim) de teoria, mas só jogava contra o computador (na época eram péssimos). Não era exatamente um enxadrista.

 

Mas esta pequena mentira acabou por atrair mais dois CDFs estranhos, e meio que me obrigou a jogar xadrez com muita frequência. Estas duas amizades também influenciaram varias decisões de minha juventude, entre elas, a de estudar na Unicamp, o que acabou por ser determinante na minha personalidade. Mas vamos ficar no xadrez.

 

Graças a esta pequena mentira acabei por me apaixonar pelo jogo. Uma paixão tardia, com 14 anos de idade (para o xadrez não é incomum crianças se empolgarem com o jogo com 6 ou 7 anos). Mas tive uma dedicação febril ao jogo. Tanto pela intensidade, quanto pela desorientação.

 

E o xadrez correspondeu bem. Me trouxe boas lições, e grandes amizades. As principais lições foram aprender a importância de planejar, tentar prever o futuro e calcular os melhores planos. Também me ensinou a reagir de modo persistente quando os planos fracassam.

 

Me ensinou também o valor do estudo, da concentração, e talvez a mais dura das lições, que temos que pagar pelos nossos erros. Uma regra entre os jogadores de xadrez é que nunca se deve pedir para voltar um lance. É um hábito mal visto, considerado até antidesportivo. Se no meio do jogo percebemos que fizemos besteira, somos obrigados a lidar com as consequências. Não há segunda chance. Não adianta chorar e dizer que você sabe fazer melhor, o erro esta feito. Lide com ele.

 

Graças ao xadrez me apaixonei por jogos de estratégia. E depois por jogos em geral. E, na minha maturidade, o xadrez foi se tornando cada vez menos popular. Foi ficando muito difícil encontrar bons clubes, bons torneios, etc. Outro jogo sofreu uma explosão de popularidade, fazendo com que muitos enxadristas passassem a se dedicar a ele. O poker. Pode surpreender muitos, mas sim, o poker tem muitas semelhanças com o xadrez. Apesar de parecer ser um jogo de azar, há muita habilidade, tática, estratégia, cálculo e outras coisas similares nos dois jogos.

 

Mas há uma enorme diferença. O xadrez é um jogo de informações completas. Tudo o que se precisa saber para analisar o jogo esta visível aos jogadores. Então tudo o que o enxadrista precisa fazer é calcular melhor que seu adversário quais são os melhores movimentos. O poker é um jogo de informações incompletas. Um jogador sabe que cartas tem na mão, e quais são as cartas públicas. Mas não sabe as cartas dos adversários, muito menos que cartas irão aparecer no futuro.

 

Isto faz uma diferença substancial. No xadrez quem faz os melhores lances vence o jogo. No poker muitas vezes  quem toma as melhores decisões é prejudicado, e quem faz tolices pode ser recompensado. Se no xadrez a verdade do xeque-mate prevalece no final, no poker injustiças acontecem a torto e a direito. O baralho pode ser muito cruel.

 

E neste ponto o poker se assemelha muito mais com a vida que o xadrez. A vida é injusta. Começamos em situações desiguais, e somos expostos a condições desiguais. Alguns tem de matar um leão por dia para conseguir se alimentar. Outros podem dedicar boa parte de sua vida para frivolidades. Para jogos, por exemplo. Sem temer perder o jantar por ficar estudando uma partida.

 

Na vida, como no poker, fatores que estão muito além de nosso controle podem fazer com que os melhores planos fracassem, ou que decisões estúpidas deem bons resultados. O que não significa que devamos nos entregar ao acaso e a sorte. Nós temos controle de algumas coisas, a saber, nossas decisões. E com boas decisões podemos extrair o melhor resultado possível, mesmo em momentos que as cartas insistem em nos sabotar. Não podemos esperar resultados justos, mas podemos esperar obter o melhor mesmo em situações difíceis.

 

E é essencial que não sejamos orientados por resultados. As vezes o fracasso não é uma falha nossa. As vezes o vencedor não é um exemplo a ser seguido. Muita gente boa morre na praia, e muita gente questionável leva a melhor na vida.

 

E esta é a diferença entre o otimismo saudável e a positividade tóxica. Apesar de muitos coachs e escritores de auto-ajuda tentarem vender que a única diferença entre sucesso e fracasso, entre realização e frustração, entre felicidade e tristeza é a nossa atitude, isto é uma enorme e perigosa mentira.

 

O segredo do sucesso e da felicidade simplesmente não existe. E acreditar que qualquer um que se esforce o suficiente atingirá seus objetivos é uma ideia bem perversa. É fácil não apenas se frustrar ao perseguir esta crença, como também culpar alguém (ou a si mesmo) por resultados que aconteceram por um baralho cruel.

 

É preciso reconhecer os nossos erros e corrigi-los. Mas também é essencial perceber quando estamos lidando com um cold deck, quando as cartas simplesmente não ajudam. Não é nada simples separar o erro do azar, ou o acerto da sorte, mas é uma habilidade necessária para entendermos o real cenário que estamos lidando e aprendermos a buscar as melhores decisões possíveis.

 

E infelizmente tanto no xadrez, quanto no poker, ou na vida, ainda existe o fator da trapaça. Nem todos jogam pelas regras. Não basta a vida ser injusta e indiferente, ainda há aqueles que subvertem o jogo. O que pode ser determinante em vários momentos. Temos que saber lidar com estes tristes momentos.

 

Indo para uma terceira paixão minha, a literatura, eu diria que na vida devemos tentar ser os protagonistas de nossas histórias, temos de tentar assumir o comando de nosso destino. Mas jamais seremos o narrador do livro. Não temos o controle de tudo. E muitas vezes os bons sofrem derrotas, e os perversos vencem. É justo? Não. Mas é o mundo que vivemos.

 

O universo nunca irá conspirar a seu favor. O bem nem sempre vence o mal. Olhe as cartas, olhe suas fichas, e tome a melhor decisão. Nem sempre dará certo. Mas aumentará significativamente suas chances.