O MAL RADICAL

O MAL RADICAL (parte 1)

"...pois sendo o mal nessa perspectiva

sinônimo de violência, combatê-lo, por

meio da ação ética e política, é diminuí-

lo no Mundo". NÁDIA SOUKI

(in "Hannah Arendt e a Banalidade do

Mal", Editora UFMG, 1998, BH)

As obras e teses sobre Filosofia são de difícil leitura para a maioria dos mortais, tem-se a sensação de que seus autores escrevem para parecerem eruditos, gênios do Pensamento. Felizmente, aqui e ali "tropeçamos" em "tradutores" que nos destrincham 9e explicam) a algaravia científica. É o caso da Dissertação de Mestrado de 1995, de NÁDIA SOUKI que, enquanto reciclador, achei no lixo de certa residência. Aliás. nem sequer é livro... trata-se de "reprodução não-autorizada" de obra dela, simples xeroxs. Também eu faço aqui outra "reprodução" de igual teor, na certeza de que "Conhecimento que não SE DIVIDE é de pouco (ou nenhum) valor. E só o faço pela importância que sua análise tomou nesses nossos tempos.

"Ditadores" totalitários a História sempre teve, desde os tempos de imperadores chineses e déspotas mongóis, de romanos Césares a Kaisers e Czares alemães e russos. O Brasil também os teve desde seus primeiros dias, nos governadores do Vice-Reino, depois Capitanias, chegando aos nossos tempos, tendo Getúlio Vargas como símbolo-mor.

Eis que passada essa "maré de horror", boa parte da humanidade do Século 21 assiste incrédula a ascensão do que de pior o gênero humano pode produzir. Este ensaio de Nádia Souki nos ajuda a compreender a existência desse atual "eleitor-avestruz", "povo-gado" -- já citado genialmente por Zé Ramalho -- que nada vê ou QUER VER ou, ainda, no dizer de amiga (?!), em indireta me dirigida, "só vê o que quer ver".

Em se tratando de Brasil, é muita gente, uns 30 MILHÕES hoje, com os amigos esclarecidos de tais "cegos" sem entender como pessoas, antes sensatas, ficaram tão obtusas, "idiotas". Os escritos do famoso filósofo Immanuel KANT e de sua admiradora (e "discípula") Hannah Arendt ajudam a explicar esse "sonambulismo" de regiões inteiras, meia Nação até -- no caso da 2ª Guerra Mundial -- e, atualmente, em vários países, o Brasil entre êles. Citando Kant, a autora alerta que "Estado e/ou Religião são capazes dessa "mágica", desta ILUSÃO que cega e fanatiza multidões", pessoas "vazias de pensamento", na definição de Hannah Arendt. Descrevo a seguir breves do extenso livro de Nádia Souki, fora da ordem original, para trazer ao eventual leitor(a) alguma luz que o faça entender os tempos atuais:

1 - "A emergência (leia-se, surgimento) do fenômeno totalitário obrigou-nos a reavaliar a ação humana e a História, na medida em que esta revelou novas figurações do homem, inclusive em algumas de suas formas monstruosas. (...) Segundo a autora, quando tentamos compreender o fenômeno totalitário -- que nos impõe essa realidade e que contraria todas as normas que conhecemos -- não temos apoio na experiência da tradição. Para ela, essa falta de apoio se deve tanto ao fato de a emergência de tal fenômeno constituir algo novo, que não se ajusta às nossas categorias de pensamento, quanto à constatação de que toda tradição filosófica se recusa a conceber um mal radical."

2 - "O primeiro passo essencial no caminho desse domínio total é a destruição jurídica do homem. O passo seguinte é a anulação da individualidade e da espontaneidade, de forma que seja eliminada a capacidade humana de iniciar algo novo com seus próprios recursos. O objetivo dessa destruição é a transformação da pessoa humana EM COISA. (...) Nas sociedades burocráticas modernas, os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram, silenciosamente, com os instrumentos totalitários para tornar os homens supérfluos. Hannah Arendt mostra-nos que o modelo de "cidadão" das sociedades burocráticas modernas é o homem que atua SOB ORDENS, que obedece cegamente e é incapaz de pensar por si mesmo, pois essa supremacia da obediência pressupõe a abolição da espontaneidade do pensamento. E nessa ausência de pensamento, nessa expressão humana opaca, nessa rarefação das consciências aparece a tragédia, batizada por Hannah Arendt de a "banalidade do mal". (...) É exatamente a partir dessa experiência de perplexidade e espanto (obs: refere-se á entrevistas de Arendt com o nazista Adolf Eichman) que se dá o percurso do pensamento arendtiano, da formulação da idéia de banalidade do mal à de vazio do pensamento. (pags 10-11)

3 - "...a paixão não refreada, que se desenvolve na solidão, como a solidão do tirano não encontra nenhuma compensação: a árvore é torta, retorcida, curvada. Assim, a solidão é o princípio da tirania e, essa última, o princípio dos vícios. (...) Para Kant, o homem é curvo por natureza, mas pode ser recuperado através da sociabilidade. O homem é curvo como ponto de partida. (...) Nesse ensaio, Kant distingue o mal por falta e o mal por privação. O mal por falta (defectus, absentio) é pura negatividade, pura ausência de bem, caracterizando, assim, a ausência de um princípio positivo; já o mal por privação tem positividade própria..."

"Essa diferenciação possibilitou a Kant a ruptura com a tradição filosófica que considerava o mal apenas como negação. O mal como privação, como oposição real ao bem, implica um princípio positivo, supõe uma razão positiva que supera o bem. O mal já não é mais ausência, mas oposição real, posição: não é um simples fenômeno, um acontecimento que se esvaneceria com a intuição das coisas, tais como elas são em si." (pags. 18-19)

Para Kant. o homem deve superar o estado do mal, e esse dever é concretizado como um dever de todos e não apenas pelo esforço de um indivíduo, Sem o esforço de todos não existe autêntica possibilidade de superação do mal. Esse dever, portanto, é especial, não de homens diante de homens, mas do gênero humano diante de si mesmo. (...) Dentro dessa interpretação, a doutrina do mal radical pode oferecer uma estrutura de acolhimento a novas figuras de alienação, distintas da ilusão especulativa ou do desejo de consolo. (...) Para se pensar o surgimento de fenômenos históricos inteiramente novos que revelaram formas inéditas de violência política, é necessário questionar acerca do mal e do homem, precisamente em sua faculdade de criar regras para si mesmo. (...) O fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e que a organização burocrática de massas, baseada NO TERROR e nas ideologias, criou novas formas de governo e dominação, cuja perversidade não se pode medir". (pags 29 a 33)

4 - "Hannah Arendt explica que o verdadeiro mal radical surgiu em em um sistema onde todos os homens se tornaram "supérfluos", isto é, eles se tornaram meios. E essa "superfluidade" atingiu tantos os que foram manipulados quanto os manipuladores e os "assassinos totalitários são os mais perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram". Podemos pensar que essa nova modalidade de mal radical aparecerá toda vez que o homem for transformado em "supérfluo" e este risco pode muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários. (...) A questão originária sofre aí um deslocamento radical: não se trata de explicar o fenômeno focando-se na questão moral ou na antropológica, mas sim de compreender, num enfoque político, como um Estado pode ser capaz de produzir agentes heterônimos que funcionam, tão eficientemente, como agentes reprodutores de seus objetivos. (pag. 34)

O problema do mal passa, então, a ser questionado dentro de uma dimensão poítica, numa visão original que é a da sua "banalidade". Com isso, ocorre uma ampliação do pensamento político de Hannah Arendt. E, através desse deslocamento, ela pode renovar suas esperanças no homem, resgatando o papel de agente transformador da história, ou, em outras palavras, de agente político. (...) Kant interroga se é possível o homem mentir para si mesmo e conclui que isso é fácil de se CONSTATAR, mas difícil de explicar. Este fato nos leva a afirmar que o homem, ser noumenal, pode se servir de si mesmo como ser fenomenal, assim como uma simples máquina QUE FALA, sem colocar sua fala de acordo com seus pensamentos". (pag. 35)

5 - "O que as ideologias totalitárias visam NÃO É a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana. Para Arendt, o totalitarismo é, no fundo, o MUNDO INVERTIDO enquanto proclama a destruição de toda ação, enquanto é inauguração. Monopolização do poder, isolamento de um indivíduo totalmente abarcado e privado de ação, amnésia, clandestinidade, destruição de toda faculdade de julgamento, DELÍRIO lógico, vontade de tranformar a natureza humana: eis as características da inversão dos valores efetuadas pelo universo totalitário ONDE TUDO É POSSÍVEL e nada é verdadeiro.

Segundo Chãtelet, no âmplo quadro de pesquisa sobre o totalitarismo, Hannah Arendt ultrapassa o espaço crítico do liberalismo, do qual partilha as principais perspectivas. Isto porque, ao pôr o acento nessa "banalidade do mal", que ameaça o Século XX, ela opera uma análise sistemática da MASSAFICAÇÃO. Ao dizer que o SÚDITO IDEAL do reino totalitário não é nem o nazista convicto nem o comunista convicto, mas sim o homem desolado, esse homem moderno cuja condição vem sendo preparada desde a Revolução Industrial, Hannah Arendt mostra que, nessa condição DE HOMEM DE MASSA, o indivíduo perdeu seu status quo político, foi desindexado da história real e DESTITUÍDO como sujeito político.

A despolitização o transformou em átomo anônimo entre os átomos anônimos da massa para transformá-lo em um "HOMEM QUALQUER", sem capacidade política, sem consciência moral, sem vontade, sem julgamento e, assim, capaz de sofrer E DE FAZER banalmente o mal. (...) O que Hannah Arendt tenta apontar, no seu relato sobre a banalidade do mal, é que o mal não é fruto do exercício, mas sobretudo do NÃO-EXERCÍCIO da liberdade. O mal, numa escala gigantesca política e social, tem, mais frequentemente, SUA ORIGEM NA OMISSÃO. É nesta concepção arendtiana do mal que pretendemos apoiar nossa reflexão sobre a banalidade do mal." (pags.65-68)

(...) "A linguagem de (Adolf) Eichman é o tipo perfeito do que se pode chamar de "linguagem burocrática", aquela cuja função fundamental é criar uma apaziguadora ILUSÃO para os executantes e para os executados, pois estes últimos nem de longe entendem o significado dessas palavras. (...) Fica claro que é, de fato, um traço essencial do totalitarismo este USO MISTIFICANTE da linguagem; sua função é criar e manter o afastamento da realidade, e ela é criada não só para o uso da polícia, mas passa também a ser uma linguagem comum IMPOSTA a todos". (pag. 91)

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OBS: como o tema é INSTIGANTE, me vejo obrigado a reproduzir uma "segunda parte" deste magnífico livro, com o título de "O VAZIO DO PENSAMENTO" e que faz a conclusão dos argumentos dessa parte "inicial".

"NATO" AZEVEDO (pela transcrição, em 10-11 de maio 2022)