As três raças, a sociedade

Logo cedo no Brasil, na sua capital, como nas demais povoamentos, a obra da civilização foi deturpada pelo conflito das raças, disfarçada em democracia, fruto antes da luxúria que da piedade dos peninsulares. Desde o primeiro momento o branco, o índio e o negro se confundem. O contacto das raças inferiores com as que são cultas, quase sempre desmoraliza e deprava a umas e outras.

Principalmente, porém, deprava às inferiores pela opressão que sofrem, sem que este seja o pior dos contágios que vêm a suportar.

E claro que negros e índios não poderiam ser senão a ocasião de desdém e de ódios que gera o escárnio dos superiores. A mulher de raça inferior não consegue ser dignificada nem mesmo depois de formada a raça mestiça.

O próprio governo considerou por vezes uma infámia o casamento promíscuo de brancos e negros. O padre Nóbrega diz numa de suas cartas que um branco raptou uma índia e, censurado o seu procedimento, entendeu que estava justificado, só com batizá-la. A prole assombrosa pelo número Dos Ramalhos e Caramurus atesta o egoísmo e a sensualidade dos primeiros colonos.

Como poderia fundar-se a ordem civil sem a possibilidade de fundar-se a família?

O branco procurava ( e isso havia já dois seculos na península) o pretexto real do clima para evitar os duros trabalhos da agricultura tropical, e assim escravizava os negros, e agora, quanto podia, os índios. Começam as expedições escravistas manchadas na veracidade de todos os crimes.

A primeira consequência para os colonos era a ociosidade dos remediados e ricos, o luxo e com ele a depravação da energia e a dos costumes. Quase toda a gente tinha escravos, ou índios ou negros. Esse costume gerava o sarcasmo, o ódio, o desprezo de um lado pelas progênies escuras, e a perfídia de outro, o desprezo da piedade e do respeito humano. Se acrescentarmos que na maioria eram os brancos degredados e criminosos, homens sem escrúpulos e deduzidos, pode-se fazer ideia dos crimes que então se cometiam e da dissolução que lavrava em toda a sociedade.

Entre raças diversas toda a mistura por assim dizer se torna em combinação; tais contactos destroem a humanidade no homem. Nada escapa à distribuição do mal que a sociedade gera e espalha por todos os escaninhos onde a sua seiva circula. Instituindo a escravidão, a profissão principal do colono era a presa humana, a caça aos selvagens. Os que ouviam a voz dos jesuítas ou da consciência, fixaram-se ao solo e fundaram os engenhos; mas compravam os escravos que os demais iam arrancar à floresta ou através dos mares à África. Os demais entregavam-se às atividades vagabundas do jogo ( que tão público andava), diz o padre Blasques. Os vícios dos cristãos, diz ainda o mesmo jesuíta, juntavam-se aos da gentilidade ( fazendo uma embrulhada diabólica).

A dissolução da vida moral inventou a exculpação de que os crimes ( da lá) já não o eram aqui; também os holandeses de Pernambuco dirão mais tarde que não há crimes ( aquém da linha equinocial).

Os portugueses que vieram estabelecer-se nas terras do Brasil não pertenciam à classe média, aliás pouco populosa esses começos da idade moderna, máxime em Portugal, onde não havia indústria nem já agricultura. Eram fidalgos ou ínfimos plebeus e degredados; a maior parte, gente aventurosa e sem consciência. Uns poucos vinham por senhores; outros e na maioria, por governados, senão detentos; - melhor parte era a que pesquisava a fortuna e as aventuras, ou fugia à sanha da perseguição religiosa.

Todos entretanto refletiam o estado de alma de Portugal do tempo da Inquisição, do país da Europa onde era mais cara a vida e onde o monopólio das especiarias, das sedas e preciosidades do Oriente tinha desenvolvido o luxo, a corrupção e a profunda miséria. Motins sanguinolentos abalavam Portugal no tempo em que lá fora a centelha da reforma passava no ambiente; tais foram os horrores, os assassínios, as mortandades contra judeus e suspeitos de livre pensamento, que se achou logo louvável criar-se o tribunal da Inquisição, ao menos como um instituto legal que punha um termo ao tribunal tumultuário das ruas.

Tais eram na colônia os Brancos

A gente válida era dizimada no Oriente ou em África; ficava e crescia a população parasitária, ignorante, cruel e fanática. Nos poucos, na maioria provincianos, que sobreviveram ou resistiram a essa dissolução, felizmente é que estava a vitalidade nacional, nos seus navegadores e artistas; mas eram insignificantes para obstar ao desastre próximo.

Vindo para o Brasil, os Brancos carregavam todos esses vícios da decadência que não deixavam de empanar a coragem, o valor e espírito de aventura que lhes eram próprios. Os colonos são turbulentos e desumanos; em breve odeiam o trabalho que relaxam e passam ao índio ou ao negro; adotam a indolencia ou dela são vencidos e dos costumes dos naturais, que pervertem até fisicamente, trazendo o contágio das epidemias. Os de baixa condição, agora com a fortuna fácil, tornam-se arrogantes, arruínam-se no luxo das sedas e de todos os prazeres sensuais. Dentro de pouco a fortuna mais tardia e honesta do trabalho agrícola é perturbada pela imaginação das minas, dos Elaborados e de riquezas fantásticas – miragem contínua e quase sempre desmentida pela decepção no primeiro século.

O elemento conservador e aristocrático da colônia compõe-se dos grandes senhores de engenhos – estes à moda árabe, com a moeda triplicada impelida quase sempre à mão pelos escravos ( porque, no princípio, o muar é ainda raro). Depois dos senhores de engenhos há os merceeiros da cidade, os ourives, que são em grande número, e os pequenos comerciantes. Entre uns e outros estão os capitães do resgate. Que capturam os índios ao tempo que fazem o pau-brasil e as indústrias extrativas.

O negro, o fruto da escravidão africana, foi o verdadeiro elemento criador do país e quase o único. Sem ele, a colonização seria impossível, ao menos ao dissipar-se a ilusão do ouro e das pedras preciosas que a levantavam, em grande parte e a princípio, os primeiros colonos. A adaptação dos brancos ao novo clima, como a de certas plantas, exigia esse arrimo de onde lhes vinha à vida. Também por outro lado foi o negro o máximo agente diferenciador da raça mista que no fim de dois séculos já afirmaria a sua autonomia e ordiginalidade nacional.

Os Primeiros negros são de Guiné, mas dentro de pouco o tráfico atinge Angola e a contra costa em Moçambique, e de lá chegam levas nas esquadras negreiras, todo o ano.

O ìndio formava uma população muito variada nas suas tribos, algumas destas talvez mais distanciadas entre si, do que dos brancos, e possuía tal mobilidade de habitat que seria difícil ao menos em parte assinar-lhes região e domínio próprio. Esse elemento étnico pouco contribuiu e contribui ainda pouco ao desenvolvimento econômico e moral do país – mas com toda a sua mesquinhez de ação é todavia simbólico e característico, e tem sido falsa ou verdadeiramente utilizado como fator aristocrático na história da luta entre colonos e jesuítas e quatro séculos mais tarde entre os revolucionários da independência; os autonomistas mais tarde dirão que descendem do caboclo. O sentimento de humanidade não justifica a escravidão negra de preferencia á vermelha, menos culta; antes o justificava o instinto prárico, senão o prejuizo do cor, por considerar a última mais próxima do branco.

O branco inteligente, mas ávido e atroz, o negro martirizado e servil e o índio altivo mas indolente, são os tres elementos donde vai sair a nacionalidade futura. Mas a agitação étnica é toda subterrânea e está repartida por todo o subsolo, guardando a futura erupção. As aldeias de índios tornavam-se perigosas desde que a embriaguez pela aguardente nelas entrará com a civilização. Então a tísica, os assassínios, as rixas e mortes, efeitos seguros do álcool, eram frequentes e, segundo o costume deles, por motivos mínimos e insignificantes.

Nas cidades, a sua condição era mais tolerável; e a elas acorrem sobretudo as mulheres índias que preferiam naturalmente o trato dos europeus. Alguns as desposaram; outros, quase todos, abusam da inocência delas, como ainda hoje das mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas e escravas.

Todavia os colonos as tinham em certa estima. Pedro Lopes de Sousa escrevia das mulheres tupinambás em 1531 que ( eram alvas e muito formosas e não havia nenhuma inveja às de Lisboa). Na célebre carta de Vaz de Caminha lê-se que elas ( tupiniquins de Porto Seguro) eram ( moças bem gentis). Erotimo talvez de marinheiros e soldados.

As povoações do século XVI traduzem em seus aspectos, excelentemente, o estado de alma brasileira daquele tempo, que é ainda o de hoje do interior do país: o luxo das sedas e a ignorância crassa. O rico ocioso dá para demandar, passar a vida nessas rixas de matar o tempo.

Assaltam-se os costumes. ( O que mais espanta os índios e os faz fugir dos portugueses, diz Anchieta, são as tiranias que com eles usam obrigando-os a servir toda a vida como escravos. Afastando-os de pais, mulheres e filhos, ferrando-os e vendendo-os!! Nas colônias são por igual rápidas as falências, a ruína e a fortuna. A prosperidade e a dissipação são gêmeas), ( Qualquer peão, diz G. Soares, anda aqui com calções e gibões de cetim ou damasco, e trazem as mulheres com casquinhas do mesmo, os quais, como têm qualquer possibilidade, têm suas casas muito bem concertadas e trazem suas mulheres bem ataviadas de jóias de ouro).

A riqueza da cidade é entretanto móvel e precária e quase sempre, naquele tempo, destruída pela repatriação dos comerciantes.

A verdadeira base econômica do Brasil desde aquele tempo é a agricultura. No tempo de Anchieta os engenhos iam por 3, 8 e 12 léguas pelo interior; não iam além decerto a penetração e o povoamento da gente civilizada. Mas eram já numerosos os engenhos de açúcar que trabalhavam com os muares ou os escravos importados da Guiné.

Ainda que um pouco mais morigerada e culta, não podia essa classe conter a desordem das povoações. Para esse escopo trabalhava outra classe, aquela a quem devemos o gérmen da reação contra o espírito corruptor da cultura colonial.

Lahcen EL MOUTAQI

Pesquisador universitário- Marrocos

ELMOUTAQI
Enviado por ELMOUTAQI em 21/04/2022
Reeditado em 21/04/2022
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