Liberdade, escolhas e consequências...
Liberdade, escolhas e consequências na pandemia
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Por Guilherme Lima de Araújo
Já que o estudo da Biologia nos possibilita compreender melhor sobre o novo coronavírus e a História nos permite conhecer como enfrentamos epidemias anteriores, levantemos a questão: como a Filosofia pode contribuir no cenário de hoje?
Atualmente, com o avanço nas diversas áreas da ciência, atribui-se como tarefa da Filosofia a discussão de problemas relacionados aos fundamentos da razão (sua origem e o que é possível conhecer), a busca por autoconhecimento (no sentido de alcançar uma vida plena) e as discussões no campo da ética e da moral. De todas essas questões, a mais comum no nosso cotidiano é a ética, e por mais incrível que possa parecer, sua definição exata foge de nós. Antes de continuar a leitura do texto, tente você mesmo defini-la.
Antes da definição, é necessário compreender que ética, liberdade e consequência são inseparáveis. Como exemplo, temos uma das frases mais célebres da Filosofia, dita pelo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980): “Somos condenados a ser livres”. Livres, pois como criaturas racionais, somos senhores absolutos da nossa própria existência. Condenados, pois não há possibilidade de fuga da nossa liberdade de escolha. Se visto de uma maneira simplista, é possível cair no engano de que essa tal liberdade de escolha significa um convite a uma vida de ações inconsequentes, movida pelas nossas vontades e desejos. Entretanto, Sartre nos esclarece que a liberdade de escolha é acompanhada pelo fardo das consequências de nossas ações. Tomar uma decisão significa eliminar todas as outras infinitas possibilidades que não poderão mais acontecer, aceitando viver as consequências felizes e tristes daquela escolha, e nada de ficar pensando como poderia ter sido se…
Destarte, diferentemente do que grande parte das pessoas pensa, ética não se trata de um código de conduta que se resume a permissões e proibições. Ética se trata do esforço coletivo e contínuo que visa superar os conflitos e as dificuldades da vida em sociedade, visando alcançar o bem comum. Evidentemente há diversos consensos, mas se a ética fosse um saber acabado, seria objeto de estudo das ciências exatas, e não das ciências humanas. A ética é viva e necessita de uma constante reflexão, tendo em vista cada novo desafio que situações inéditas impõem a nós.
A complexidade da ética se deve à própria natureza humana. Diferentemente de outros animais na natureza — em que a ética não faria sentido —, nós não nascemos prontos, mas nos construímos ao longo de nossas vidas e de nossas experiências. Mudamos e nos transformamos constantemente. Essa complexidade nos força a refletir diariamente sobre nossas ações e condutas, em vista das inúmeras possibilidades de escolha e de consequências. O saber ético só é possível entre os seres que têm consciência disso.
Para as abelhas, por exemplo, a ética não tem importância alguma e elas podem continuar existindo sem muitos problemas. Isso porque uma colmeia, em pleno século XXI, funciona da mesma maneira que uma colmeia da pré-história. As abelhas não têm capacidade para reinventar a produção de mel ou transformar sua própria organização social (não há registros de revoltas contra a abelha-rainha para a instauração de um regime republicano ou socialista na colmeia), pois são reféns de sua própria natureza. Diferente do que ocorre no mundo das abelhas, o dinamismo das relações humanas pressupõe novos desafios a cada segundo.
Assim sendo, diante do desafio da Covid-19, como enfrentá-lo? Pelo menos do ponto de vista de uma discussão ético-filosófica, devemos respeitar o isolamento social ou abandoná-lo?
O filósofo iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804) acreditava que o atributo comum a todos os homens e o que nos diferencia do mundo animal é a razão. Partindo desse pressuposto, Kant propôs que alcançaríamos o bem comum mediante o uso da razão. Independentemente da situação vivenciada, o filósofo acreditava que, seguindo uma fórmula racional — que denominou “imperativo categórico” —, seríamos capazes de orientar as ações humanas rumo à mesma finalidade.
A fórmula do imperativo categórico é a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. Aplicando essa fórmula ao momento atual, chegaremos à resposta, que, segundo Kant, deveria orientar nossas ações na quarentena. Vejamos: “Será que desrespeitar as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), de técnicos e profissionais da área médica referentes aos perigos de contaminação pelo coronavírus e as consequências devastadoras que isso pode acarretar para mim, para as pessoas que amo e para o sistema de saúde pode se tornar uma lei universal, passível de ser seguida por todos os seres humanos?”. A razão nos leva a concluir que não, pois se todos os homens o fizessem, as perdas econômicas, de capital humano e afetivo seriam imensuráveis.
É importante ressaltar que Kant não diz o que devemos ou não fazer, apenas destaca que o uso da razão é o único caminho possível a ser seguido em direção ao bem comum por qualquer homem, de qualquer cultura, pois já que todos são dotados de razão, todos chegarão à mesma verdade.
Todavia, no mundo real e bem distante dos livros de Filosofia, há pessoas que dependem do trabalho do dia a dia para sobreviver e que estão passando por grandes dificuldades neste momento. Mesmo nesses casos, Kant ainda defenderia que não há possibilidades de agir contra as conclusões obtidas pela razão. Sem exceções. Contudo, estimado leitor, saiba que para o filósofo alemão, aqueles que agem de acordo com os corolários da razão, independentemente de serem si próprios prejudicados por determinada ação, agem com dignidade.
Em suma, o imperativo categórico kantiano é uma possibilidade de reflexão ética dentre tantas possíveis no mundo da Filosofia. Outro pensador alemão, Arthur Schopenhauer (1788-1860), chegou a afirmar que não somos dignos da ética kantiana por não sermos capazes de agir de maneira digna, abrindo mão de benefícios e prazeres próprios caso eles venham a entrar em conflito com a razão.
Por fim, o que gostaria de deixar claro é que uma reflexão ética — independentemente da questão — demanda considerar como princípios nossa liberdade de escolha como seres racionais e a responsabilidade que temos diante das consequências de nossas escolhas. Evidentemente que em casos específicos, analisados por meio de estudos e com orientações prévias, há a possibilidade da flexibilização do isolamento social.
Entretanto, sem dúvida alguma, uma atitude que fere os princípios de qualquer ética é a ação sem reflexão, quando nos deixamos levar por nossos desejos e pela fala de terceiros.
Quanto ao fim definitivo do isolamento social, diversas pesquisas indicam que ele deve ser determinado pelo resultado da testagem em massa da população, e não por discursos fervorosos cheios de falácias para afetar os sentimentos das pessoas, provocando medo e ansiedade sobre o futuro.
Portanto, defender neste momento o fim repentino das medidas preventivas é apostar sem provas (que é a testagem em massa da população) que já é seguro retornar à rotina, agindo sem a devida reflexão e cuidados. É seguir a melodia do flautista de Hamelin — uma lenda medieval — rumo à morte.
Segundo a lenda, a cidade de Hamelin vivia uma infestação de ratos. Sem ideias para resolver o problema, o governante da cidade resolveu pagar uma grande quantidade de ouro para quem conseguisse se livrar dos roedores. Foi aí que chegou à cidade de Hamelin um jovem que possuía uma flauta encantada. Com sua melodia mágica, o flautista atraiu todos os ratos e os levou para fora da cidade, afogando-os em um rio próximo. Quando retornou para pegar seu pagamento, o governante se recusou a pagar. Alguns dias depois, o flautista voltou a Hamelin em busca de vingança, e então, com sua flauta encantada, fez soar uma nova melodia mágica que dessa vez atraiu as crianças para fora da cidade até o rio, onde fez com que todas morressem afogadas.
A moral da história é que, em tempos de crise, quem age sem pensar nas consequências de suas ações semeia o caos e colhe a tragédia.
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Guilherme Lima de Araújo
Graduado em História e especialista em História, cultura e sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão Preto, SP.
Atualmente ministra aulas de Filosofia e Sociologia na escola técnica estadual Etec Prof. Alcídio de Souza Prado, onde também se ocupa da função de coordenador de classe descentralizada e do técnico em Recursos Humanos.
E-mail para contato: guilherme.wylde@hotmail.com