A Bolha Social e as Fake News

Sim, o texto é longo. Mas tenha paciência. Vamos lá...

É inegável a influência das redes sociais na nossa vida, mesmo que não se esteja participando ativamente de nenhuma delas. Através das redes sociais ninguém é apenas consumidor de informação, não existe sentido único. A antiga forma linear de comunicação mudou e hoje permite a qualquer pessoa ser também criador de conteúdo, ou seja, interagir, publicar e compartilhar informações. A comunicação baseada cada vez mais em imagens e menos textos abriu caminho para uma diversidade muito grande na produção de conteúdo. Entretanto esse aumento significativo aliado à nossa escassez de tempo nos leva em busca de respostas rápidas, geralmente rasas, o que é um impedimento de se aprofundar no assunto. Ninguém mais tem tempo e nem paciência de ler textos grandes (exceto esse, espero).

Sabedores disso, os criadores de conteúdo profissional se utilizam, sem moderação, de uma técnica de jornalismo conhecida como pirâmide invertida, onde o título do conteúdo é a notícia mais importante, detalhando o assunto no decorrer do texto. E o que isso tem a ver com o assunto? O problema está em que, pelos fatores mencionados em relação a nossa disponibilidade de tempo, estamos habituados a ler apenas manchetes e isso basta. Por efeito, acreditamos estar informados sobre determinado assunto sem avaliar o texto todo. Nem sempre a manchete expressa exatamente o teor do conteúdo. Essa associação de fatores leva a uma informação superficial, sem profundidade. Não há preocupação com a argumentação sustentada pelo autor do conteúdo, se é digna de crédito ou não. A premissa usada é: se a notícia diz algo sobre aquilo em que acredito, então deve ser verdade.

A consequência de sermos rasos na busca por conteúdo é o fato de que acaba sendo muito difícil discernir o que é verdade, o que é inventado ou distorcido. Além disso, esse hábito de não fazer uma análise crítica das informações que consumimos nos mantem numa zona de conforto, onde não existe o benefício da dúvida. Nossa mente não lida bem com mudanças e sempre nos arrasta para um estado de ilusão de que estamos seguros. Para nos preservar de um possível choque de ideias nosso cérebro nos guia de forma inconsciente focando apenas naquilo que não nos causa incômodo. Ser confrontado com diferentes pontos de vista causa desconforto e nem todos estão dispostos, ou preparados, a defender seu ponto de vista. Se somos favoráveis a determinada causa, a nossa mente será seletiva, elegendo aquelas notícias que estão de acordo com a nossa forma de pensar. As demais é como se tivessem um borrão, onde o conteúdo parece ser menos atrativo. Esse tipo de atitude vai aos poucos nos empurrando para um comportamento quase tribal, onde acabamos nos apegando a ideias e posicionamentos afins com a nossa forma de ver o mundo. Sem perceber estamos aos poucos criando a nossa bolha social.

A bolha social é, em resumo, uma segmentação de ideologia. Um lugar que nos permite relaxar, estar comodamente despreocupados, sem ter que sustentar nossa posição racionalmente, já que todos que estão ali compartilham da mesma visão. É confortável interagir, física ou virtualmente, com pessoas ou grupos que se encontram na mesma linha ideológica que nós. Permanecendo nesse estado seguro, agimos como tribo e não precisamos confrontar ideias. Nossa idiossincrasia está a salvo de questionamentos.

De certa forma todos vivemos em uma bolha social. A diferença está em quanto estamos determinados a expandir o alcance dessa bolha. Quanto mais flexíveis e dispostos a dilatar nosso entendimento, quanto mais inclinados a estender os limites da nossa bolha maior será a capacidade de reflexão e análise do mundo a nossa volta, possibilitando até mesmo a interseção com outras bolhas distintas da nossa, criando, quem sabe, um ponto de inflexão. Já, ao contrário, a falta de flexibilidade na forma de pensar e a falta de empatia torna nossa bolha menor e mais inflexível, sendo incapaz de perceber o ponto de vista alheio. As redes sociais elevam esse comportamento a uma esfera sem fronteiras.

Nas plataformas sociais essas bolhas são muito visíveis, quase palpáveis metaforicamente falando. Esse comportamento social tribal, reflexo da bolha que estamos inseridos, nos dá a falsa sensação de que a forma como percebemos o mundo está longe de ser questionada. Nessa linha as redes sociais acabaram corroborando com a ideia de que nós estamos certos e os demais errados, sendo que dentro do universo de cada bolha a reação é exatamente a mesma. Isso não acontece ao acaso. Os idealizadores das redes sociais trabalham incessantemente para nos manter sempre na nossa zona de conforto. Se estamos rolando o feed e as notícias que vão surgindo quase sempre são alinhadas à perspectiva que temos de um assunto não é porque o mundo todo pensa igual a nós. Ledo engano. É porque o algoritmo envolvido no processo já sabe de antemão quais notícias irão penetrar na nossa bolha, dando a impressão de que a nossa opinião é compartilhada pela maioria. Isso nos deixa confortáveis para continuar navegando nesse mar de informações, e assim acabamos reforçando a ideia de que a nossa forma de pensar é indiscutível. Esse modus operandi das redes sociais potencializou o chamado pensamento coletivo, intensificando a manifestação de opiniões mais radicais, quase sempre alheias à realidade.

Em síntese somos apenas vítimas de algoritmos, nada além de sujeitos passivos achando que o nosso sistema de ideias é legítimo e expressa interesse da maioria, sem perceber que somos manipulados o tempo todo. Na nossa mente nos encontramos no topo da montanha da razão, porém estamos tão somente sustentando a base de uma pirâmide de interesses.

Esses algoritmos são extremante complexos, chegando a milhares de variáveis, entre elas a proximidade geográfica com a fonte da publicação, número de curtidas, tipo de conteúdo, horário da postagem e por aí vai. Tudo para nos manter conectados o maior tempo possível. E para que mesmo? Tem uma frase que diz o seguinte: se você não paga por um produto, você é o produto. Ou alguém paga para ter acesso ao Instagram, Facebook, Tiktok, etc.? Esses produtos são “de graça”, não é? Não são! Somos fonte de renda, nada mais que isso. Claro que nem tudo são espinhos. Há quem utilize desse meio para empreender e tornar-se visível no mercado de prestação de serviços e bens de consumo antes dominado apenas por grandes empresas. Mas abordar esse aspecto não é o objetivo aqui.

No intuito de estimular um pouco mais esse cenário e nos manter ainda mais tempo conectados, essa forma de produzir conteúdo factível não basta. Cada vez mais as notícias têm que penetrar nas bolhas e nos manter engajados, mesmo sendo produto da imaginação de alguém ou maquiavelicamente planejadas e produzidas. Para alimentar essa máquina altamente rentável, não apenas no sentido financeiro, entram em cena as fake news.

O uso de fake news com os mais variados propósitos não é algo novo, porém nos últimos anos tem se tornado parte do cotidiano. Utilizando-se de muitos agentes as notícias falsas se tornaram uma epidemia que se proliferam através das redes sociais. As fake news podem, sem exagero, serem comparadas à disseminação de um vírus. O “contaminado” pela informação falsa não hesita em espalhar a notícia sem se dar o menor trabalho de verificar a veracidade da mesma. E não subestime a capacidade humana em acreditar em coisas estapafúrdias. Para se ter uma ideia em 2017 uma pesquisa feita pelo centro americano de inovação sobre laticínios concluiu que 7% dos americanos acreditam que o achocolatado vem exclusivamente de vacas marrons. Esse tipo de crença, assim como acreditar em coelho da páscoa, não traz tanto prejuízo. Porém algumas notícias que são propagadas podem trazer efeitos bem negativos para a sociedade. A criação de notícias falsas ou distorcidas são sempre direcionadas à um grupo específico visando alcançar um propósito. E para atingir esse objetivo o fato de ultrapassar as balizas da moralidade não parece ser um problema.

Podemos citar exemplos de notícias pouco prováveis de terem algum fundamento factível, que, à luz da razão, seria fácil perceber o embuste. Mas as fake news tem um lado bem mais refinado e ocorre quando a distorção dos fatos é algo tão sutil que é difícil distinguir uma mentira de uma verdade até pelos mais vigilantes. Os criadores desse tipo de conteúdo sabem disso e jogam com essa dificuldade a seu favor.

Não querendo adentrar nessa seara, apenas para exemplificar como criadores de conteúdo estão longe de se orientar pela moral e ética, nas eleições americanas de 2016 os jornalistas perceberam uma quantidade de histórias virais pró Trump que seguiam uma mesma linha. Resolveram investigar e chegaram à fonte das mesmas. Vinham da pequena cidade de Veles, na Macedônia, que ficou conhecida mundialmente como usina de fake news de tanto conteúdo fake que produziam. Em entrevista à BBC um dos produtores do tal conteúdo sobre Trump afirmou: “os americanos adoram nossas histórias e ganhamos dinheiro com elas. O que interessa se são verdade ou mentira? ”. Nesse exemplo souberam explorar a ignorância e o preconceito de grupos de eleitores, o que lhes rendeu muita audiência e, consequentemente, muito dinheiro também.

Criar notícias falsas compulsivamente parece não impedir os produtores de conteúdo de receber apoio cada vez maior dos seus seguidores, já que a verdade não é o ponto central da questão, mas sim a capacidade de inflamar o ânimo de quem defende ativamente uma causa, seja ela justa ou não à luz do bom senso. Assim como retrata a narrativa antiga sobre a verdade e a mentira que foram se banhar num poço, onde a mentira roubou as roupas da verdade deixando-a nua, as pessoas em geral estão muito mais interessadas em reforçar suas crenças e preconceitos do que em saber a verdade. É mais confortável ver a mentira vestida de verdade do que a verdade nua. Mas isso é reflexo da forma de pensar de determinados grupos e já foi objeto de estudo.

O pesquisador Michael Bronstein, do departamento de psicologia da universidade de Yale nos Estados Unidos, se debruçou sobre esse assunto para entender a causa determinante que levam pessoas a acreditarem em notícias falsas. A pesquisa de Michael explorou fatores cognitivos que contribuem para a formação e manutenção do que ele chama de “crenças incorretas e inflexíveis”. Ele percebeu que o perfil das pessoas que consomem notícias falsas possui um padrão de pensamento perigoso que está diretamente associado ao pensamento delirante, ao dogmatismo, ao fundamentalismo religioso e o pensamento analítico reduzido. Em resumo, consumidores de fake news tem, em sua maioria, a mente fechada, são delirantes e preguiçosos, preferem que outros pensem por eles e apenas ratificam. Nas palavras de Michael o “estilo cognitivo menos analítico desses indivíduos” é a explicação para esse comportamento. Ou seja, não adianta tentar esclarecer um indivíduo que o mesmo está emitindo conceitos e opiniões baseado em notícias falsas, é uma questão mais delicada, tem haver com a mudança de comportamento mental.

Isso nos leva a uma outra reflexão, o grande perigo de se viver em uma bolha social inflexível. Evitar o confronto de opiniões contrárias nos leva a crer que a razão está do nosso lado e confiamos cegamente que a nossa forma de ver o mundo se confirma ser uma verdade absoluta. Ou seja, nossa bolha social se torna cada vez mais impenetrável e, com o auxílio das redes sociais, isso é maximizado. Tendo em conta que no Brasil, por exemplo, há mais de 120 milhões de usuários do WhatsApp, esse ambiente se tornou fértil para propagar boatos, sendo fácil atingir as mais variadas finalidades. São milhões de pessoas a apenas uma mensagem de distância. Isso torna essa plataforma uma arma em potencial, onde organizações com interesses nem sempre lícitos propagam notícias em grupos fechados, geralmente descolados da realidade, sendo que na maioria são fake news.

O fato em si geralmente é o menos importante, já que a subjetividade cognitiva do intelecto humano pode dar forma e conteúdo distinto do que seja a “verdade”. Geralmente aquele que grita mais alto, aquele que tem mais curtidas, que faz mais barulho nas redes sociais é que está com a verdade. Por isso acredito que sempre é saudável o debate. Analisar o ponto de vista contrário ao seu leva à reflexão e amadurecimento sobre conceitos que temos. Mas até isso está se tornando difícil, já que os ânimos inflamados pelo idealismo cego impedem que indivíduos com ideias distintas discutam civilizadamente seus pontos divergentes. Sustentar uma ideia sem colocá-la a prova é muito fácil e essa é justamente a serventia do debate, um exercício filosófico.

O mito da caverna de Platão é atemporal e reflete com rigor a ilusão em que estamos inseridos nesse contexto. Dentro de nossas bolhas só vislumbramos sombras projetadas nas paredes do inconsciente coletivo e não oferecemos nenhuma resistência às correntes que nos aprisionam nessa escuridão.

Imersos em nossas opiniões e pré-conceitos acreditamos que as figuras sejam o reflexo da verdade no interior da caverna, sendo que não passam da imitação da realidade distorcida pela ótica do grupo. Libertar-se dessa caverna significa confrontar nossos costumes e forma de pensar. Para se emancipar dessa prisão é necessário procurar ver a luz diretamente com nossos olhos e não as sombras que produzem. Conseguir enxergar por si mesmo exige um esforço grande, mas irá certamente ampliar nossa percepção de mundo. Como afirmou Einstein “a mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original”.