A grande dor silenciada
A grande dor silenciada
“O que alguém não teria conseguido executar justo com essa força que é necessária para desatar os fortes e potentes laços da vida”. O poeta alemão Rainer Maria Rilke, indignado com um suicídio que presenciou, questiona-nos em uma de suas cartas o poder de quem retira a própria vida, o que para muitos soa como uma afronta, visto que a maioria das pessoas acredita que o autocídio é um ato de covardia. Porém, a potência que cada um traz em si é efêmera e isso deve ser entendido, exemplificando-se com mortes como a do ator Robin Williams, que, à época, desencadeou um aumento de 10% nas taxas de suicídio. Por que é tão difícil acreditar que alguém com seu bom humor, com o seu sucesso, com a alegria que transmitia em seus trabalhos, pudesse dar fim a sua vida?
Embora a depressão não seja a única responsável pelo suicídio, esta é uma doença catalisadora desse ato desesperador, mas redentor para quem a sofre; é o mal da solidão, é o ápice da incomunicabilidade, que considero, esta sim, o maior mal do século. São sentimentos que se reprimem e desencadeiam o sufoco existencial. Ademais, numa sociedade em que somos instruídos a nunca mostrar fraqueza, expressar nossos sentimentos soa piegas, sinônimo de debilidade. Não fomos educados ao sofrimento, não sabemos lidar com frustrações, e me parece que confessar isso é bem complexo, porque a autossuficiência tornou-se exacerbadamente uma virtude que o mundo nos obriga a adquiri-la. Descobrir o sentido na tristeza – eis o exercício mais difícil para a sociedade contemporânea.
Isso se evidencia nos números: a cada quarenta segundos, alguém comete suicídio. Mais de 1 milhão de pessoas retiram a própria vida, segundo a Organização Mundial de Saúde. E é importante salientar que discursos opressores e preconceituosos como “isso é falta de Deus”, “fulano foi fraco”, “ciclano era muito ocioso, desocupado, por isso sucumbiu” não ajudam e apenas reforçam estereótipos que contribuem para que as estatísticas aumentem.
A sociedade ainda não se atentou para o fato de que o cérebro é uma parte do corpo que precisa de cuidados constantes e que pedir ajuda a um psiquiatra não representa ser diagnosticado como “louco”. Tal qual cuidamos do coração, do fígado, dos pulmões, dos rins, precisamos cuidar de nossa mente. Ansiolíticos, estabilizadores de humor, entre outros remédios são fundamentais para regular a desordem na qual o cérebro pode se encontrar, por fatores internos e externos. Somos um aglomerado de fenômenos metabólicos, hormonais, com milhões de neurônios trabalhando a toda hora.
O suicídio é visto como um ato impulsivo e, muitas vezes o é, porém sabe-se que sua gênese pode ser o acúmulo de tensões e de pressões que o indivíduo (sobre)carregou ao longo de sua existência. Freud já atentava, em seus estudos psicanalíticos, a fala como instrumento de cura. Em contrapartida, o que temos feito é nos silenciado acerca dos dramas e das tramas de nossa vida. Robotizados, mecanizados pela indústria, pela sociedade do espetáculo, pelos cenários forjados das redes sociais, absorvemos as máscaras que a cultura da perfeição nos força a vestir. Um dia, vemo-nos perdidos nesse labirinto de possibilidades e, cansados, recorremos à “indesejada das gentes”, como denominou o poeta Manuel Bandeira.
É preciso falar sobre os problemas da mente, é necessário dar vazão à tristeza, quando mágoa demais se repreza, podem ocorrer inundações que afetarão todos ao redor. É imprescindível pôr à tona discussões sobre depressão, sobre o suicídio, pois negar o problema não o fará desaparecer. Como disse Andrew Solomon, na obra “Um crime da solidão – reflexões sobre o suicídio”, as pessoas que integram a experiência da depressão ao seu caráter são as que melhor lidam com ela. Ninguém escolhe a dor, mas podemos lutar contra o sofrimento. Quem já viveu uma depressão sabe o quanto de aridez há em seu terreno, mas, com o tempo, com paciência e uma força que beira o transcendental, pode retirar dessa seara a oportunidade de melhor se conhecer e aprender a lidar com seus limites. A tristeza, com toda a sua (ir)racionalidade, é o que há de mais humano. Precisamos proclamar o direito de sermos frágeis. Dessa forma, nossa fragilidade não será sinônimo de fraqueza e assim nos sentiremos mais fortes, prevalecendo a vida com seus múltiplos matizes.
(Texto publicado em A UNIÃO em 14/01/2022)