Nosso presente está lotado de passado

Essa frase foi cunhada por Lília Moritz Schwarcz no livro “Dicionário da Escravidão e Liberdade” de 2018. Essa afirmação aos poucos é percebida pela classe pobre, que não por acaso é formada por negros ou descendentes deles. Nessa publicação a autora discute a importância da palavra e das expressões na manutenção de uma sociedade racista. Em um artigo recente da BBC são apontadas expressões racistas que foram incorporadas no vocabulário brasileiro. Dessa forma, estas falas racistas são naturalizadas reforçando o racismo latente do brasileiro.

Não sem intenção o Grupo Escravidão em São João del-Rei e Vertentes foi pensado. Entendendo o Brasil germinado nesse contexto racista, São João del-Rei e a região das Vertentes não fugiriam a regra. Dessa forma estudando a escravidão como um fenômeno maior, decidimos estudar o racismo e a escravidão tendo como base o contexto nacional. Nesse contexto, nossa Democracia racial sempre esteve próxima de um 'apartheid' racial. Não buscaram entender e “trabalhar” a população na percepção como um todo. Sem que parte da população – a negra e indígena – fossem consideradas inferiores pelos brancos. Buscou-se por uma decisão de cima para baixo, jogar para debaixo do tapete séculos de situações mal resolvidas, determinando que fossem esquecidas. Não foi uma solução inteligente pois o racismo estava eivado na sociedade.

Quando da “Abolição da escravatura” as desigualdades sociais tornaram-se evidentes, a classe política precisou justificar a exploração escancarada das classes pobres, um Darwinismo racial – pseudociência - que embasou os discursos racistas desde então. Ora, se já não existisse esse pendor racista, a sociedade refutaria esse discurso. Partiram para a tentativa do ”branqueamento” da população. O que percebemos é que a escravidão não havia sido digerida e superada na “Lei Áurea”, buscou outra forma de justificar a exploração do negro. Aos negros foi negada a cidadania, mesmo pela República. Negros não podiam ser alfabetizados, terem propriedades e continuaram a ser mão de obra para trabalhos pesados ou domésticos. De forma concomitante, trouxeram imigrantes europeus para ‘tirar’ o defeito da cor com o claro intuito de “branquear” a população de grande parte negra, índios, mestiços das duas raças, além de descendentes de portugueses nascidos aqui. Atestando que o branco europeu seria uma raça superior, em detrimento dos outros povos.

Hoje assistimos o resultado, dessa 'pecha da impureza' na crescente desigualdade. No olhar desconfiado dos bairros de classes média e alta, que ao 'empurrar' as populações pobres para as margens da sociedade, relega a eles, um tratamento igual ao dispensado aos negros desde o início marginalizados. Bairros populares sem investimento em educação, em saúde, em infra-estrutura e segurança, são locais de 'batidas' policiais e com freqüentes vítimas de balas perdidas ou de exploração por milícias. Aqui, o policial pobre - muitas vezes negro - se vê como autoridade impondo aos iguais o autoritarismo e o racismo que sofre na instituição. Trata vizinho como suspeitos, bandidos ‘matáveis’ e, se esquece que só é mais uma peça nesse jogo que todos têm em si um alvo tatuado.

Mas nem sempre foi em silêncio, sem luta e sem grito de dor. Foram muitas as revoltas dos pobres e escravizados, apenas foram massacradas, apagadas da memória da população para que, empoderados, não tivessem escola. Desde a infância aprendemos pelo modelo. Que diferença faria ter aprendido na escola sobre O Dragão do Mar, Francisco José do Nascimento; João Cândido Felisberto – O Almirante negro; a Escritora - Carolina Maria de Jesus, Vitoriano Gonçalves Veloso – O conjurado negro? Sim, nós os negros podemos! Não estamos condenados à servidão desde o berço! Qual o interesse e no manter debaixo do jugo do branco, a não ser, manter o status quo e deixar rolar condições para manter, de forma velada a maldita escravidão! O capital e os que sempre decidiram tudo, estão satisfeitos – silentes e coniventes. Por isso o Grupo! Para que a reflexão e a discussão sobre Negritude e Branquitude sejam realizadas neste espaço onde a sociedade são-joanense se faz representadas. Aqui, temas políticos, de saúde, educacionais, financeiros, sociais etc. são discutidos e, de alguma forma, pensados. Tendo ciência da importância deste espaço, comecei a questionar se dentro do IHG havia essa percepção da desigualdade que campeava fora das paredes da instituição? Numa radiografia rápida, a não existência em seus quadros da representação popular e principalmente negra. Não podem negar que, esse é o fenótipo da maioria da população, como não é negra a maioria dos confrades? Estou enganada em afirmar que falamos de uma instituição comunitária? Está no portfólio do IHG algo sobre a cadeira de”Notório saber” através da qual o Sr. Geraldo José da Silva tornou-se Confrade. Algo revolucionário por ser o PRIMEIRO. Será que foi o único na região de “Notório saber”?

Um homem, pobre e negro foi reconhecido pelo IHG, sem nenhum demérito para a academia. Como um ambiente de saber, sabemos que o conhecimento se faz no somatório de diferentes saberes. Todos têm o que ensinar e todos nós podemos aprender! Antes de tudo o IHG é um órgão que deve irradiar afetividade dentre a diversidade e o conhecimento. Só assim podemos buscar na comunidade o compromisso de cuidado,do zelo e proteção do bem comum – nosso Patrimônio. Falando de patrimônio = memória, por que temos memórias de menor ou maior valor? Conta o peso do cofre do personagem em questão? Por que os heróis populares têm dois defeitos – a cor e a pobreza.

João Cândido Felisberto – O Almirante negro

Assim foi com João Cândido Felisberto, descendente de ex-escravizados, nascido em 24 de julho 1880, teve bem sucedida carreira militar na Marinha do Brasil. O primeiro personagem estudado pelo Grupo realizou um grande feito e conseguiu liderar uma revolta de marinheiros de nome de Revolta da Chibata. De posse de um poderio marítimo assombroso para época, mostrou sua perícia ao navegar na Baía da Guanabara nas grandes embarcações. Como comandante da revolta, agiu de forma respeitosa, porém firme nas negociações. O que foi negociado, foi cumprido, pelo menos de sua parte. No momento de maior impasse, apontou os canhões de um Encouraçado – o Minas Gerais – para a cidade do Rio de Janeiro, deixando a população atônita. As exigências eram de que os marujos recebessem alimentação digna como integrantes da Armada e que fossem abolidos os castigos físicos. A chibatada era a punição. Costume dos escravistas que compunham a maioria do oficialato. O impasse foi contornado, porém os revoltosos foram fortemente punidos com expulsão e prisão dos líderes. Como João Cândido era reconhecido como líder, sofreu atentado contra sua vida, tortura física e psicológica por parte da Marinha.

A Marinha, fez com que João Cândido não conseguisse mais outro emprego formal e por isso, ele foi forçado a sobreviver em subemprego. Já afastado da Marinha, apoiou o Integralismo, o que seria algo contrário às sua posição na época da Revolta da Chibata, e mais tarde foi a favor da Ditadura de 1964. Essa posição hoje é questionável devido ser perigoso se posicionar contra o governo naquela época poderia perder a vida. Morreu pobre em 06 de dezembro de 1969. A desumanidade a qual os marujos, em sua maioria negros, eram submetidos. A cor, apenas aumenta o peso da punição. E novamente questionando essa degradante prática, a hierarquia, não a vejo como uma ‘liga’ do grupo, mas a porta para a competição desleal, onde nem todos tiveram as mesmas oportunidades. Quando percebemos o contexto histórico de João Cândido, afirmamos se tratar de um dos heróis brasileiros, por realmente representar esse povo, temperado com muita dor, sangue, lágrimas e luta.

Francisco José do Nascimento – O Dragão do Mar

Mais um brasileiro para nos encher de orgulho. Nasceu filho de pescador e rendeira, neto de escravizados, em 15 de abril de 1839. E como muitos da classe pobre carregaram o nome da mãe na alcunha. Era o “Chico da Matilde”. Sua mãe criou os filhos sozinha e, por isso o menino Chico começou a trabalhar bem cedo. Estória similar a de muitos brasileiros. Nascem com o destino traçado, pouco ou nenhum estudo, mão de obra pouco qualificada, nunca terá autonomia financeira. Mas o Chico da Matilde desde cedo assistiu a escravidão dos iguais e se rebelou contra esse sistema injusto de subjugar o outro. Viu o choro de pais que, vendidos para outro lugar se separavam da família. Como prático do porto, transportava em sua jangada os escravizados da praia para a embarcação que os levaria ao seu destino. Junto de outros decidiu não fazer mais esse transporte. Foi a primeira Luz da Liberdade em terras brasileiras, isso em 1884. O movimento abolicionista cresceu a partir do Ceará. Chico como outros, cometeu erros ele apoiou os pendores ditatórias de Hermes da Fonseca. Morreu pobre e faz pouco tempo que seu túmulo foi descoberto em Fortaleza.

Busco nesse relato mostrar que heróis não nascem ‘bem nascidos’ e de capa. Heróis são pessoas comuns, insatisfeitos como o seu contexto e agem a partir do seu lugar. É uma lição e tanto para os que insistem em buscar “salvadores da pátria”. Negros sempre foi resistência contra a injustiça que sofriam. Por isso o Grupo. É preciso desmentir a tal “Democracia racial”, que nunca existiu. Muito menos a passividade do povo diante dos desmandos dos governantes. O IHG deve estar atento a esses movimentos populares. Alguém sempre ergue os punhos.

Carolina Maria de Jesus – Escritora

Fugindo um pouco da regra, falarei de Carolina, mesmo não tendo sido tema de estudo do Grupo, mesmo assim foram postados vídeos com a sua surpreendente história. O interesse é ser mulher, negra, mãe solo e pobre que se tornou uma referência com seu relato real de uma favelada e da vida sofrida de quem não tem nada nesse país. Nasceu pobre em 1914(?) em Sacramento, Minas Gerais. Foi favelada em São Paulo. Catou papel e lata para criar os três filhos e muita vez recorreu ao lixo para alimentá-los... no lixo pegava cadernos velhos onde escrevia. Em 1958 foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas que publicou seu diário de nome “Quarto de despejo”. Carolina tratava a favela como o quarto de despejo da cidade (casa grande) despejo=senzala, depósito de vidas descartáveis, as quais a existência é ignorada. Não existem políticas públicas para eles. Os invisíveis. Licença por que já escrevi sobre isso:

Invisível

Invisível é a dor do outro

Invisível é a fome, tão íntima

É a humilhação rotineira

O frio do escasso/inexistente cobertor

Eu lho concedi este poder

Não vislumbro sua dor

Sequer suspeito sua fome

Ele está aí, não estando

Afinal não é belo

Enxergar nossa

Decadência!

Sandra Corrêa Nunes

Preciso deixar claro que não se trata de “mi mi mi”! É vida real, com pessoas reais, com problemas reais. Não se trata do ‘dólar’ alto dificultar aquela viagem ao exterior. Essas pessoas reais, que andam de chinelo ou descalças são as mesmas que se revoltam. E se tornam heróis. Carolina tinha o 2º ano do Ensino Fundamental, contudo lia muito, aprendeu sozinha. Na situação dela – milhões de brasileiros que após a escravidão foram deixados a própria sorte, como se tivessem vindo para cá em um cruzeiro! Lembra do início do artigo que trata da manutenção da escravidão dos mesmos personagens negros? Não tem como fugir dessa responsabilidade social. Os brancos no poder criaram e mantém os miseráveis de hoje. Como o IHG participa mesmo de forma indireta de projetos sociais e pode se inteirar dos resultados destes projetos para a comunidade, pode cobrar dos responsáveis públicos. Nós estamos pagando por esse presente lotado de passado.

Vitoriano Gonçalves Veloso – O Conjurado negro

Nosso herói dessa vez nem rosto tem. Como mensageiro de confiança dos Conjurados, devia fazer do sigilo seu meio de ação. Foi tão bom em seu segredo que ainda hoje pouco sabemos dele. O que se sabe era que era ‘pardo’ devido sua descendência de escravizada e branco. Foi alfaiate e alferes. Condenado ao degredo em Moçambique na África. Além da cor da pele sabidamente associada ao mal, era pobre e não há noticia de descendentes. Existiu o apagamento histórico para que a negritude não fosse associada a esse fato importante - a “Conjuração mineira”. Esse comportamento é injusto por que impede as gerações futuras de se espelhar em comportamentos revolucionários. Tudo que subverte o status quo, é combatido de forma violenta para que não seja imitado. A falta da imagem tem propiciado a construção de uma imagem genérica, como um ‘retrato falado’ tão comum nos meios policiais. Existe no Museu da Inconfidência um túmulo com os despojos dos conjurados, por que não a realização de um estudo para que essa imagem fosse conhecida? Má vontade talvez? Para que não ficasse sem a imagem nesse artigo, busquei uma imagem conhecida e marcante do IHG. O Sr. Geraldo José da Silva,confrade, falecido em maio deste ano de 2021. Marcante por ser negro e pobre, não era acadêmico, mas reconhecido pelo IHG pelo “Notório saber”. Parece pouco em um ambiente onde o saber formal é cultuado. Que nunca esqueçamos que o saber se constrói de várias formas entre elas pela disposição de aprender.

Seguimos vivendo nosso presente repleto de passado. Repetindo os mesmos erros e condenando o nosso futuro, pelo simples fato de não aprendermos com o passado. A negritude está aí no nosso viver, no nosso vestir, no nosso comer, no nosso fazer, no nosso ser. Não neguemos nossa identidade!

Sandra Corrêa Nunes, 18 de dezembro de 2021

Referências:

10 expressões racistas

https://www.bbc.com/portuguese/geral-59366676?fbclid=IwAR3rcLrdMzyzajC5eFbmvbWIpbbsZG42WQtj5EiPhIFMVectjSECFUww98s

Biografia – João Cândido – Lília Schwarcz disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ysmS9QnMLi4&t=11s> acessado em 09/09/2021.

Caminhos da reportagem – Carolina Maria de Jesus disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=6AvUP-IoYEo&t=310s acessado em 18/12/2021.

Entrevista de João Cândido, 1968 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y3lfcd9B0mE acessado dia 10/09/2021.

GOMES, Carla; Guimarães, Maria Lúcia Monteiro (organizadoras). Estórias por trás da história são-joanense / Carla Gomes, Maria Lúcia Monteiro Guimarães. São João del-rei, MG: Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, 2020.

João Cândido, o Almirante Negro, um Herói Nacional!

Luiz Gustavo dos Santos Chrispino - Professor de História, Jornalista disponível em <https://www.palmares.gov.br/?p=56586> acessado 08/09/2021.

João Cândido, o Almirante Negro da Revolta da Chibata

disponível em: < https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-almirante-joao-candido-revolta-chibata.phtml> acessado em 09/09/2021.

Luta das mulheres brancas na luta antirracista Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LKHMTvvdM9g> acessado em 07/09/2021.

Ossadas de Inconfidentes são identificadas

disponível em: <https://www.museus.gov.br/ossadas-de-inconfidentes-sao-identificadas/> Acessado em 11/12/2021.

Perfil – Dragão do Mar e a história da Abolição no Ceará

Disponível m:< https://www.youtube.com/watch?v=Pju_WvYfhp8&t=1s> acessado em :10/08/2012.

SACRAMENTO, José A. de Ávila. Algumas considerações sobre o conjurado

VITORIANO GONÇALVES VELOSO. disponível em: WWW.patriamineira.com.br acessado em: 23/08/2021.

SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil-1870-1930 -São Paulo: Companhia Das Letras, 1993.

SCHWARCZ, L. M., GOMES, F. Dicionário Da Escravidão e Liberdade. Ed. Companhia Das Letras, 2018.