PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO…

Texto escrito por Raul Brasil e submetido como atividade avaliativa para a cadeira de Mídia, Tecnologia e Processos de Subjetivação do Curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UPE)

PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO…

É isto o que é o Eu na contemporaneidade: produção de produção. No capitalismo, o processo social que define a produção de subjetividade descende dos modos de produção industriais. E isso acontece de tal modo e de uma maneira tão circular e circunscrita que se torna reprodução. A reprodução dos objetos determina a reprodução do Eu. O Eu se torna mercadoria que consome mercadoria: mercadoria de mercadoria, produção de produção: reprodução.

Assim como produzimos celulares em massa, produzimos subjetividades em massa, os seres-humanos vêm de uma mesma série de produção, de uma mesma fábrica, são essencialmente as mesmíssimas pessoas, fazendo as mesmíssimas coisas, consumindo os mesmíssimos conteúdos, partilhando dos mesmíssimos horizontes.

“Mas há a heterogeneidade”, vão dizer, “os indivíduos possuem sim suas individualidades”. A verdade é que a própria heterogeneidade faz parte da indústria. Existe uma indústria do heterogêneo, do alternativo, do diferente, do dissonante, até isso se torna produto, até mesmo as linhas de fuga são capturadas.

No capitalismo, linhas de fuga se tornam linhas de fungi, não são o que escapa, não são que distoa, não são o que se diferencia, passam a ter um poder de reprodução que nenhuma outra espécie animal têm, crescem em qualquer lugar e consomem qualquer coisa. O que foge logo é capturado e logo é capitalizado.

Em 24 de outubro deste ano, por volta das 13:44, Rogério Skylab publicou em seu facebook um texto que me parece ilustrar muito bem essa questão. Tratava-se de uma crítica à indústria musical e um elogio aos artistas que ele chamou de “malditos”, que produziam arte no território fronteiriço da indústria, transitavam entre o dentro e o fora, conseguiam estabelecer essa linha maleável, esse ponto de inflexão, uma zona autônoma temporária. No entanto, segundo Skylab, a indústria adquiriu uma nova configuração, uma nova roupagem, e se a indústria muda, muda a configuração da crítica, muda a configuração do ser.

Um indivíduo fez um comentário que achei pertinente. Daniel Rafael Nogueiro respondeu à postagem da seguinte maneira:

Fugir da Indústria é pertencer a um nicho específico que a indústria também se faz presente (underground,alternativo, cult)

A indústria é a agua, inunda tudo.Não tem como permanecer seco "full time" e isso não é um defeito.Talvez seja base para a descoberta um linguagem mais impetuosa e voraz [...]

Me encanta a maneira com a qual Rafael escreveu “Indústria”, com I maiúsculo, e o emprego desta palavra parece ser consonante a o que Rafael disse logo em seguida: “A indústria é a água, inunda tudo”. É exatamente isso o que estou falando. A indústria é um território subjetivo e lá estabelece suas máquinas, as máquinas território-industriais sujeitam as máquinas desejantes individuais, a produção industrial se torna produção de sentido existencial, o desejo é capturado, coagido e controlado. E quando o desejo consegue escapar, consegue criar essa linha marginal, quando o desejo consegue se produzir “à margem” e criar um novo território, uma nova zona autônoma, uma desterritorialização, então o território industrial se expande e captura o novo território criado pelo desejo. O que antes era diferença agora é repetição, reprodução. O que antes era heterogêneo agora é mais um nicho determinado pela indústria: o alternativo, o underground, o indie, o gótico, o grunge, o cult, o rebelde… todos esses eram termos de contra-culturas, de linhas de fuga, de tribos sociais anti-capitalistas que agora fazem parte do território industrial, que agora ganharam um rosto definido, tomaram forma, tornaram-se produto. Aquilo o que escapa, aquilo o que discorda do capitalismo logo é capturado e capitalizado. Linhas de fuga se tornam linhas de fungi.

E Skylab responde a Rafael:

[...] Em relação à indústria cultural, aí sim, todos estão envolvidos. Seria muita ingenuidade de minha parte considerar a possibilidade de estar à parte da indústria cultural.

E de fato, é muita ingenuidade da nossa parte considerar a possibilidade de estarmos à parte da indústria cultural. E inclusive, considero de uma conveniência incontestável esse conceito apresentado por Adorno e Horkheimer em sua “Dialética do Esclarecimento”. É importante lembrar, como afirmam esses autores, que a indústria cultural sequestra o nosso esquematismo transcendental, palavra que designa um conceito kantiano ligado a produção de sentido na relação estética com os objetos. A indústria cultural não nos oferece apenas produto, nos oferece seu significado. Ela nos oferece o produto, e o que ele é, e a maneira de consumí-lo e como integrá-lo em nossas vidas, ela nos oferece qual produto combina melhor “conosco”, qual o produto certo. Os produtos culturais são logo produtos subjetivantes, a intenção da indústria cultural é produzir regimes de sentido, padrões de vida, formas de ser, comportamentos sociais.

E todo esse maquinário industrial reprodutivista atinge sua máxima potência com o advento da internet. O território industrial se torna onipresente, se torna multiterritorial, a indústria se torna ciber-indústria. Se era água, como afirmou o Daniel Rafael ele é agora gás, e carrega em sua vaporização os esporos das linhas de produção e reprodução.

Talvez seja essa a palavra chave da internet enquanto ciber-indústria: reprodução. É preciso reproduzir os padrões culturais da indústria em larga escala, é preciso postar todo dia, é preciso consumir todo dia, é preciso se expôr a todo momento. Reproduzir a si mesmo em uma performance definida e delimitada, reproduzir o Eu em série, mostrar o rosto para todos, em todo lugar, a todo momento. Seu corte de cabelo, seu novo animal de estimação, seu novo namorado, ou namorada ou namorade. A internet é o palco da performance do Eu construído industrialmente, é o show do Eu.

E essa característica intrínseca produz a faceta mais perceptível do indivíduo pós-moderno: seu narcisismo, seu hedonismo, seus excessos. A internet produz o Eu e reproduz o Eu. Ela é produção de produção de produção incessante, e se torna sintomática-axiomática: ser “Eu” só ganha sentido online, só ganha sentido no palco, sendo assistido, é preciso ser reafirmado, ser reforçado positivamente. A internet produz o Eu e reproduz o Eu, pouco a pouco a internet se torna o Eu. E a realidade se torna a internet, logo, a realidade se torna o Eu, e o sentido real da existência se torna a reprodução incessante do Eu.

Reprodução essa, que é absurda e sem sentido e que decai em um esvaziamento inevitável, pois esse Eu é um rosto imposto, é uma mercadoria que se confunde com o indivíduo, essa alienação da mercadoria de si produz uma subjetividade em crise, que embora demonstre o contrário, não sabe de fato o que é, o que quer, como quer e quando quer, só sabe que deve ser, e que deve ser em massa, a todo momento, a todo instante: produção de produção de produção de produção...

REFERÊNCIAS

BADUY, Renato Staevie; CARVALHO, Paulo Roberto de. NARCISISMO E MÍDIA: UMA ANÁLISE PSICOSSOCIAL. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/sepech/arqtxt/ARTIGOSANAIS_SEPECH/paulorcarvalho2.pdf>.

FILOSOFIA VERMELHA. A indústria cultural em Adorno e Horkheimer. Glauber Ataíde, 12 abr 2021. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/2AVuAy5PpDd8KopvIbcfIZ?si=hvXnJq3SRj27pWtxK-paFA>.

ROGÉRIO SKYLAB. Postagem em sua página no Facebook, 24 out 2021. Disponível em: <https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=423908329103768&id=100044538125183>.