Ensaio Sobre o Enclausuramento na Sociedade Pandêmica Digital

Texto sintético escrito para a cadeira de Mídia, Tecnologia e Processos de Subjetivação do curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UPE) por Raul Brasil

Farmacopornografia é o termo que Preciado (2020) utiliza em seu texto “aprendendo com o vírus”, onde ele analisa arqueologicamente as dinâmicas do poder presentes nas pandemias no decorrer da história a fim de encontrar ferramentas para a análise do momento pandêmico contemporâneo.

Farmacopornografia é a biopolítica da população na época da modernidade líquida: o poder, outrora solidificado nas instituições clássicas: a escola, a família, o quartel, o hospício entra em ebulição e evapora. Ele se dissipa a fim de se proliferar, de penetrar nas brechas. Ele leva consigo os esporos fungiformes do axioma capitalístico e o faz crescer em cada buraco, em cada parte dos corpos o sujeito do controle.

Na sociedade de controle farmacopornográfica a institucionalização da vida não tem mais endereço. E com isso não quero dizer que ela está em toda parte, pelo contrário: não está em lugar nenhum. Torna-se tão efetivamente difundida que os seus processos de codificação são imperceptíveis. Os processos de codificação da biopolítica encontram um ponto de convergência com os processos de codificação dos aparelhos digitais: o corpo.

Há uma transição de uma forma de poder a outra: a sociedade disciplinar se transforma em sociedade de controle. A disciplina não é mais o fim do poder, é o seu início, corpos comportados são a norma. A disciplina atinge sua máxima potência e se torna controle. Não bastando controlar aquilo o que o corpo é, o capitalismo consegue controlar aquilo o que ele pode vir-a-ser.

O desejo (isso é: a forma motriz da transformação e da resistência dos corpos aos processos de subjetivação) flui pelas brechas, no entanto, seu fluxo é capturado pelas novas tecnologias digitais, a estatística probabilística calcula o movimento dos fluxos desejantes e, conseguindo saber para onde vão, sabe como desviá-los. O poder não atua mais sobre os corpos, como atuava na sociedade disciplinar, agora o poder atua dentro dos corpos, em seu antro mais íntimo, o poder controla o corpo, o desejo, a subjetividade, o ser. Ele não tem mais um lugar para acontecer, ele simplesmente acontece, o endereço do poder é o endereço da sua casa, o limite do poder são os seus: o poder tem seus dados, seu nome, seu cpf, seu histórico de compras, o id do seu computador, ele sabe suas pesquisas do google, com quem você conversa e com quem não gosta de conversar. O Ser se torna assim um Ser-Digital, a extensão da sua vida se dá inseparavelmente pela tecnologia, ele entra numa simbiose indissolúvel de tal forma que as máquinas desejantes se sujeitam às máquinas técnicas.

No contexto pandêmico, o enclausuramento não é somente uma forma de combate ao vírus, é uma tecnologia política. Na pandemia o isolamento social não foi somente necessário como foi conveniente, ele potencializou ainda mais os processos de subjetivação farmacopornográficos da sociedade. Agora não existe mais uma distância reconhecível entre o lazer e o trabalho, a casa se torna o novo centro de produção do trabalhador, a sua nova instituição. O mundo ocorre ali.

O sujeito já era enclausurado anteriormente, a medida em que sua face se aproxima do seu smartphone se distancia da realidade, e o controle do desejo e da subjetivação se dá por esse distanciamento. Agora já não existe distância entre o homem e a máquina, o Estado se torna telerepública, como afirma Preciado:

"Já não se trata apenas de que a casa seja o local de clausura do corpo, como era na gestão da peste. O endereço próprio se torna agora o centro da economia do teleconsumo e da teleprodução. O espaço doméstico existe agora como um ponto em um espaço cibervigiado, um local identificável em um mapa do Google, uma caixa reconhecível por um drone."

Na contemporaneidade, toda tecnologia é uma tecnologia política. O Estado se torna Estatística em seu sentido mais etimológico: a coleta e a apresentação de dados quantitativos de interesse político.

O indivíduo se torna um número reconhecido, calculável, previsível, controlável, de fácil logaritmização. Isso, a fim de dois objetivos principais: produção e manutenção. O indivíduo controlado, que não conhece a distância entre o lazer e o trabalho se torna hiper-produtivo, um empreendedor de si, responsável pelo seu sucesso ou fracasso, ele precisa vencer, correr atrás, “batalhar”. Lógica que atende o prognóstico de Marx sobre a sociedade capitalista, quando ele fala que sua tendência é chegar a níveis de exploração do trabalho cada vez maiores: A produção se torna sintomática-axiomática, atinge um nível subjetivo. Não à toa, o sujeito pós-moderno é o sujeito mais produtivo de todos os tempos. Isso gera algo: capital, não para o sujeito produtivo, claro, mas para o capitalista. O capital é principal força de manutenção socioeconômica, é a moeda do poder, quanto mais hiper-produtivo é o trabalhador, mais poder ele dá ao capitalista, e assim, mais solidifica-se a ideologia burguesa capitalista e os processos de subjetivação e exploração.

REFERÊNCIAS:

GIMENES, L.F.S.; HUR, D.U. Sociedade analógica e sociedade digital: suas codificações e regimes de poder. R. Tecnol. Soc., Curitiba, v. 16, n. 42, p. 227-242. jul/set. 2020. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/11357

PRECIADO, Paul. Aprendendo do vírus. Disponível em: https://pospsi.com.br/wp-content/uploads/2020/09/TEXTOS_7-Paul-B.-Preciado.pdf

RAZÃO INADEQUADA. Sociedade disciplinar. Disponível em https://razaoinadequada.com/2017/05/24/foucault-sociedade-disciplinar/#:~:text=Foucault%20cria%20a%20ideia%20de,para%20impotentes%20do%20que%20modernas.

RAZÃO INADEQUADA. Sociedade do controle https://razaoinadequada.com/2017/06/11/deleuze-sociedade-de-controle/

RAZÃO INADEQUADA. Sociedade do cansaço. Disponível em https://razaoinadequada.com/2017/06/25/byung-chul-han-sociedade-do-cansaco/