Livres nós já não estamos
Livres nós já não estamos
Livres nós já não estamos, se é que um dia fomos. Dentre essas e outras notícias, Byung-Chul Han, filósofo coreano, nos traz na obra “Sociedade paliativa”. Em tempos nos quais a dor é vista como sinal de fraqueza, devemos nos manter sempre em alta performance, haja vista os discursos múltiplos em que a produtividade é a palavra da vez. As comparações se estabelecem indo desde as horas de trabalho até quantos quilômetros consegue-se percorrer a pé diariamente. Tenho que ser o mais bonito, mais atlético, o mais estudioso e trabalhador possível para ter meu valor, talvez, assegurado. Na sociedade neoliberal, tornamo-nos o empreendedor de nós mesmos e nos escravizamos também... Como medir o efeito disso? Por “likes”, curtidas que alimentam o nosso narciso?
É... é assim que a nossa cultura da curtição vai se rendendo ao apagamento da dor para se manter num âmbito em que o prazer, o hedonismo é a ordem, alimentando uma sociedade pré-ocupada apenas com o próprio bem-estar, originando o mal-estar, preconizado por Freud. Hoje até se fala em positividade tóxica. Pensávamos que chegaríamos a tanto? O “seja feliz” é um imperativo doentio, tanto que se manifesta em doenças como depressão, burnout, transtornos de ansiedade, síndrome do pânico. Eis uma forma de dominação, pois a revolta passa a ser contra o indivíduo que não teve a sabedoria e/ou o mérito de obter a felicidade. A sociedade contra a pessoa. O culpado é o sistema? Não mais!
Como diz Han, o sujeito passa a explorar a si mesmo “crente de que, desse modo, ele se concretiza. A liberdade não é reprimida, mas explorada. Seja livre produz uma coação que é mais dominante do que seja obediente.” Como efeito, nos despolitizamos, enfraquecemos a democracia e formamos uma individuocracia, como agora denomino. A sociedade se idiotiza por acreditar que poderá ser “bem-sucedida” ao se desprezar a coletividade. E ouvimos aos quatro-ventos “primeiro eu, depois eu...”. Frase de tamanho efeito que já se fundiu ao eco. A felicidade foi privatizada. E nós estamos sendo privados dela, jogando-a na privada. Desculpem-me, mas não resisti ao trocadilho.
Estamos anestesiados. A profilaxia contra a revolução é o discurso meritocrático. Somos “eu e minhas circunstâncias” e o resto que se dane. O “resto” é a nossa apatia diante do caos social. A felicidade compulsória se retorce dentro de nós de tal modo que a expulsamos por não nos considerarmos dignos dela. Ela vem nas homeopáticas doses de amor, um olhar mais demorado, em uma voz mais suave, no gesto. E indigesta se torna num contraditório movimento de que, se ela é agora, esse agora talvez tenha vindo cedo demais e, então, tardamos de encontrá-la até que ela nunca chegue.
É o tortuoso gozo porque não vem sem a dor, embora desejemos. Em meio a tantos discursos, desaprendemos a narrar, a figura do narrador se confunde na polifonia e assim as múltiplas vozes formam apenas ruídos, impedindo de nos encontrarmos – uns aos outros e a nós mesmos. Se o poeta faz da dor uma canção, precisamos aprender com ele essa magia. Não como mero subterfúgio, mas como estratégia do viver mais do que o sobreviver. A sobrevida não pode ser a pauta do nosso cotidiano. No máximo, o pano de fundo de alguns cenários que inevitáveis são/serão.
Se ainda escrevo, é pelo exercício de combate à dormência minha e da sociedade. Carregar essa armadura o tempo todo é muito doído. Ela não pode ser maior que nós mesmos. A venda que cobre os nossos olhos precisa ser retirada para enxergarmos as nossas patologias sociais. Naturalizaram a miséria, a indiferença. A bolha digital invadiu a realidade, maquiando as mazelas (i)morais. Onde está a nossa amizade desinteressada? Onde está o desprendimento em fazer algo sem propósito e onde está a lucidez para se ter um propósito?
Estamos nos escravizando, não mais nos moldes como vistos ainda – infelizmente – em alguns lugares desta Terra, mas por não nos darmos dignidade em relações profissionais e afetivas. Do domínio dos corpos para o avanço sobre a subjetividade. A gamificação não se encerra com os videogames; estende-se ao outro como se marionetes fossem. Quando não mais servem, são descartadas, não importando seus compromissos. Talvez melhoremos se um dia entendermos que a dignidade não deve ser apenas individual, mas social. E talvez essa decência dada uns aos outros nos traga um pouco mais da tão almejada felicidade, redimindo-a da clandestinidade.
(Texto publicado no jornal "A União" em 22/10/2021)