O USO DA RAIVA POR MULHERES NEGRAS A PARTIR DE AUDRE LORDE
O ponto de partida para as reflexões que aqui estão sendo expostas, foi o capítulo “O uso da raiva: as mulheres reagem ao racismo” do livro “Irmã Outsider” (2019) da grande intelectual negra estadunidense Audre Lorde.
O texto acima referenciado diz respeito a como o racismo gera raiva em quem o sofre quotidianamente, como a raiva de mulheres negras é recepcionada pela sociedade, como os estereótipos a mulheres negras são construídos pela deslegitimação e rejeição de sua raiva e como o uso da raiva é uma ferramenta estratégica de combate ao racismo, as injustiças, as opressões e a desigualdade.
A autora, num tom pessoal que reflete a realidade das mulheres negras, afirma que: “As mulheres reagem ao racismo. Minha reação ao racismo é a raiva. Tenho vivido com essa raiva, ignorando-a, alimentando-me dela, aprendendo a usá-las [...]” (LORDE, 2019. p 155) É importante ressaltar que as mulheres negras convivem com a raiva desde que chegam a idade de senti-la, na mais tenra idade. A raiva acompanha mulheres negras por toda sua vida, pois o racismo está sempre presenta nas relações sociais das sociedades, tal qual como no Brasil, que é estruturado pelo racismo colonial, velado, institucional, religioso, jurídico, ambiental etc. No entanto, as mulheres negras não se calam diante da dureza que é a experiência de ser negro em sociedades racistas, pelo contrário elas reagem a partir das ferramentas disponíveis, nesse caso a raiva, contra o racismo e suas mazelas sociais.
É preciso que se compreenda que esta raiva não é no sentido de inverter as situações e fazer sofrer a experiência do racismo aqueles privilegiados. A luta não é para que o povo oprimido se torno o povo opressor. O uso da raiva acumulada das mulheres negras não é para ferir ou matar ninguém, mas sim para combater as injustiças e desigualdades étnico-raciais. Nesse sentido, Audre Lorde (2019) escreve:
Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode
ser muito útil contra as opressões, pessoais e institucionais, que
são a origem dessa raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar
uma poderosa fonte de energia a serviço do progresso e da
mudança. [..] Estou falando de uma alteração radical na base dos
pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas.
(LORDE, 2019. p 159)
Lorde (2019) coloca que a raiva das mulheres negras é também uma forma de ativismo e de transformação social, porque a raiva coloca as mulheres negras numa posição de indignação, insubordinação e subversão frente as estruturas racistas da sociedade, o que ocasiona potentes movimentos de luta e resistência. No entanto, sabemos bem que a sociedade recepciona com desdém a raiva das mulheres negras, alcunhando seus sentimentos, expostos como luta, a mal comportamento, a loucura, a baixaria, a mágoa, a violência, ao rancor. Faz parte da tradição histórica das bases racistas entender a mulher negra como barraqueira, bagunceira, louca, estressada. Nesse sentido, aqueles/as que ainda estão ligados as estruturas racistas da sociedade, tendem a rejeitar a raiva das mulheres negras. Não é atoa que sempre que uma mulher negra se coloca de forma mais assertiva numa discussão, logo pedem para ela se acalmar, baixar o tom da voz, como se se quisesse dizê-la para que fique “no seu lugar”. Sobre isso, escreve Audre (2019) denunciando que a raiva a ser rejeitada não é a das mulheres negras:
Não é a raiva das mulheres negras que goteja sobre este planeta
como um líquido doentio. Não é a minha raiva que lança foguetes,
que gasta cerca de sessenta milhões de dólares por segundo em
mísseis e e outros agentes da guerra e da morte, assassina
crianças nas cidades, armazena grandes quantidades de gases
tóxicos e armas químicas, sodomiza nossas filhas e nossas terras.
(LORDE, 2019. p 167)
Quando Audre (2019) afirma que “A raiva é um sentimento causado pelas distorções entre semelhantes, e a sua finalidade é a mudança” (LORDE, 2019. p 161), entendemos que o fato é que as mulheres negras reagem ao racismo e a raiva, que está acumulada pois é ancestral, é um importante instrumento no combate a reprodução e manutenção da branquitude, na perspectiva da mudança real das estruturas racistas das sociedades.