Comunismo e cristianismo
Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo) é autor de uma frase lapidar: “... todo verdadeiro comunista é um cristão, embora não o saiba, e todo verdadeiro cristão é um comunista, embora não o queira.” (Frei Betto no livro Aquário Negro, Editora Agir, 2009). Lembremo-nos, Frei Betto é um frade dominicano, um dos expoentes da Teologia da Libertação, premiado escritor de mais de uma centena de obras (ganhou, entre muitos outros prêmios, o Jabuti em 1982 e o Juca Pato em 1985 pela obra Batismo de Sangue, e de novo o Jabuti em 1985 pela obra Típicos Tipos – Perfis Literários). Por quais motivos o conceituado frei equipara comunistas e cristãos?
O comunismo verdadeiro, tal como formulado no século XIX por Marx e Engels, é o sistema socioeconômico baseado na distribuição equitativa das riquezas, o que seria garantido pela forte presença do Estado, que refrearia os onipresentes impulsos de ganhos vantajosos, ilícitos e privilegiados, inerentes à natureza humana. Sim, o comunismo é um sonho, talvez nunca alcançado de fato, nem em experiências efêmeras e localizadas. O Estado regulador é constituído por pessoas, e amiúde a cupidez das pessoas contamina e degenera o Estado. Por isso uma das formas de desqualificar o comunismo seja considerá-lo uma utopia, uma quimera inalcançável, delírio de sonhadores. Os detratores escondem que o primeiro passo para a transformação é sonhá-la.
E cristianismo? Cristo veio ensinar o despojamento, o amor, a solidariedade, a devoção a um Pai protetor e amoroso, que perdoa e ensina a praticar o bem, a fazer ao próximo aquilo que gostaríamos que fizessem a nós mesmos. Poucos seguiram, na época, os ensinamentos do Cristo. A multidão, com o beneplácito das autoridades, crucificou-o, com requintes de crueldade. Embora atualmente, dois mil anos depois, as religiões ditas cristãs reúnam o maior numero de fiéis no mundo, a cristandade ainda está muito longe dos ideais pregados por seu messias. Ao longo da História tem-se caluniado, queimado, crucificado, assassinado muitos verdadeiros cristãos, e tem-se santificado tiranos que usam a igreja para conquistar poder, glória e fortuna.
Há diferenças entre o comunismo e o cristianismo: hoje, o comunismo é largamente demonizado, o cristianismo continua sendo um ideal, almejado mas distante. A demonização do comunismo tem sua pérfida lógica: ele é incompatível com a exploração do homem pelo homem, com a concentração de riquezas e de privilégios, que são os alicerces que sustentam o sistema socioeconômico que vivemos, que endeusa o lucro. A elite rica ─ os privilegiados beneficiários do esbulho ─ usa todos os recursos ao seu alcance, incluindo a desinformação, a ignorância, o logro, a intimidação, o medo, o suborno, as falsas promessas, o aliciamento, para convencer a grande massa que só os aptos e meritosos vencem, e que o populacho explorado o é por incompetência, preguiça ou punição divina. A equidade do comunismo é um perigo capital para os privilegiados, por isso ele é tão difamado e combatido desde que foi formalizado.
E o cristianismo? Talvez entre os ditos cristãos, poucos o sejam verdadeiramente. Cristo condenou com veemência os vendilhões, mas as igrejas transformaram-se em instituições mercadoras de indulgências, acumuladoras de riqueza e poder. Deturparam os ideais cristãos e imiscuem-se no comércio e na política, respaldam até regimes facínoras, como foi com o nazismo; em nome de combater a expansão de um suposto regime ateu, o comunismo. Mas fiquemos alertas: o comunismo ateu é outro embuste dos que tentam difamá-lo. O comunismo não é ateu; ele condena o Estado confessional (não laico) e o uso que se faz da igreja e da fé para manter o trabalhador submisso dentro do arranjo de espoliação do trabalho. Religião, algo inerente ao ser humano, não é a mesma coisa que igreja: a religião agrega, liberta, transcende; a igreja desagrega, explora e oprime. O pensamento comunista teve a coragem de questionar o uso que a igreja faz da religião.
Mas talvez o que o comunismo e o cristianismo tenham de maior semelhança é que os dois estão hoje com seus significados degenerados: não sabemos mais o que seja o verdadeiro comunismo, nem o verdadeiro cristianismo. Esse é o sentido da frase de Frei Betto. Se acordássemos para entender o significado real das duas palavras, enxergaríamos que ambas nos apontam para o mesmo ideal de convívio solidário e amoroso. O oposto do mundo amesquinhado, segregacionista e beligerante que vivemos hoje.