Tic-tac, Tik Tok

Tic-tac, Tik Tok

O subjetivo tem sufocado a realidade concreta e perceptível. Os sentidos não bastam. O que vemos não parece suficiente; e o convencimento é, por vezes, imposto, apesar de todas as contradições. O persuadir também foi engolido pelo subjugar. O que nos sentimos, independente do que somos, tem se tornado o mais importante.

Sentimos o tempo – angustiante, quando parece não correr, e curto demais, quando estamos fazendo amor, por exemplo. A monotonia estressante de permanecer alguns minutos escutando o tic-tac dos relógios que ainda fazem tic-tac, onomatopeia que talvez nossos descendentes encontrem a sonoridade apenas em museus, passa longe do blem blem dos sinos que tilintam nos cortejos, em cadenciados repiques, ao chegarem às catedrais. Nesse sentido, a monotonia de infâncias pueris talvez evitasse gritos retumbantes de pais que choram perdas prematuras.

O dedutivo e o racional defendido por Descartes, em cuja analogia se pressupôs a possibilidade de se compreender e ‘consertar’ o homem, enquanto máquina (nos moldes de um relógio que à época já fazia tic-tac), colide com o pensamento holístico de Fritjof Capra. O que nos preocupa é que não entendemos nem as partes nem o todo, mas nos angustiam as verdades que criamos e nos levam a ferir uns aos outros. Pastilhas Tic Tac dão hálitos refrescantes com a fluidez de um instante, rápida e facilmente. Mastigamos Tic Tac, enquanto esbravejamos palavras podres, que saem de lábios ‘mentalizados’ – hálito puro em bocas que salivam excrescências.

Tic-tac, Tik Tok, tic-tac... A carcaça não importa – quando convém não impactar, claro!

O que temos que validar, diariamente, sob pena de infringirmos normas, é o desejo, repito, subjetivo do outro. Entretanto, o que nos move são as aparências, as percepções que temos. São as mulheres bonitas que atraem milhares de seguidores. São perfis engraçados que, de igual modo, ‘bombam’ das redes sociais. São as tragédias que merecem compartilhamentos. Beldades, perfis pitorescos e tragédias se valem da relativização estética. Curvas atraem cliques. O tosco se impõe pelo ridículo, mas é admirado, arrasta uma horda de simpatizantes. A carne, a destruição e a maldade prescindem de propaganda, divulgando-se pelo que trazem dentro de si mesmas: superficialidade, histrionismo e caos.

Perceber o que fora de nós está, surge cá bem dentro, no cerne daquele que observa e não no transe de quem deseja ser percebido da forma como anseia. Portanto, somos seduzidos por percepções extracorpóreas que nos fazem transitar entre sonhos, desejos e espanto, ao mesmo tempo em que somos constrangidos e forçados a admitir realidades que nos agridem.

O tempo muda valores e comportamentos. Crianças que outrora brincavam nas ruas, sem qualquer preocupação com o tic-tac, estão presas, agressivas, ansiosas e reféns do Tik tok. As cantigas, as revistinhas infantis, as historinhas contadas pelos avós deram lugar a quartos fechados e inacessíveis, cheios de dancinhas e de brincadeiras perigosas que, às vezes, são percebidas tarde demais. A ingenuidade foi substituída pelo ódio, pelo ‘cancelamento’; o cyber-bullying tem ameaçado e ceifado vidas de jovens que não suportam a rejeição, que não foram forjados para a existência de críticas e que não se admitem imperfeitos, diante de fotos irretocáveis que criam nas telas dos aplicativos.

Não perdemos nossas crianças apenas quando crescem e voam com as próprias asas. O rompimento também se dá precocemente pela omissão e por todos os vazios que permitimos, quando trocamos a realidade palpável e o contato essencial do dia a dia; quando não os abordamos com perguntas simples, elogios, incentivos, declarações de amor. Sentindo-se sozinhos, desamparados e inúteis, perdemos nossos filhos para o mundo das impressões virtuais que criam, num ambiente acolhedor, mas falso e perigoso.

O tic-tac é imponderável, é o próprio tempo que urge no agora. O tik tok é um flash, curto, mas poderoso. Estejamos atentos para que o tempo não nos martele o inconsciente e nos assombre as noites e os dias, condenando nossas omissões.

Tic-tac, Tik Tok, tic-tac...

Toc, toc, toc. Não espere que a tragédia bata à sua porta, proteja quem você ama.

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Publicado no jornal A praça, do dia 07/08/2021.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 07/08/2021
Código do texto: T7315521
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