Polarização ideológica – a fortaleza sitiada
Principalmente nos momentos de crise, como a situação política e pandêmica que estamos vivendo neste outono de 2021, nossas convicções tendem a radicalizar-se e entrincheirar-se atrás da muralha de nosso ego. Tudo que contraria nossas crenças é o inimigo, a ameaça que tem que ser mantida afastada. Mas uma fortaleza sitiada, sabemos pela História, não sobrevive indefinidamente sem o contato com o exterior. Ela precisa dos indispensáveis suprimentos. Um ser humano é como a fortaleza: ele precisa interagir para sobreviver, para evoluir.
Há maneiras diferentes de solapar uma fortaleza fortificada, ou uma arraigada ideologia. A História nos conta o episódio do cavalo de Troia: o inimigo foi introduzido dentro da fortificação disfarçado de uma honraria. Em festa adentraram-no pelos portões. Um embuste. Outra maneira, mais penosa e menos eficiente, seria lançar todas as forças contra as muralhas, no afã de sobrepujá-las. À custa de severas perdas e grande risco de fracasso. Ainda outra maneira seria a perseverança e a paciência. Uma fortaleza sitiada há de em algum momento ter de negociar o abastecimento de seu povo, ou um armistício. Se não o fizer, terá de expor-se à tarefa de romper o sítio, talvez não tenha força suficiente para tanto.
O pensamento humano parece ser a fortaleza sitiada, avesso às ideologias que o cercam e ameaçam a segurança de suas crenças. Apesar dos humanos se considerarem racionais, não alcançaram ainda razão suficiente para compreender que a reflexão e o embate civilizado de pontos de vista é o que tem nos conduzido à evolução da espécie. Não fosse assim, ainda estaríamos vivendo em cavernas e consumindo carne crua, talvez a dos nossos companheiros tombados.
Na crise atual que vivemos temos visto os acirrados embates ideológicos; há dois nítidos oponentes, não se sabe bem quem está sitiando e quem está sitiado. É um confronto às vezes surdo, um lado não escuta o outro, e as perdas são muitas. Não só vítimas da surdez, que aparta até pais, filhos e irmãos. No caso atual, inúmeras perdas fatais, pela irracional ideologização do enfrentamento da Covid-19, sobretudo nos EUA e Brasil.
O que fazer neste momento de impasse, em que cada lado julga ser o dono da verdade? Talvez o cavalo de Troia nos sugerisse um caminho; mas ele significa um ato de logro, de guerra e destruição. Haveria outras maneiras de ultrapassar os portões da fortaleza sem ser o embuste do cavalo de Troia? Por exemplo, entrar pacificamente, como o faria um viajante, e semear, com sobriedade e firmeza, a ideia da reflexão, do respeitoso confronto de convicções, em prol da evolução?
Cristo insinuou-se pacificamente, mas com firmeza e propósito, na hermética estrutura de poder de seu tempo. Veio justamente procurar convencer-nos que o caminho da reflexão e da solidariedade é preferível ao embate. O amor e não a guerra. Por isso foi crucificado. E após dois mil anos ainda não assimilamos seus ensinamentos. Talvez sejam ainda necessários mais dois mil anos? Seria ele, de novo, crucificado?
Um confronto com, afinal, um vencedor, não seria preferível? Muitos enfrentamentos já aconteceram ao longo dos séculos; os vencedores num dado momento são os derrotados noutro. E no século XXI, com as armas de destruição que criamos, não podemos mais nos arriscar a um confronto decisivo. Ele seria definitivo para a Humanidade.
Se o ser humano tem de fato algo de racional que o distingue, pensar sem a paixão que nos cega nas polarizações que vivemos há de nos apontar os caminhos para domarmos o ego, superarmos desavenças. E, enfim, prosperarmos. Como sociedade e como indivíduos.