O meu pai mudou o mundo

O julgamento do ex-policial Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd é um marco e acende a chama da esperança em um novo tempo para os norte-americanos e para toda humanidade. A condenação só foi possível graças há uma inédita conjunção de fatos: a coragem de uma jovem que filmou a cruel execução, a mobilização da sociedade, a repercussão na mídia, a mudança de presidente da república e a quebra do corporativismo de policiais que, pela primeira vez, prestaram depoimentos contra um colega de farda.

A frase de Gianna, a mais nova entre os cinco filhos de Floyd “O meu pai mudou o mundo”, foi lembrada pelo presidente dos EUA, Joe Biden no histórico pronunciamento ao lado de sua vice Kamala Harris, logo após o julgamento. Além de palavras, eles cobraram ações, inclusive do Senado americano que debate, desde agosto do ano passado, a Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, que propõe uma ampla reforma do sistema. Kamala ressaltou a dificuldade de ser negra naquele país "Americanos negros e homens negros em especial têm sido tratados como se fossem menos que humanos". Ao final destacou "Suas vidas precisam ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa nação."

A realidade local é pior, pois além de educação, habitação e justiça, temos um grande abismo quando tratamos de segurança, saúde e acesso ao emprego e renda. Pesquisa divulgada nessa semana mostra que 78% dos mortos pelas polícias são negros. Como outros mitos, o da democracia racial brasileira já caiu e a cada dia novos fatos expõem a triste ferida. A manchete da vez veio de um condomínio de Goiânia, onde um morador sentiu-se no direito de xingar e humilhar a trabalhadora da portaria. Aquela mulher poderia ser apenas mais uma das milhares que diariamente são agredidas e assediadas no ambiente de trabalho, o diferencial foi sua perspicácia e coragem em usar as tecnologias disponíveis para gravar as agressões verbais e denunciá-las.

As imagens são repugnantes e mostram a tentativa de diminuir, subjugar e reduzir a vítima. Em suas ofensas irreproduzíveis o elemento ataca a dignidade da pessoa humana, valor inigualável e ladeado ao direito fundamental à vida. Ao compará-la a animais, ele demonstra o próprio lado animalesco e, como geralmente ocorre, durante as agressões, os racistas são verdadeiras feras, mas quando flagrados, surgem dóceis, fragilizados, apresentando receitas e atestados médicos refutáveis para tentar justificar o injustificável.

Espera-se que, desta vez, um inquérito policial bem conduzido e um julgamento isento possam resultar em condenação exemplar e, talvez, arrefecer o ânimo dos que, ainda, se julgam acima do bem e do mal, contando com a impunidade para perpetuar suas práticas segregacionistas e preconceituosas.

Na luta pelo fim exclusão social e do racismo estrutural (conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas e culturais que privilegia algumas raças em detrimento de outras), brasileiros e estadunidenses têm oportunidades de mudanças significativas e verdadeiras. O mundo está cheio de mártires e referências que devem ser lembradas e seguidas, mas, quiçá não precisemos de mais humilhações ou mortes e que, por nosso exemplo e dedicação à construção de uma sociedade realmente inclusiva, igualitária e justa, nossos filhos, também, possam um dia dizer “O meu pai mudou o mundo”.