O cinema e o “espectro da total dominação”
A desordem mundial ̶ o espectro da total dominação (Civilização Brasileira, 2106) é título de imperdível livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira, renomado cientista político brasileiro, lastimavelmente falecido em 2017. O livro nos esclarece as razões dos muitos conflitos e golpes que têm ocorrido no mundo nas últimas décadas: a aparente desordem mundial na verdade tem um objetivo muito bem definido ─ a total dominação. E o cinema? O que ele tem a ver com essa orquestrada desordem?
O filme A espiã vermelha (Inglaterra, 2018, direção de Trevor Nunn) é um que nos faz revelações surpreendentes: baseado em fatos reais, aborda os motivos de uma dedicada e confiável pesquisadora inglesa, envolvida no desenvolvimento da bomba atômica, para repassar informações essenciais para o bloco soviético. A trama nos faz refletir sobre a bomba atômica. Ela foi sem dúvida a arma do maior ato terrorista da história. As explosões de Hiroshima e Nagasaki não visaram aterrorizar somente o já combalido Japão. Visaram aterrorizar o mundo todo. Se não tivesse acontecido a polarização nuclear entre o bloco soviético contra os EUA e aliados, graças à “traição” da espiã inglesa, talvez hoje o mundo fosse dominado por uma tirania hegemônica pior que o nazismo.
Isto remete a outro filme, Hitler – uma carreira (Alemanha, 1977, direção de Joachim Fest). Neste documentário, a principal conclusão é que Hitler construiu sua meteórica ascensão política, a partir de um início medíocre, graças a inflamados e estudados discursos que visavam empolgar e arrebatar a multidão, ressentida pelas derrotas e humilhações desde a Primeira Guerra Mundial. O desvario alemão ao abraçar o nazismo alicerçou-se na habilidosa manipulação de um povo oprimido e ofendido.
E o desvario estadunidense de cometer o catastrófico ato terrorista de pulverizar duas cidades inteiras, com suas escolas, hospitais, lares, templos religiosos, toda a população que vivia à margem da guerra? A propaganda tem repetido que o bárbaro ato estadunidense justificou-se pelo traiçoeiro ataque a Pearl Harbor, sem uma prévia declaração de guerra. Uma suposta covardia que teria enchido de razão o ressentimento e a vingança do povo estadunidense. Uma insensatez comparável à dos alemães. A diferença é que estes últimos perderam a guerra.
É preciso rever a História pelo menos desde o século XIX para compreender como a milenar cultura japonesa e seu território foram sendo asfixiados pela expansão do pensamento e do comércio ocidental. E não nos esqueçamos, Pearl Harbor foi um alvo militar, uma ameaça à soberania japonesa, historicamente sabotada. E o ataque visou, sem sucesso, afundar os porta-aviões estadunidenses, armas de ataque que visavam o controle hegemônico do Pacífico, e que não foram atingidos pois não estavam na base naval atacada. Já Hiroshima e Nagasaki eram alvos civis, duas cidades. É como se, ao invés de Pearl Harbor, os japoneses tivessem aniquilado Seattle e Dallas.
Qual é esse pensamento estadunidense, o qual talvez devamos temer mais que a evitada dominação do nazismo mundo afora? Esse pensamento, essa obstinação imperialista, é chamada de “doutrina do destino manifesto”, que moveu os pioneiros a estenderem o território estadunidense de oceano a oceano à custa do massacre dos nativos e de guerras de conquista contra franceses, espanhóis e mexicanos.
O destino manifesto apregoa que os colonizadores estadunidenses são um povo eleito, destinado a dominar. O mundo deve sujeitar-se e obedecer esse povo fadado ao mando. Desde antes mesmo do século XIX, a doutrina do destino manifesto tem conduzido e justificado os atos de terror dos EUA e seus principais aliados, que, alegando defender-se, não hesitam em invadir, sitiar ou sabotar os países pelo mundo afora que ousem questionar-lhes a obstinação imperialista.
Além do poderio militar e econômico, a outra força letal dos convictos do destino manifesto para dominar o mundo é a propaganda. E o cinema está entre uma de suas armas mais eficazes. O cinema nos vende uma falsa imagem de um EUA de glamour, liberdade e prosperidade, enquanto deprecia os insurgentes pelo mundo. Ao mesmo tempo, esconde as agudas crises econômicas e sociais vivenciadas por grande parte dos estadunidenses, mitigadas graças à atroz exploração dos países avassalados.
Felizmente, o cinema sobrevive como arte e cultura. A sétima arte cumpre os papéis contraditórios de propaganda e, ao mesmo tempo, denúncia da manipulação e da ânsia de total dominação. Existem filmes como Missisipi em chamas (1988), Cidade do silêncio (2006), Nebraska (2013), Fruitvale Station – a última parada (2013), Matem o mensageiro (2014), Moonlight (2016), Feito na América (2017), A espiã vermelha (2018), Nomadland (2020) e muitos outros, vários deles ganhadores de Oscars e outras premiações, que nos revelam as mazelas que corroem a confiança nos desígnios do destino manifesto.
O mundo está em crise, ambiental, econômica, política, social, ética. E agora, com a pandemia da Covid-19, também em crise sanitária, que é o corolário da soma de todas as outras crises. É urgente acordar para superar estas crises, antes que elas virem insanáveis colapsos. A razão maior da crise é a incapacidade dos seres humanos de manifestarem empatia e solidariedade. Tal egocentrismo, cupidez e soberba resultam da ideia de predestinação, o nefasto destino manifesto. Uma doutrina que se revela multidimensional: há os cidadãos, as religiões, as raças, as castas, as nações e os continentes que se consideram os predestinados.
Que a sétima arte, mais que iludir, consiga contribuir para desmascarar o espetro da total dominação, e colabore para a humanidade superar a crise atual.