PRIVILÉGIOS
Uma pressão ao lado esquerdo do meu ventre... ainda confuso de tantas imagens e emoções desconexas, lentamente percebo... Valentina... tão bem encaixada em meu corpo como se fossemos um só. Desperto. Acaricio-a levemente, o que a faz se espreguiçar. Com o pé direito sinto a presença de mais dois ou três gatinhas próximas ao meu corpo. Penso “foi uma boa noite de sono, estão todas aqui”.
Um enorme privilégio despertar todos os dias coladinho com aqueles que verdadeiramente nos amam.
Levanto, uma trupe felídea alvoroça-se no ambiente. Executo minha higiene pessoal. Saio do quarto. Mais um dia.
Dirijo-me à cozinha, onde, inexoravelmente, encontra-se minha vozinha ao fogão. Faço algum comentário gentil ou engraçado a título de “bom dia”, observo os trocentos animais espalhados por todos os lados (atualmente 18 felinos e 5 caninos). A sensação é de estar em casa, em paz, em harmonia, independente do que exista fora daquela cozinha, dos deveres, dificuldades, obrigações, do mundo...
Enquanto degusto calmamente trivial desjejum, conversamos, fofocamos, rimos... dedico-lhe o tempo de que necessita... 80 anos... até quando terei esse privilégio?
O resto de meu dia é normal, como o de todas as pessoas. Faço coisas, o que tem de ser feito. Mas não sou do tipo que me “entupo” de obrigações.
Sempre busco os reais valores e prazeres escondidos nos recônditos do dia a dia. Conversar com os animais e vegetais; ser gentil com o vizinho; tentar fazer tudo com bom humor e boa vontade (por mais que nem sempre se consiga); Olhar para as dificuldades da vida como um aprendizado e não como um fardo, e passar o máximo de tempo possível com quem se ama.
Não. Minha vida não é um mar de rosas. Minha cruz é pesada como a de todos os seres humanos. Dinheiro que falta, doenças, ex-mulher, filhos, desemprego, estresse, dias péssimos, etc... dificuldades iguaizinhas às dos demais seres do universo.
Mas tenho o enorme privilégio de ter o necessário. Sem luxos ou excessos... apenas o que me basta. Apesar das adversidades, ao final, tudo se ajeita.
Costumo dizer: um dia de cada vez e deixa Deus trabalhar.
Minha vida é bem simples, mas abençoada. E sabem por quê? Pois assim eu a enxergo.
Toda essa falácia sem sentido para tocar num assunto muito importante.
Quando eu me sento confortavelmente no sofá da sala para assistir ao telejornal, e percebo as discrepâncias entre minha vida e a de milhões de outras pessoas iguais a mim, só uma pergunta: por quê?
Apenas isso me tira o sono. Contas atrasadas, brigas familiares, doenças, dificuldades diárias que todos temos... nada, nada disso tira meu sono.
Mas... pessoas iguaizinhas a mim passando fome, sem teto, água, dignidade... guerras inúteis por porções de terra... milhares de refugiados (pessoas como eu e você) sobrevivendo em modernos “campos de concentração” ...
Que mundo é este que construímos? Todas essas pessoas são nós e eu e você somos elas...
Será que, depois de 2.000 anos, ainda não conseguimos internalizar a simples orientação de fazer ao próximo o que desejássemos que fosse feito a nós mesmos? Vamos continuar delegando a responsabilidade a terceiros, fantoches políticos corruptos do falido sistema denominado sociedade?
Apenas um lembrete. Ao sairmos deste mundo, sairemos sozinhos, e responsabilizados seremos por nossas ações (negativas ou positivas). Não adiantará dizer: o governo isso ou aquilo, a comunidade carente era longe da minha casa; eu tinha meus problemas, não dava para salvar o mundo, tinha que pensar na minha família...
Ninguém pode mudar o outro, apenas a si mesmo.
Num grande incêndio, se ficássemos de braços cruzados esperando os bombeiros e eles não viessem, com certeza o pior ocorreria. Mas se cada um de nós se predispor-se a transportar apenas um balde d’água, talvez o resultado fosse bem diferente.
Um dia, quando não estivermos mais neste mundo de carne e instintos, alguém nos pergunte: “Sim, Eu sei, foi o caos, mas o que VOCÊ fez para combatê-lo?”.
Deus... na próxima encarnação, por favor, deixe-me vir um gato!