Cubatão e a Covid-19: a moral do lucro
A cidade de Cubatão, ao pé da Serra do Mar no trajeto entre o porto de Santos e a metrópole São Paulo, ilustra bem qual é a moral do lucro. A localização de Cubatão atende a razões econômicas: ela fica no meio do caminho entre a maior cidade e o maior porto do país, por este chegam e partem insumos e produtos industrializados. Desde meados do século XX a estratégica situação da cidade fez com que ela recebesse agigantado parque industrial, com refinarias, petroquímicas, siderúrgicas, metalúrgicas, muitas fábricas que aproveitam a facilidade logística entre o porto e a metrópole.
As fábricas foram instaladas sem nenhuma preocupação ambiental e social. Era a época do “desenvolvimento a qualquer custo”. Quem conheceu a cidade no início da década de 1980 tem dela uma lembrança inesquecível: chaminés vomitando fumaça escura, o ar e a silhueta da cidade cinzentos e sombrios, o sol pálido mal conseguindo atravessar a barreira de névoa química. A população sofria de várias doenças por intoxicação. Cubatão ficou famosa no mundo pela incidência descomunal da monstruosa anencefalia, o nascimento de crianças sem cérebro, por efeito da poluição. Em 1984, o vazamento de um duto de gasolina em Vila Socó ocasionou incêndio com número incalculável de vítimas, entre 90 e 500 mortos. A situação era tão calamitosa que a ONU declarou a cidade a mais poluída do mundo.
Apesar dos protestos dos operários e suas famílias, a tragédia na saúde da população não foi suficiente para as indústrias se convencerem da necessidade de evitar a poluição. Mas a vida parece esforçar-se em nos ensinar que não há incúria sem desforra. Em meados dos anos 1980, a natureza revidou. Cubatão situa-se no sopé da escarpa da Serra do Mar, muralha que ultrapassa mil metros de desnível e é coberta pela exuberante Mata Atlântica. Mas a poluição matou a floresta nas encostas próximas à cidade. Logo se constatou que, sem a mata a protegê-los, os solos das íngremes vertentes instabilizavam-se, durante as torrenciais chuvas orográficas provocavam inúmeros escorregamentos de terra, que coalesciam nos fundos dos vales e poderiam originar catastróficas corridas de lama, fenômenos que destroem o que encontram pela frente. As indústrias estavam ameaçadas.
Então, em nome dos investimentos e seus lucros, e não da vida e saúde da população, tomaram-se medidas urgentes para evitar a tragédia: nas fábricas enfim instalaram-se filtros contra a poluição, construíram-se barreiras para conter eventuais corridas de lama, usando-se helicópteros realizaram-se semeaduras de espécies nativas para reflorestar as encostas, desencadeou-se uma operação de guerra, contando com criação de brigadas e instalação de sofisticados sistemas de monitoramento e alerta. Um investimento altíssimo, mas não proibitivo, para sanar a anterior desfaçatez da ânsia de lucro ao menor custo.
Cubatão restabeleceu-se, na década de 1990 a ONU considerou-a um exemplo de recuperação ambiental. A Mata Atlântica recuperou-se, as ameaças às indústrias foram afastadas. E esqueceram-se os irrecuperáveis custos sociais daquela insensatez.
No trato da pandemia da Covid-19, voltamos à questão da economia versus vida. Parece que ainda nada aprendemos com as muitas lições que já tivemos a respeito, Cubatão é só um de muitos exemplos. O infame sistema que vivemos dá mais valor ao lucro que à vida e ao ambiente que a sustenta.