As regulações sanitárias e os desafios para as famílias produtoras de alimentos artesanais

A produção alimentícia está inserida em um capítulo vital da história mundial. Somente nas últimas décadas, ocorreu uma difusão sem precedentes de novos alimentos e de sistemas de distribuição e controle global. Junto a isso, diversos problemas relacionados à (in) segurança dos alimentos (abastecimento, produção e comercialização, consumo) passaram a fazer parte do cotidiano de grande parte da população mundial.

Conforme o surgimento de novos riscos e preocupações com a saúde em escala global (“vaca louca”, “gripe suína”, e mais recentemente a Covid-19) que expõem grupos humanos a ameaças advindas dos fluxos de produtos e serviços, diversas orientações sanitárias, antes restritas a determinadas localidades, começam a atuar muito além das fronteiras nacionais. Em vários países, normas e regras sanitárias passam a referenciar legislações que regulam mercados internos e de proximidade, com fortes implicações nos territórios rurais, na diversidade de culturas alimentares e nos saberes e fazeres artesanais (DUPIN; CINTRÃO, 2018). Como resultado, as restrições legais estabelecidas no sistema agroalimentar, em vários momentos, desconsideram os modos de vida das populações rurais, especialmente das mulheres do campo, guardiãs de saberes e sabores locais.

No Brasil, estamos diante de uma legislação desatualizada[1] que aplica regras higienistas severas, sobretudo para as agricultoras e agricultores familiares[2]. Em termos legais, diversos produtos produzidos artesanalmente, muitas vezes, devido a noções hegemônicas de qualidade e risco alimentares, não atendem aos critérios necessários para o consumo das populações (CINTRÂO, 2016). De forma agravante, impedimentos para a produção e comercialização desses produtos artesanais e tradicionais[3] fazem parte do cotidiano de várias famílias agricultoras.

Nesse contexto, vários desses produtos (queijos, méis, farinhas e doces) correm o risco de desaparecer do mercado formal por motivos que variam desde a queda do consumo, a desestruturação de comunidades produtoras e diluição de costumes culturais de cultivo. Assim, “esse quadro de fragilidade pode levar a ruptura dos sistemas tradicionais e na perda de práticas artesanais” (SANTOS et al, 2016, p.17).

A inadequação do código sanitário às práticas socioculturais coloca na informalidade muitos agricultores familiares que produzem alimentos que contribuem para a nossa socio-biodiversidade, com valor cultural e nutricional para todo o país. Essas experiências de adequação aos padrões industriais não foram bem sucedidas por sacrificarem características principais da artesanalidade, do modo de saber, do fazer, do sabor e da identidade com o território local.

Esses parâmetros sanitários-industriais por sua vez, acabam conflitando com o próprio Guia Alimentar para a População Brasileira (2014).Conforme alerta Monteiro (2010), a recomendação é evitar o consumo de ultraprocessados[4], como os embutidos, preparações instantâneas e produtos industrializados que contém gordura vegetal hidrogenada, amido modificado, emulsificantes, realçadores de sabor e corantes.

A dicotomia de produção industrial/artesanal, presente nos textos legais, representa um reconhecimento empírico dos flagrantes resultados de diferenciação em cada um desses setores A produção de alimentos artesanal, por sua vez, está embasada em métodos que operam em escalas de processamento incomparavelmente menores que as das empregadas pela indústria convencional (CRUZ; SCHNEIDER, 2010).

Como efeito, diversas famílias produtoras enfrentam inúmeros desafios para produzirem e viverem em suas comunidades rurais. Em vários momentos, como no caso dos produtores de queijo, por exemplo, seus produtos são apreendidos – principalmente nas estradas próximas a centros urbanos. Vários desses casos, vêm sendo noticiado nos últimos anos pelos meios de comunicação local[5]. De tal forma, as fiscalizações sanitárias causam prejuízos aos produtores familiares de diversas regiões do país ao dificultarem tanto o acesso aos mercados formais como a permanência desses no campo. Mesmo assim, as famílias produtoras ao manterem suas atividades na informalidade, seguem desafiando a vigilância sanitária e os ordenamentos legais no país.

Nesse contexto de controvérsias, a legislação sanitária deve considerar ao serem elaboradas, as especificidades de produção artesanal das famílias agricultoras (WILKINSON, 2008). Então, o controle dos riscos e as proteções sanitárias – que talvez em algum nível sejam necessários – precisam levar em consideração a importância da diversidade dos saberes e fazeres de cada produção em um dado território, relacionando-os a valores éticos, ambientais, históricos vinculados aos diversificados modos de vida das populações locais. Muito além de uma questão técnica, a qualidade alimentar, precisa ser compreendida com base nos elementos materiais, socioculturais e simbólicos que compõem os saberes, fazeres e práticas constituídos nas comunidades tradicionais.

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Escrito originalmente: https://marginaliasocial.wordpress.com/2021/01/25/as-regulacoes-sanitarias-e-os-desafios-para-as-familias-produtoras-de-alimentos-artesanais/

[1] Refiro-me à Lei n. 1.283, editada em dezembro de 1950 (BRASIL, 1950) e aprovada pelo Decreto n. 30.691, de 1952 (BRASIL, 1952), que estabeleceu diretrizes sobre a inspeção industrial e sanitária dos produtos de origem animal.

[2] Disponível em: < https://ojoioeotrigo.com.br/2020/08/e-se-nossas-leis-sanitarias-estiverem-profundamente-erradas/> Acesso em: 30 de out de 2020.

[3] Existem diferentes denominações para se referir aos produtos alimentares tradicionais, como alimentos tradicionais, produtos típicos, locais, territoriais, entre outros. Embora associados a diferentes abordagens e ênfases, características dos distintos campos de conhecimentos, o termo, nesse caso, refere-se a produtos que possuem forte conexão com um espaço de origem, capazes de mobilizar sentimentos de pertencimento, tradição, localidade e uma ancestralidade comum (SANTOS et al., 2016, p.14).

[4] Para Michael Pollan (2007), os ultraprocessados não podem ser considerados alimentos, mas produtos alimentícios que se caracterizam pela praticidade, podendo ser consumidos em qualquer lugar e a qualquer hora; e pela hiperpalatabilidade, obtida pela adição exagerada de açúcar, sódio e gorduras.

[5] Diversos casos de apreensões como os das matérias abaixo são frequentemente veiculados na imprensa pernambucana. Disponível em: <https://pernambuconoticias.com.br/2018/05/11/mais-de-700-quilos-de-queijo-foi-apreendido-no-interior-do-estado-material-seria-vendido-em-caruaru/>. Acesso em: 12 jun. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/09/18/policia-faz-apreensao-de-queijo-coalho-irregular-durante-operacao-no-recife.ghtml/> Acesso em 11 abr.2020

Referências

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE. Guia Alimentar da População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014&gt;. Acesso em: 23 fev. 2018.

DUPIN, Leonardo Vilaça; CINTRÃO, Rosângela Pezza. Entre bactérias e lobos: o cerco biopolítico à produção do queijo Canastra. Revista de Antropologia da Ufscar, São Carlos, Sp, v. 10, n. 1, p.53-79, jun. 2018.

CRUZ, Fabiana; SCHNEIDER, Sergio. 2010. “Qualidade dos alimentos, escalas de produção e valorização de produtos tradicionais”. Revista Brasileira de Agroecologia, 5(2): 22-38.

MONTEIRO, Carlos. Nutrition and health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutrition, v. 12, n. 5, p. 729–773, 2010.

POLLAN, Michael. O Dilema do Onívoro. Rio de Janeiro. Editora Intrínseca, 2007.

SANTOS, Jaqueline Sgarbi et al. Dilemas e desafios para circulação de queijos artesanais no Brasil. Vigilância Sanitária em Debate, [s.l.], v. 4, n. 4, p.13-22, 25 nov. 2016. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência y Tecnologia. http://dx.doi.org/10.22239/2317-269x.00617.

WILKINSON, John. Mercados, Redes e Valores. 1. Ed. Porto Alegre: UFRGS, Editora, 2008, V1, 213p.