‘Amor’ simbiótico entre o casal e projeção de sua destrutividade na filha

Introdução

Este artigo se propõe a discutir a relação simbiótica entre um casal e a projeção de seus impulsos agressivos-destrutivos em sua filha. Esta é a depositária do material psíquico do casal – similar em vários aspectos – oriundo de seus traumas com seus pais/avós da garota. A relação do casal com sua filha se revela patológica, constituindo um caso clínico, que permite apreciar ângulos essenciais desse tema. Discutem-se suas relações com o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional: constructos hipotéticos oriundos da clínica da autora e do uso do método clínico psicanalítico. Recorre-se, ainda, a conceitos psicanalíticos consolidados quanto à simbiose e aos vínculos conjugais, com o intuito de examiná-los.

A literatura psicológica especializada sobre família, muitas vezes, se refere ao paciente identificado, ao bode expiatório e ao depositário. Esses termos aludem ao fato de que um membro da família é considerado o doente e o problemático pelos demais, de modo que eles chegam até os terapeutas familiares se queixando dele. Contudo, na abordagem sistêmica e na constelação familiar, o paciente identificado representa uma faceta da complexa dinâmica da família. Ele se presta a garantir o bem-estar e equilíbrio da família, gerando ganhos secundários para seus membros, mas, com isso, eles deixam de resolver questões, que precisam ser elaboradas por todos (Rizzo e Schmidt, 2015).

Feita essa consideração inicial, retorna-se para o aporte psicanalítico fundamental nessa reflexão. Dentre seus pensadores:

Bleger (1988) postula que nas neuroses graves existe uma personalidade psicótica mascarada pela neurose. Essa personalidade é composta por um ego integrado, maduro e neurótico e por um núcleo aglutinado, psicótico e imaturo, segregado do ego. Este núcleo constitui a mais primitiva estrutura do eu em sua relação com objetos internos ou partes da realidade exterior, sem discriminação e sem confusão entre eles. Numa relação simbiótica ocorre a fusão de dois egos, a indiscriminação entre o eu e o não-eu e seus membros não têm existência própria. Desse modo, cada um deposita no outro, seus conteúdos psíquicos inconscientes: emoções intensas que, não puderam ser elaboradas e geram ansiedade insuportável. A simbiose designa essa estreita interdependência entre eles, visando manter controladas, imobilizadas e, relativamente, satisfeitas as necessidades das partes imaturas de suas personalidades – dissociadas das partes maduras e da realidade. Assim, a simbiose é essa relação que permite a imobilização e o controle do objeto aglutinado. Portanto, a perda da imobilização e do controle sobre o objeto aglutinado produz a ameaça catastrófica de aniquilação do ego, resultando em ansiedade catastrófica, primitiva, intensa e maciça. Posto isso, a análise precisa colocar esse objeto indiferenciado presente na dupla simbiótica – mas imobilizado pela projeção numa terceira pessoa – em movimento, para desfazer a confusão, discriminar suas partes e integrar seus fragmentos.

Agregando outros elementos ao tema, Berenstein e Puget (1993) pontuam que os vínculos conjugais mais primitivos e mais patológicos envolvem a fusão, a idealização, a recusa da individualidade de cada um e o desejo de um ser a imagem especular do outro, numa dependência adesiva sem autonomia. Nesse vínculo adesivo, impera o medo da separação e a excessiva necessidade do outro. Na complementaridade entre os pares destaca-se o par amparador-desamparado, na qual seus membros mantêm-se fundidos e os afetos são da ordem da violência, irritação e hostilidade.

Willi (1985) estuda a colusão: jogo conjunto inconsciente e não confessado entre dois parceiros, em função de um conflito similar não superado, cujo caráter defensivo fixa cada sujeito em determinadas posições. Cada sujeito representa uma variante polarizada do mesmo conflito nessa relação neurótica recíproca, envolvendo atividade/passividade, dominação/submissão, dependência/independência. O membro passivo tende a uma atitude regressiva e imatura, enquanto o membro mais ativo representa um papel progressivo de falsa maturidade – atuando como adulto em relação ao outro. Imobilizam-se pela necessidade de manter no outro os aspectos rejeitados da sua dinâmica. Porquanto, conflitos de mesma ordem ou de classes complementares exercem uma grande atração entre as pessoas, desde a eleição inconsciente do parceiro. Ambos depositam no outro a esperança de cura de suas feridas emocionais da infância.

Quanto a isso, Pichon Rivière (2009) define a família como a estrutura social configurada pelo entrejogo de papéis diferenciados – pai-mãe-filho – e pelo mecanismo da depositação entre depositante, depositado e depositário: afetos, fantasias e imagens – depositado – que cada pessoa – depositante– coloca sobre o outro – depositário.

No pensamento dos três primeiros autores, há algumas ideias em comum: vínculos primitivos e patológicos entre o casal, interdependência neurótica entre o par, posições complementares entre eles, conflitos semelhantes entre eles advindos de suas famílias originárias. Nesta trilha conceitual, as contribuições dos autores são trazidas para a perspectiva transgeracional em psicanálise e interligadas ao desejo, ao trauma do absoluto e ao sistema representacional – propostos pela autora.

Um adendo se faz necessário para se pensar o caso clinico em questão. Os brasões de armas tiveram origem nos atos de coragem e bravura dos grandes cavaleiros medievais, constituindo uma forma de homenageá-los e às suas famílias. Com o tempo, esse símbolo de status foi conferido a famílias nobres. Dessa forma, tão somente os heróis e os nobres detinham tal símbolo e poderiam transmití-lo a seus descendentes. Os brasões de família representam, num sentido restrito, o chefe de uma família e, num sentido lato, o conjunto da família (Nóbrega, 2003).

O desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

Considerando-se a transmissão da vida psíquica na família segundo o prisma psicanalítico, a questão do amor simbiótico num casal e a projeção de sua destrutividade em sua filha pode ser examinada no campo do desejo, do trauma do absoluto e do sistema representacional.

O desejo configura-se como um conjunto de representações e de afetos, que rege as forças psíquicas do sujeito. Em princípio, ele gera movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação, até se efetivar no mundo. Contudo, as inibições na satisfação do desejo do adulto derivam de sua fixação em certas representações e afetos, que impedem sua realização. Esses bloqueios do desejo do sujeito estão radicados no material psíquico que perpassa sua família. Assim, vivências familiares muito arcaicas marcaram o desejo do sujeito e seu sistema representacional (Almeida, 2003) .

O sistema das representações do sujeito constitui um dispositivo psíquico com potencial para representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar as diversas vivências psíquicas se desenvolve a partir dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se assujeita ao seu desejo. Logo, esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança têm relação com os conteúdos psíquicos de seus pais e antepassados. Esse sistema é constituído por diferentes camadas ou estratos psíquicos. Seus elementos fundamentais são as representações e os afetos do desejo que, a priori, dirige-se ao mundo das relações humanas. Esses processos tem relação direta com as gerações da família (Almeida, 2003).

Dado esse legado familiar, as questões do desejo e sistema das representações se associam ao enfoque econômico sobre o funcionamento psíquico. Quanto a isso, Freud (1915) afirma que esse enfoque considera as alterações nas quantidades de excitação. No inconsciente, há conteúdos investidos com maior ou menor força.

Esse conceito metapsicológico aplica-se às ideias da autora acerca do investimento, do sobre-investimento/sobrecarga e do subinvestimento/subcarga de afetos nas representações. Estas recebem quantidades maiores – sobre-investimento – ou menores – subinvestimento – de afeto no trauma: amor, ódio, horror, entre outros.

No sistema das representações, o trauma do absoluto se revela mediante certas representações: ser abandonado, desamparado, rejeitado, excluído, não-amado, ser um nada, para sempre, sem lugar no mundo, entre outras. Elas são sobrecarregadas de ódio e horror, sendo contrárias à realização do desejo do adulto. Coexistem, igualmente, no sistema, as representações autodepreciativas: ser explorador, desacreditado, expulso, desastrado, dentre outras. Elas são investidas de ódio e também impedem o fluxo do desejo – dificultando sua realização de forma mais branda que as do absoluto. Em contraste, ser amado, competente, dedicado, persistente, bem-sucedido e vencedor constituem representações coerentes com seu desejo – em seus fundamentos mais verdadeiros. Elas são investidas por amor, favorecendo a força do desejo do adulto (Almeida, 2003).

Dentre as representações do trauma do absoluto, os paradoxos lógicos articulam vivências mentais contrárias, mas indissociavelmente ligadas: ganho e perda, inclusão e exclusão, cheio e vazio. Na análise, os paradoxos ilustram a condição de que os objetos de seu desejo, quando conquistados pelo paciente, produzem vivências mentais ilógicas nele. Pela lógica da razão, suas conquistas deveriam gerar: ser ganhador, ser incluído e estar satisfeito. Paradoxalmente, ele vivencia: ser perdedor, ser excluído e sentir-se vazio. Estas representações detém a primazia sobre as primeiras no sistema das representações, em virtude da força daquele trauma (Almeida, 2003).

O caso clínico em foco demanda acrescentar às representações dos paradoxos, a temática da vida e da morte. Porquanto, ainda que o casal esteja vivo no nível da realidade consensual compartilhada com os outros – dadas suas vivências de morte com seus pais – cabe pensar que as representações paradoxais de estar vivo-estar morto estão presentes nos estratos inconscientes do sistema representacional de ambos.

Essas hipóteses da autora fazem uma interlocução com os conceitos psicanalíticos sobre as relações simbióticas – apresentados na seção anterior – para analisar o caso clínico exposto a seguir.

A clínica do amor simbiótico do casal e a projeção de sua destrutividade na filha

No que tange à patologia da família em pauta, em seu sentido etimológico, páthos designa paixão, sofrimento, afeto, excesso, catástrofe, passagem, passividade, assujeitamento e ligação afetiva. A partir de suas raízes etimológicas e da clínica psicanalítica, destaca-se o sofrimento psíquico do trio – em detrimento da noção popular de patologia como doença.

O breve contato com o casal ocorre fora do padrão tradicional de trabalho em psicologia e em psicanálise. Numa ocasião, uma profissional recebe um telefonema da irmã acerca de um casal bastante desesperado frente ao comportamento da filha, que fugira de casa. Em especial, o pai estava bastante descontrolado e chorando muito. A partir disso, a profissional conversou com eles pelo celular e foi até sua casa durante duas manhãs – dada a grave crise, pela qual eles estavam passando. Amenizada a situação, quando ela se refere à ida do casal para seu consultório, o marido repete consultório, eles se despedem e o casal não volta a procurá-la.

A filha do casal, aos quatro anos, era convidada e acolhida nas casas de seus amigos. Porém, ela riscava paredes e estragava bonecas, levando à sua expulsão das casas. Além disso, ela jogava os lápis na filha da monitora, provocando sua expulsão da escola. E, ainda, escondia objetos dos amigos de seus pais, expulsando-os da casa da família. Atualmente, a garota apresenta forte oposição aos pais e à mãe, em especial.

A filha do casal fez uma simulação de relação oral na escola, aos doze anos. Esse tipo de comportamento em público faz com que ela seja vista como p..., biscate e vagabunda, segundo o senso comum. Além disso, ela se aproxima de traficantes, de pedófilos na internet e assiste a vídeos pornôs, aos doze anos. Num local público de uma cidade pequena, ela estava junto a traficantes e seus pais foram buscá-la. Na briga, ela diz para o pai: ´você não manda em mim´ e ele retruca: ´eu mando´, batendo na filha em público, depois de ter conversado com ela em casa. Assim, ela some, foge de casa, produzindo desespero, humilhação e vergonha nos pais, em público: uma espécie de tapa público, neles. Em meio a seu descontrole, esse pai diz: ‘ tenho muito medo que minha filha se mate’: muito medo de perder quem ele ‘ama’.

A garota reclama que sua mãe gosta mais da faxineira e das amigas do que dela. Apresenta comportamentos antissociais em público, cada vez mais contundentes. Contudo, parece ter o desejo de ser amada, valorizada e importante para os pais. Quando foi levada para uma casa-abrigo, ela abraçou o pai, chorou e disse: ´agora você vai ter paz´. Portanto, ela se identifica com seu pai e sente culpa por seus comportamentos. Todavia, ele se considera o único culpado pelos problemas da filha.

Segundo a esposa/paciente, sua casa está sempre arrumada, enquanto no quarto da filha, o lixo se acumula e impera. Assim, ela diz para a filha, todo dia: ´arruma esse quarto direito´. Possivelmente, a filha entende: ‘o meu jeito/jeito da mãe de arrumar o quarto é o certo, o seu é errado; você faz isso errado todo dia; você não tem direito de ter seu quarto pra você’. Se esse padrão verbal for típico da relação, a filha se sente desvalorizada, criticada e errada sempre, aos olhos de sua mãe. Ainda que essa mãe tenha dito que o nome da filha significa aquela que traz a luz, na mitologia grega, isso não se confirma na literatura. Além disso, sua mãe não mencionou que essa personagem teve um fim trágico.

A paciente/esposa afirma que sua mãe a chamava de p..., biscate, vagabunda, sem ter motivos para isso, pois ‘me casei de véu e grinalda’. Contudo, sua mãe engravidou sem ter casado e nunca se casou. Ela relata a tentativa de sua mãe de abortá-la, jogando-se no chão. Logo, havia o desejo de morte da paciente por parte de sua mãe. Tendo sido rejeitada e quase expulsa da vida pela mãe, ela não consegue se amar, se acolher e, tampouco, sentir conforto psíquico. E, mais, a despeito de seu pai trafegar pelo mesmo caminho que ela, ele lotava o táxi para ganhar dinheiro, enquanto via que ela ficava para fora do ônibus. Portanto, ela viveu o risco de morte, dessa vez associado a seu pai. Além do mais, ela foi explorada como empregada pela mãe e pela família. Nas palavras do marido, ela não tinha seu próprio quarto na casa dos pais. Assim, ele procura oferecer-lhe o máximo conforto material possível.

O paciente/marido afirma ter sentido ‘paixão à primeira vista’ pela esposa, sendo apaixonado por ela até hoje e ter sentido ‘paixão’ pela filha quando ela nasceu, tendo levado flores para a esposa no parto. Ele acorda a filha cantando e fala em canto, flor, amor, abraço e bom humor.

O paciente/marido foi dado como morto por seu pai ao nascer, tendo sido sacudido e salvo pela avó. Seu pai o colocou em cursos de sobrevivência, que envolviam: passar por uma casa em chamas; atravessar por um cordão, com chamas embaixo; pular de um penhasco para a água, sendo que ficou enrolado na rede e quase se afogou, aos doze anos. Assim, seu pai lhe propunha desafios quase impossíveis de serem ultrapassados por ele: ‘meu pai era covarde, com medo de tudo’. Frente a isso, ele é sobrevivente e vencedor. Ele se denomina chorão, ao relatar a acusação de uso de maconha por uma tia e a surra dada pelo pai. Seus professores defenderam-no na escola, mas seus pais e sua tia não pediram desculpas a ele. Tem a necessidade de ser aprovado e de ter crédito junto à família, desde a acusação da tia, a ponto de se sacrificar e se deixar ser explorado pelo pai.

O paciente/marido obteve destaque na banda da escola e nos negócios do pai. ‘Ele ficava infeliz e tinha inveja do meu sucesso’. Ele foi explorado como empregado pelo pai e pelo restante da família. Apesar disso, ele já tinha dinheiro para o próprio negócio aos dezesseis anos e quando pediu ao pai sua assinatura, para abrir uma conta no banco, ouviu: ‘você vai falir’. Frente ao sucesso do negócio do filho, no qual ele ganhava mais que seu pai, este lhe emprestou dinheiro, mas ‘controlou tudo e eu perdi a liberdade’. Segundo ele, sua família sabe que ele é honesto com dinheiro, mas chora, ao dizê-lo. Sua mãe era mais amorosa com ele que seu pai. Ela era acusada de perder, em casa, os papéis que o marido/pai do paciente tinha deixado no escritório. Em suma, seu pai tinha forte desejo de fracasso e de morte quanto ao filho.

Ele aponta que seu avô paterno era o legislador da família, ditando o que era o certo, sem privilegiar os homens. Assim, as falhas de seus membros eram expostas para toda a família – reunida para a ocasião. Ele revela sua identificação com os dois avôs. Seu avô paterno era correto, justo, bem arrumado e usava terno, enquanto o avô materno era cantor, solto, usava bermudão na praia, reunia as pessoas ao seu redor, sendo conciliador e resiliente. Ele foi roubado ao chegar ao Brasil, com treze filhos. Seus avós maternos eram mais amorosos com ele do que os avós paternos. Evidencia-se, nessa família, a falta de distinção entre o espaço privado e público.

Ele se considera ‘chorão como todo ...’, referindo-se à nacionalidade de sua família. Ele não assume sua raiva de seus pais, mas tão somente sua mágoa deles: ‘duros, secos’. Porém, sua esposa assume a raiva de sua mãe e de seu pai, afirmando que não cuidaria dele. Ao se referir ao marido, ‘ele é tudo na minha vida’. Com isso, revela a confusão entre seu eu e o eu do marido/eu da família. Com relação à esposa, ele diz: ‘eu sou ela’. Logo, há uma confusão entre seu eu e o eu da esposa/eu da família. Ele aponta, ainda: ‘ela é mais homem que eu’. Ela explica que, após a cesárea, saiu da maternidade, foi trabalhar e usou salto alto. Ela parece ser sobrevivente, vencedora, determinada e persistente.

Os pais de ambos tentaram atrapalhar seu namoro e seu casamento, não deixando que escolhessem o dia de seu casamento e, tampouco, a madrinha da filha. Ambos não foram amados, abraçados e, sequer, acolhidos pelos pais, tendo levado várias surras injustas, Foram acusados, injustamente, quanto às drogas – marido – e à sexualidade – esposa. Nessa medida, eles não experimentaram o crédito junto aos pais, nem enquanto filhos nem enquanto casal. Parecem ter projetado essas vivências na filha. Em meio a isso, foram salvadores um do outro, unindo-se para retirar o parceiro da casa de seus pais. Ambos são vencedores e sobreviventes em relação a seus pais.

A casa de alto padrão do casal prima pela fachada de beleza, elegância e perfeição, ao passo que há um acúmulo de lixo no quarto da filha. A casa reflete o sucesso financeiro do casal, revelado pelo refinamento e cuidado com os detalhes da decoração. Há grandes enfeites de madeira e de festa, na entrada da casa. As salas são marrom escuro, sem flores, mas com o brasão da família. A cozinha é diminuta em relação às salas, com uma pequena flor vermelha. O carro do casal ostenta um animal selvagem em sua parte traseira: exótico e atraente, mas selvagem, perigoso e mortífero.

O casal apresenta uma fachada de simpatia, acolhida e gratidão, junto a profissional. No tocante a esta, a esposa a abraça, fala em gratidão, sendo acolhedora com bolo e bebida. Entretanto, eles parecem explorar psicológica e financeiramente as outras pessoas, considerando-se que não fizeram qualquer menção a pagar a profissional e usaram – o tempo todo e sem qualquer limite – o celular da pessoa que os acolheu, quando estavam desesperados. Além disso, possivelmente, eles fogem de impostos: ‘não tem prefeitura’ dito pelo marido sobre um negócio, que pretendiam abrir. Ainda no plano da relação com dinheiro, há que considerar a fala da esposa: ‘eu vendo tudo’.

Discussão

Tendo-se proposto discutir a relação simbiótica entre um casal e a projeção de seus impulsos agressivos-destrutivos em sua filha, faz-se necessário prestar alguns esclarecimentos sobre isso. Nesse caso clinico – marcado por condições especiais como: curta duração do contato entre a profissional e o casal e, ainda, seu atendimento em casa – a presente análise se apresenta limitada e restrita.

De início, chama atenção a genealogia dos participantes do casal, visto que eles apresentam vários pontos traumáticos em comum. Assim, desde seu nascimento parece haver forte desejo de morte de seus pais quanto a eles. Este desejo perdurou por meio das situações de risco, às quais eles foram submetidos. Porém, no caso do marido, a posição de seu pai parece ambígua e paradoxal: indutor de sua morte e salvador-protetor do filho. O risco de morte vivido por ele – ao nascer e a posteriori – se liga à sua ‘paixão’ pela filha quando ela nasceu, em oposição a seu pai que desejou sua morte.

Dada sua herança psíquica, eles estabeleceram uma relação de casal primitiva, imatura e simbiótica, de modo que partes do self de um estão identificadas, misturadas e confundidas com partes do self do outro. Quanto a isso, Willi (1985) aborda a colusão: jogo conjunto inconsciente e não confessado entre dois parceiros, em função de um conflito similar não superado. Seu sofrimento com seus pais aumentou seus impulsos agressivo-destrutivos, que encontraram seu depositário na filha do casal. Assim como a paciente/esposa não tinha um quarto na casa dos pais no sentido concreto, também a filha do casal não o tem no sentido psicológico. Conquanto a mãe tivesse dito que o nome da filha significava aquela que traz luz, isso não se confirmou na literatura mitológica. Talvez ela desconheça o fim trágico da personagem, mas talvez a escolha do nome da filha possa ter raízes inconscientes e racionalizar seus impulsos agressivos dirigidos à garota. Além disso, de modo bastante parecido com as vivências de seu pai –acusado de usar maconha – e de sua mãe – acusada de mau comportamento sexual – sua filha se aproxima dos traficantes da cidade e seu comportamento sexual, em público, suscita os mesmos termos pejorativos, que sua mãe ouvia de sua mãe/avó da garota.

Nesse quesito, Berenstein e Puget (1993) abordam o par amparador-desamparado e os afetos da ordem da violência, irritação e hostilidade. Tendo-se em vista que marido e esposa foram salvadores um do outro, ambos foram amparadores do parceiro/desamparado, tendo depositado, em sua filha, violência, irritação e hostilidade.

Vale atentar para a questão da culpa bastante presente nessa família, pois o pai da garota foi culpado pela tia de usar maconha, fato que ele nega. Seu pai/avô da garota culpava a esposa pela perda de objetos ou por suas falhas, de modo que ela saía à procura de um objeto perdido- não perdido, existente- não existente. Nessa trilha, ele se sente culpado com relação à filha, dizendo que ele é o único culpado pelos problemas dela e ela também se sente culpada por seus comportamentos sexuais e antissociais. Estes produzem desespero nos pais e sujeita todos à vergonha e à humilhação públicas.

Há, ainda, um paralelo entre os comportamentos da filha – que provocam sua expulsão da casa dos amigos dos pais e da escola, bem como a expulsão dos amigos dos pais de sua casa – e a história de vida de seus pais – quase expulsos da vida pelos pais. Dado o mecanismo da depositação de Pichon-Rivière (2009), o marido e a esposa foram os depositários do material psíquico traumático/depositado por seus respectivos pais/depositantes. Enquanto dupla, eles funcionam como depositantes e depositários entre si. Por sua vez, sua filha foi o depositário maciço desse material/depositado neles por seus pais/depositantes. Enquanto trio, todos atuam como depositantes e depositários dos conteúdos psíquicos de sua família/depositado.

Eles foram odiados, rejeitados, explorados e quase expulsos da vida por seus genitores. Com isso, se apresentam como sobreviventes e vencedores quanto a eles. Segundo o paciente, seu pai tinha inveja de seu sucesso e ódio dele. A princípio, a esposa parece representar a parte mais madura da dupla, mas, possivelmente, ela é a parte mais raivosa e perigosa entre eles. Essa hipótese se apoia, inclusive, no tipo de animal ostentado no carro do casal, dirigido por ela. Aparece em relevo seu estilo de fusão – ‘ele é tudo na minha vida’ – despertando a pergunta: qual é o seu espaço e o espaço da filha em sua vida? Ainda que ele pareça ser o membro menos maduro do casal, revela ser mais amoroso, mais poético, mais sentimental e mais cuidadoso do que ela no que se refere à filha – estando desesperado diante de seu sumiço. Seu estilo de fusão – ‘eu sou ela’ – parece ser mais maciço, mais primitivo e mais dependente da esposa do que ela dele. A confusão mental de ambos parece se estender aos traços e aos papeis masculino e feminino. A esse respeito, Bleger (1988) propõe que numa relação simbiótica ocorre a fusão de dois egos, a indiscriminação entre o eu e o não-eu e seus membros não têm existência própria. Desse modo, cada um deposita no outro, seus conteúdos psíquicos inconscientes.

Ao lado disso, seu sucesso financeiro parece se alicerçar no marido e pode ser creditado à parte de sua personalidade composta por um ego integrado, maduro e neurótico, ao passo que a outra parte remete ao núcleo aglutinado, imaturo e psicótico. Este núcleo aglutinado do marido se liga ao núcleo aglutinado da esposa, visando manter controlado e imobilizado o objeto aglutinado, que produz ansiedade catastrófica, primitiva e aterrorizante. Este objeto guarda suas vivências ‘enlouquecedoras’ junto a seus pais, depositado em sua filha (Bleger, 1988).

Além do mais, a família vive uma grande confusão entre o domínio público e o privado, dado que sua vida privada foi exposta numa rede social e se tornou parte da fofoca da cidade. Essa confusão começou com a fundação da família no país, quando o patriarca/avô paterno reunia a família para discutir as falhas e os erros de seus membros. A suposta união da família escondia a intrusão do patriarca na vida particular de seus membros e a perda dos limites entre os âmbitos privado e público de suas vidas. Aliás, a confusão entre nascimento e morte, igualmente, faz parte dessa família. Entretanto, o brasão, exposto num lugar de destaque na casa, pode significar o valor atribuído pelo marido a seus avôs, visto se identificar com eles e, talvez, possa significar seu orgulho de ser neto deles – apesar de sua mágoa de seus pais ‘duros e secos’ (Nóbrega, 2003).

No sistema das representações do casal, o trauma do absoluto se revela em: ser abandonado, desamparado, rejeitado, excluído, não-amado, sem lugar no mundo. Ser abandonado, desamparado e não-amado se associam às várias situações em que eles foram expostos a grandes riscos de morte, entre outras. Ser rejeitado e ser excluído se evidenciam nas vivências deles com seus pais e, mais especificamente, ser excluída se aplica à esposa que não tinha seu quarto na casa deles. Ainda que a etapa do contato com o casal não permita constatá-lo de forma evidente, sem lugar no mundo pode ser estendida a ambos, dada sua expulsão da vida por seus genitores. Quanto às representações paradoxais do casal, vale destacar: ser incluído-ser excluído e, ainda, estar vivo-estar morto. As primeiras se referem ao fato de eles serem incluídos como membros da família, mas serem excluídos dela, dada sua rejeição por seus pais. Por seu turno, estar vivo – na realidade material – e estar morto – na realidade psíquica – se ligam a ser sobrevivente. A intensa carga de ódio e horror ligada a essas representações do trauma do absoluto impede a realização do desejo do adulto. Dentre as representações autodepreciativas do casal, há: ser sobrevivente, ser desacreditado, ser expulso, ser invadido, ser explorado, ser explorador, dentre outras. Investidas de ódio, dificultam a realização do desejo de forma mais branda que as do absoluto. Em contraste, ser competente, persistente, determinado, bem-sucedido e vencedor constituem representações coerentes com seu desejo – em seus elementos mais essenciais. Investidas por amor favorecem a força do desejo do adulto (Almeida, 2003).

Este grupo de representações coerentes com seu desejo se aplica ao casal do ponto de vista de seu sucesso financeiro. Fica em aberto se elas fazem sentido no âmbito de suas realizações profissionais. Levando-se em consideração sua vida psíquica, as representações do trauma do absoluto e as representações autodepreciativas se associam a seu intenso sofrimento psíquico, que atravessa três gerações da família, no mínimo. Essa herança psíquica advém de seus pais/avós da garota, passa por seus pais até ser depositado na filha do casal.

Por fim, a interlocução entre os conceitos psicanalíticos e as hipóteses investigativas da autora permitiu entender melhor o caso clínico em questão.

Considerações finais

Há muito, os terapeutas de família sabem que a família constitui uma rede intrincada de relações, de modo que sua queixa a respeito de um membro, na verdade, revela questões mal elaboradas de todos os demais. Em comum com as outras linhas de psicologia, a psicanálise trabalha com a questão do depósito mental de conteúdos em um membro da família. Desse modo, as várias abordagens da psicologia podem auxiliar a família diante de seu sofrimento psíquico.

Na família em pauta, aparece em relevo a participação dos pais como depositantes de seu sofrimento e de sua destrutividade na filha do casal, que produz um circuito neurótico fechado, no qual o sofrimento psíquico de um se entrelaça ao sofrimento dos demais. Nesse sentido, uma intervenção psicológica é fundamental para elaborar esse sofrimento de natureza ancestral.

Faz-se mister esclarecer o título desse estudo em relação ao conjunto de conhecimentos levantados acerca do tema. As aspas aplicadas à palavra amor visam destacar que a ligação afetiva entre o casal não pode ser considerada como própria à ordem do amor. Porquanto, uma relação amorosa saudável implica a união entre duas subjetividades diferenciadas entre si e com desejos próprios, capazes de se amar, se encantar, se admirar e cuidar uma da outra, bem como interessadas em cultivar projetos de vida em comum.

Nesse sentido, é bastante interessante que o marido nomeie como paixão aquilo que sente pela esposa, visto que paixão significa uma forma de ligação afetiva intensa, ilusória e desorganizadora do eu. Em geral, a paixão constitui uma vivência típica da juventude e que sofre transformações a partir da convivência com o outro, no cotidiano e no plano do real. Nesse sentido, dado que ele ainda sente pela esposa a mesma paixão experimentada pela primeira vez, ele não se relaciona com ela como pessoa real, mas com sua imagem idealizada – como defesa contra os terrores vividos junto a seus pais. Além disso, a paixão exclui qualquer tom de agressividade voltado a seu objeto, de forma que seus impulsos agressivos convergem para sua filha e para ele.

Por fim, conquanto páthos remeta à paixão e a sofrimento – notórios nesse trio – igualmente, remete à passagem. Sendo assim, o trabalho analítico fornece esse cenário de passagem e de transformação por meio da palavra, produzindo mudanças psíquicas no sujeito em face de seu sofrimento transgeracional.

Referências

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Willi, J. (1985). La pareja humana: relación y conflicto. Madrid: Morata.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 24/02/2021
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