O sistema representacional: sua formação na família e suas mudanças na análise

Introdução

Esse estudo visa discutir a relação entre a formação das representações e afetos do sujeito em sua família – com seus traumas – o sistema das representações e a mudança desses conteúdos numa análise. A análise permite a mudança de representações autodepreciativas do sujeito – ser estúpido, ser incompetente, ser desvalorizado – para representações coerentes com seu desejo – ser inteligente, ser competente, ter valor – que permitem a realização de seu desejo (Almeida, 2005). O método clínico psicanalítico permite as mudanças de suas representações e afetos no sistema das representações. Conceitos psicanalíticos e constructos hipotéticos da autora – desejo e sistema representacional – permitem pensar essas questões.

Classicamente, a constituição do sujeito é articulada aos princípios do prazer e da realidade (Freud, 1911), ao narcisismo (Freud, 1914), ao desamparo (Freud, 1923), à identificação e à escolha do objeto (Freud, 1923).

Na perspectiva proposta pela autora, a constituição do sujeito é articulada à sua identificação com os objetos primários e ancestrais, bem como às representações e aos afetos do desejo no sistema das representações – conforme o approach transgeracional. Representantes desse enfoque, Eiguer (1997) e Kaës (1998) investigam a transmissão da vida psíquica entre as gerações, os efeitos desorganizadores do trauma sobre a capacidade da psique de representá-los, as criptas, os segredos, as pragas, os ideais do eu, a vergonha, a culpa, entre outros.

Tendo-se por horizonte o valor central da investigação da psique para o campo teórico-clínico da psicanálise, passa-se a abordar algumas propostas da autora.

O desejo e o sistema das representações

Para pensar as referidas questões, recorre-se a dois constructos hipotéticos relevantes ad hoc: o desejo e o sistema das representações.

O desejo constitui-se como um amplo espectro de representações e de afetos, que organiza o conjunto de forças psíquicas. Em princípio, ele promove movimentos psíquicos em direção aos seus alvos de satisfação até se realizar no mundo. Em contrapartida, os bloqueios na satisfação do desejo se devem a sua fixação em certas representações e afetos, que limitam sua realização no mundo. O desejo singular do sujeito e o desejo de seus pais e ancestrais se associam ao material psíquico, que circula na família. Assim, vivências parentais e ancestrais marcam o desejo do sujeito. As representações e os afetos ligados às suas vivências junto às figuras primárias, que atendem seus impulsos e seu desejo, fazem parte de seu sistema representacional (Almeida, 2003; 2005; 2016).

O sistema das representações constitui um dispositivo psíquico do sujeito virtualmente capaz de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar as vivências do sujeito não se desenvolve de per si. Interliga-se aos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se submete ao seu desejo. A partir disso, a criança pode ser designada conscientemente por seus pais como: inteligente ou burra, flor ou verme, especial ou insignificante. Estas representações se juntam às projeções inconscientes de seus pais sobre ela.

Há diferentes estratos psíquicos nesse sistema. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações e os afetos. Suas representações inconscientes – associadas às projeções inconscientes dos pais – se fixam em seus estratos inconscientes, enquanto as representações conscientes se fixam no estrato consciente do sistema. Desse modo, conquanto a criança possa ser hábil e esperta – na esfera das habilidades manuais – ela pode se sentir, se representar e se comportar aquém de sua capacidade, devido às representações introjetadas por ela – pateta e mão furada – com sua carga de ódio. Vetores dessa trama, seus pais disseminam material psíquico advindo de seus próprios genitores. Essa cadeia psíquica de sentidos se deve à identificação, que permeia as gerações da família – visto que o Édipo parental conforma o Édipo da criança (Almeida, 2003; Almeida, 2005; 2016).

Quanto a isso, Freud (1900) pontua a transmissão inconsciente por identificação com o objeto ou com o desejo do objeto. A transmissão psíquica abarca a relação do sujeito com sua herança psíquica, social, religiosa e cultural, bem como o contato com seu Édipo. Igualmente, Kaës (2001) aponta a identificação como o processo maior de transmissão da vida psíquica na família – em suas gerações.

Ainda de acordo com Kaës (2016), na família, as alianças inconscientes são uma das principais formações da realidade psíquica. Elas estruturam a vida psíquica, sendo destinadas a produzir material inconsciente e a permanecerem inconscientes em cada sujeito. Em sua dupla face, por um lado, elas organizam a consistência das relações, que entrelaçam diversos sujeitos; por outro, elas são a base dos conteúdos que cada sujeito deve reprimir, negar ou rejeitar. Logo, em sua vertente estruturante, podem dar suporte aos processos secundários, porém, sob o predomínio de sua vertente alienante, formam importante obstáculo ao pensamento. Nesse âmbito, são também organizações defensivas patogênicas, que implicam sintomas compartilhados.

Nessa constituição inicial do sujeito, seu sistema representacional funciona de modo bastante rudimentar. Sob tal circunstância, seu sistema se subordina aos sistemas dos objetos primários. Por conseguinte, o sujeito se representa e se investe de amor ou de ódio, em grande medida, como é representado e investido por eles. Tendo em vista que seu sistema das representações assim se organiza, a criança pode sofrer perdas em seu valor narcísico – à medida que seus pais a desvalorizam – e se investir de ódio.

Quando adulta, há dois tipos de ‘hipoteca’ de seu valor ao valor dos objetos – posteriores aos objetos primários – no sistema. Esses dois tipos de hipoteca do eu ao outro são: a dispersão do valor do sujeito em vários objetos – dada a projeção de seu valor neles – e a concentração maciça de seu valor num único objeto – idealizado. A dispersão do valor do sujeito em vários objetos/reproduções de si revela-se na seguinte frase: ‘queria que tivesse sete bilhões de pessoas como eu’. Nesse paciente, seu valor narcísico aparentemente exaltado encobre sua solidão e sua dificuldade de vínculos com os objetos – quando adulto. Essa frase remete à sua imensa dor de se sentir abandonado, desamparado e desvalorizado por seu pai – quando criança. Esse adulto afirma que seu sofrimento vai se estender para sempre e ao infinito. Em contrapartida, a concentração maciça do valor narcísico do sujeito em um objeto idealizado interliga-se à intensa repressão de seu desejo. Isso propicia que representações e afetos coerentes com seu desejo sejam projetados naquele objeto.

Essas ideias dialogam com as formulações de Freud (1914) quanto à identificação, à escolha objetal e ao ideal do eu. Segundo ele, os objetos de amor do sujeito são escolhidos conforme sua imagem e a imagem de seus pais – pela via do narcisismo. Ele aponta que o eu ideal é a imagem do eu dotada de todas as perfeições. Essa imagem idealizada é construída pelos pais, que se projetam no filho. Quando adulto, o narcisismo do objeto exerce fascínio sobre ele, que renunciou à parte de seu narcisismo e busca o amor do objeto. E, ainda, Freud (1921) assevera que no fascínio, o objeto é mantido dentro do sujeito, à custa do ego empobrecido. O objeto é supervalorizado pelo sujeito, entregue à ilusória encarnação de seu ideal naquele objeto. A paixão amorosa resvala para o empobrecimento do eu, fascinado pelo objeto idealizado. Quanto mais ele é idealizado, mais o sujeito fica fascinado por ele.

O sistema das representações – enquanto dispositivo psíquico com possibilidades finitas de representar o sofrimento psíquico frente aos traumas – tende ao equilíbrio ou ao colapso. Seu equilíbrio se articula à fundação amorosa do sujeito nos vínculos iniciais – com riqueza de amor, criatividade e vitalidade. Seu colapso liga-se ao deserto afetivo vivido pelo sujeito nesses vínculos – com pobreza de amor, criatividade e vitalidade. Nesse caso, o sistema tende ao colapso no sentido de sua incapacidade de representar o trauma e de sua fixação aos conteúdos do trauma – dentre eles, as perdas e as catástrofes da família. Assim sendo, o desejo do sujeito sofre o impacto da violência dos traumas familiares que desorganizam o sistema.

Nas gradações intermediárias entre o equilíbrio e o colapso do sistema, diferentes quantuns de amor ou de ódio e, ainda, maior ou menor força construtiva ou destrutiva – dada a desertificação afetiva – atuam sobre ele.

Sob o impacto dos traumas que perpassam sua família, o sistema representacional do sujeito favorece a repressão de aspectos fundamentais de seu desejo – ser amado, ser autônomo, ser autêntico, ser verdadeiro, p.ex. Em sua infância, essa repressão pode ocorrer devido ao seu desejo de ser amado pelos objetos primários que, não raro, demanda ser submisso ao desejo deles. Esse processo atua em detrimento do exercício potente de seu desejo quando adulto – em seus fundamentos mais básicos. Nessa esteira, esse adulto desvia o amor a si e seu valor para o objeto idealizado.

Apresentadas essas primeiras ideias sobre o desejo, os traumas e o sistema representacional, faz-se mister situá-los com relação a alguns conceitos psicanalíticos.

Na história das ideias psicanalíticas, o conceito de desejo é muito importante. Esse percurso se inicia com Freud (1915a), que aborda os impulsos carregados de desejo e continua com Lacan (1998), que o torna fundamental em sua obra. Além disso, reside na teoria de Herrmann (2001), segundo a qual o desejo constitui a matriz interna das emoções e a identidade consiste na representação do desejo.

No tocante ao trauma, Freud (1905) o concebeu como uma excitação não descarregada e ligada ao enfoque econômico. Sob o prisma da metapsicologia freudiana, o trauma tem natureza sexual e está centrado no Complexo de Édipo. Por sua vez, a presente proposta de que os traumas atingem a capacidade representativa do sistema dialoga com conceitos de Eiguer (1997) e Kaës (1998) acerca dos efeitos nefastos do trauma sobre a capacidade da psique de representá-los. Ademais, conversa com ideias de Green (1998) quanto às falhas da atividade representativa – dadas a conhecer adiante.

Esse sistema faz parte do ego, à medida que este é responsável pelo trabalho psíquico com as representações. No tocante a isso, Zimerman (2013) afirma que Freud definiu o ego como um conjunto de funções e de representações psíquicas. De acordo com ele, vários autores atuais sintetizam as produções do mestre sobre ele como: o ego-função e o ego-representação. Ilustrando essas ideias:

Desde seus primórdios, a representação adquiriu grande relevância na literatura psicanalítica. Em sua trajetória conceitual, Freud (1895) distingue a representação patogênica da quantidade de afeto – na neurose. Em seus artigos metapsicológicos, Freud (1915a; 1915b) discrimina a representação de coisa – cuja inscrição é inconsciente – e a representação de palavra – de natureza pré-consciente-consciente. Além disso, considera que o representante pulsional consiste em uma representação carregada por uma cota definida de energia psíquica ou de afeto. Em 1923, propõe que as representações se originam da percepção-consciência associada ao ego.

Outros autores têm contribuído para o desenvolvimento da teoria psicanalítica da representação – de amplo espectro e com grande densidade teórica e clínica.

Para Green (1988), o psiquismo é constituído de processos e forças afetivas, que nem sempre podem ser representados pela linguagem. Esta faz parte de uma teoria geral da representação, à medida que o trabalho psíquico procura caminhos para representar territórios irrepresentáveis: o soma e o real. Ainda segundo Green (1998), a clínica psicanalítica remete às falhas da atividade representativa, à paralisia da capacidade de análise e à influência do irrepresentável. Estes compõem os desafios da clínica psicanalítica contemporânea. Em sua teoria dos campos, Herrmann (2001) advoga que a identidade consiste na representação do desejo e que a realidade constitui a representação do real.

Retomando a questão das falhas representativas do sistema, elas se articulam ao pensamento de Green (1998) sobre os conteúdos psíquicos irrepresentáveis.

Em síntese, a temática da representação em psicanálise tem atravessado o pensamento de vários teóricos, por meio dos quais tem se diferenciado e se ampliado.

Em meio a essas referências basilares em psicanálise, as referidas hipóteses investigativas foram desenvolvidas frente à demanda teórico-prática da clínica da autora – sobre a transmissão da vida psíquica na família. Posto isso, as formulações da autora sobre os tipos de representação e de afeto, bem como sobre seus processos operacionais e os estratos do sistema podem contribuir para a teoria psicanalítica, suprindo brechas nesses campos do conhecimento psicanalítico.

O sistema representacional, suas representações e afetos

De antemão, cabe esclarecer que as representações, apresentadas nessa seção, foram coletadas a partir da clínica da autora, em constante diálogo com a riqueza da teoria e da prática psicanalíticas.

Dentre as representações do sistema, há as representações do sujeito, do objeto e do mundo, bem como os afetos investidos nelas – amor, ódio, medo, terror, entre outros.

No sistema, há vários tipos de representações do sujeito. As representações coerentes com seu desejo – ser inteligente, ser competente, ter valor, entre outras – são investidas por amor e favorecem a realização de seu desejo, em seus aspectos mais fundamentais. Suas representações autodepreciativas – ser estúpido, ser incompetente, ser desvalorizado, entre outras – são investidas por ódio e dificultam satisfazer seu desejo no mundo, quando adulto. Suas representações incluem, igualmente, a imagem de si ou o valor que ele atribui a si mesmo, junto aos objetos. Nessa clave afetiva, quanto mais o sujeito se desvaloriza – tal como foi desvalorizado por seus pais – tanto maior é o valor sequestrado de si e projetado no objeto idealizado. Em grande parte, suas representações se formaram na infância do sujeito junto aos seus pais. Sendo assim, seus processos inconscientes implicam investir esses objetos primários, de amor ou de ódio. A projeção desses conteúdos em outros objetos, por parte do adulto, tem consequências notórias em suas relações com eles e em seu sistema representacional (Almeida, 2003).

Nesse sistema, as representações do mundo compreendem as representações de tempo e espaço. No que tange às representações de espaço, depara-se com: eu não sou desse mundo, esse mundo não é para mim, me sinto sem lugar no mundo, caí, desmoronei. Dentre as representações do tempo das gerações, encontram-se: sofrer para sempre, por séculos, infinitamente (Almeida, 2005).

Igualmente, as duas representações do tempo – descritas a seguir – advêm da herança familiar patológica, que impede a realização do desejo de seus membros. Assim, no cascatear das gerações, há o tempo do quase e do nunca: espécie de fronteira das representações entre a realização e a proibição da realização do desejo do adulto.

Nessa fronteira, o tempo do quase marca a lacuna entre o passado – carregado de sofrimento e ódio − e o futuro – saturado de terror, que paralisa o desejo. O terror diante do futuro aparece na frase: ‘quando tudo cair, desabar, desmoronar’. O tempo do quase demarca, também, a divisa entre o presente – tempo da possibilidade de satisfazer seu desejo − e o futuro – tempo da impossibilidade de satisfazê-lo. Perpetuando o tempo do quase, o sujeito projeta representações sobreinvestidas de amor no objeto idealizado de seu desejo: ser magnífico, ser poderoso, ser tudo, ser o máximo, ser um deus, ser um déspota, entre outras. Em oposição a isso, seus atributos são desvalorizados por ele e investidos de ódio: ser desprezível, ser insignificante, ser nada, ser um zero, ser um verme, ser o escravo, p. ex. Além disso, como seu desejo é persecutório para o sujeito, ele se representa como totalmente incompetente para lidar com os encargos da realidade e, com isso, se impede de satisfazê-lo. Portanto, o tempo do quase o fixa aquém de suas possibilidades psíquicas na vida adulta (Almeida, 2016).

Na outra borda dessa trama, o tempo do nunca define a realização do desejo do sujeito como impossível e inatingível. Estas são representações da proibição da família contra a singularidade de seu desejo. Na família tradicional, a figura masculina tem se consolidado como objeto idealizado – ser poderoso, ser magnífico – à medida que sequestra aspectos do valor do sujeito adulto – ser potente, ser valorizado. Estas são representações essenciais para que ele realize seu desejo no mundo, que precisam se integrar às suas características, talentos e potencialidades. Contudo, sua projeção engrandecedora no objeto idealizado impede o sujeito de integrá-las ao sistema (Almeida, 2016).

O objeto idealizado-persecutório é depositário dessa brecha temporal do sujeito entre o quase e o nunca. Ele se torna idealizado, ao encarnar os ideais e os valores supremos do sujeito. Por outro lado, torna-se persecutório mediante a projeção desses conteúdos do sujeito, nele. Porquanto, essa projeção priva o sujeito de suas capacidades e recursos psíquicos, sendo que eles não podem ser integrados, como seus, no sistema das representações (Almeida, 2016).

As representações paradoxais das relações sujeito-objeto também compõem o sistema das representações: desmoronar como sujeito, para elevar seu objeto de amor. Ademais, outras representações paradoxais se desvelam quando o tudo vira nada, o ganho transforma-se em perda, o cheio reverte ao vazio e a inclusão torna-se exclusão. Dada sua carga familiar patológica, situações de vida – intensamente desejadas pelo paciente – que geram ganho, inclusão e plenitude, não produzem representações investidas de amor – ser ganhador, ser incluído, ser pleno de bem estar, estar aliviado, estar alegre e ser feliz. Estas são cabíveis do ponto de vista racional e lógico, visto que as situações envolvem ganho, inclusão e plenitude. Todavia, sob o prisma do paciente, sobressaem ser perdedor, ser excluído, ser vazio de bem-estar, estar insatisfeito e estados mentais similares – perda, exclusão e vazio – investidas de ódio. Assim, à escuta do analista, se revelam tais junções de representações antagônicas entre si. Estranhas à razão e à lógica, elas retratam uma forma de compreensão profundamente contraditória de uma situação, que deixa o paciente sem saída (Almeida, 2003).

Essas ideias da autora partiram da formulação de Racamier (1994) sobre o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas proposições, de modo indissociável. Ele deriva de uma agressão ao eu, que suscita forte ódio no sujeito.

Outras representações podem fazer parte desse sistema: aquelas do mal-dito. Elas evocam as pragas proferidas pelo ascendente, à medida que seu desejo é contestado e seu poder é confrontado pelo descendente. Assim, ‘quando você tiver filhos, vai sofrer o dobro do que tô sofrendo com você’ é um mal-dito, expresso nas relações familiares. De acordo com Eiguer (1997), o ‘mal-dito’ é a maldição proferida pelo ancestral, a palavra mal-dita e sem estatuto de palavra, que atua no inconsciente.

O sistema e sua relação com as perdas e as catástrofes vividas pelo sujeito

Dada sua fundação intersubjetiva nos objetos primários, o sujeito pode ser avassalado por vivências traumáticas de perda e catástrofe – próprias de sua família. Elas diminuem a capacidade representativa do sistema de elaborar seu sofrimento psíquico, gerando certas representações e afetos.

Há vários tipos de perdas traumáticas na vida humana, sendo que elas atingem, em algum momento, uma família. Suas representações – ser perdedor, estar perdido – se relacionam com algumas representações de espaço, mais especificamente, com representações de queda no espaço. Dessa forma, as perdas abruptas de objetos amados são vividas pelo sujeito como quedas vertiginosas. Nesse campo, ‘meu mundo caiu’ é uma representação de queda no espaço – diante da catastrófica perda do objeto amado. Por sua vez, ‘caí de quatro’ – representação de deslocamento para baixo no espaço, como um animal – surge ante seu abandono e menosprezo pelo objeto de amor. A representação de queda pode designar, outrossim, a perda penosa de seu espaço no mundo. Assim, ‘cair na vida’ designa uma queda moral ou financeira do sujeito. Em suma, a representação espacial de queda surge nas perdas do objeto amado e de posições pessoais valorizadas, nos dramas pessoais, nos amores não correspondidos, nas traições aos seus sentimentos mais nobres. Elas revelam distúrbios no espaço do sujeito, junto ao outro.

Por sua vez, as catástrofes que se abatem sobre o sujeito e sua família remetem às forças imperiosas da natureza, à violência de pessoas significativas contra ele e, inclusive, às suas forças psíquicas violentas contra elas. Portanto, esses traumas promovem consideráveis alterações em seu sistema representacional.

Com relação a essas alterações, surgem falhas em sua função representativa. No tocante a esse ponto, Nicolaidis (1989) aponta o fracasso da representação em atenuar uma lembrança traumática e que certa lembrança se torna traumática, por ser irrepresentável. Numa depressão, seus conteúdos e o ódio – presente nela – não podiam ser ligados às representações, constituindo um deserto significante.

Esses conceitos do autor se articulam aos conceitos de Green (1998) sobre falhas na atividade representativa e tem consonância com a ideia da autora de falência do sistema representacional – em virtude dos traumas.

Tais conceitos permitem entender o caso clínico, apresentado a seguir.

O método clínico psicanalítico e o sistema das representações na clínica O método clínico psicanalítico – com base nas associações livres do paciente e na atenção flutuante do analista – favorece o contato com o inconsciente daquele em seu statu nascendi. Nesse sentido, a presente história clínica ilustra algumas questões levantadas anteriormente.

A utilização do itálico visa chamar a atenção para suas representações e o recurso das aspas simples põe em destaque o discurso da paciente na análise. O uso de travessões visa tornar mais claro o presente relato.

A paciente nasceu em meio às duas famílias de seu pai. Do primeiro casamento de seu progenitor, nasceram dez filhos. A caçula dessa primeira família perguntou a ela: porque você nasceu? Em resposta a isso, diz: ‘me enterrei no porão da casa – lugar dos mortos − e passei a catar grãos’.

Fruto do segundo casamento de seu pai, ela era a mais velha dentre os irmãos. Seus pais desejavam um filho, tendo a nomeado com um nome masculino invertido. Então, seu pai fez dela a(o) companheira(o) em atividades masculinas. Ela ia com ele ao mato, não podendo ter medo de animais perigosos. Atualmente, ela assume a raiva dele quanto a essas demandas e diz: ‘eu não devia estar ali’. Em meio a isso, quando ela tinha nove anos, seu pai teve angina e um acidente vascular cerebral. Assim, quando o coração dele ‘parava’, o dela também ‘parava’− dado seu medo que ele morresse. Em contrapartida, seu desejo de que ele morresse produzia-lhe muita culpa. Dos dez aos catorze anos, ela foi a muleta dele e cobriu suas faltas. Desse modo, ela não pôde vivenciar os sentimentos e os pensamentos da menina. Para aliviar a dor de seu pai e evitar o sofrimento dos irmãos nesse período, ela se matou como sujeito e como mulher.

Na entrada da adolescência, seu pai morreu. Sua mãe chorava muito e desmaiava frequentemente, após essa perda. Então, a paciente passou a cobrir as faltas e as perdas de sua mãe − que cuidava do bebê. Reprimindo-se como jovem mulher, cuidou dela como uma irmã-marido e tornou-se a mãe dos irmãos-filhos. Num ato falho, ela inseriu sua mãe entre seus irmãos. Por fim, quando ela disse para sua mãe que ‘não aguentava mais’ essa sobrecarga, ouviu dela: ‘quando seu marido morrer, você vai sofrer muito...’

Na época do casamento da paciente, sua mãe apaixonou-se por um homem mais jovem e vendeu vários bens da família – para ajudá-lo em seus projetos. Sobraram novas perdas para a paciente e o restante da família. Em meio a isso, seu sogro lhe disse: ‘você vai sofrer muito com seu marido’. Todavia, quando casada, adquiriu certa autonomia com relação a ele. Em seu estado de origem, ‘levantei uma instituição de ensino e ergui meu marido, ao passo que caí e desmoronei’. Foi, ainda, a diretora de uma instituição religiosa, tendo projetos de vida próprios – nessa época.

Quando ela se mudou para outro estado junto com o marido, desconsiderou seus projetos de vida e privilegiou os dele. Com isso, ela retornou a um ano anterior em sua graduação. Sua perda-queda com essa mudança aparece em: ‘quando caí na turma dois’, ‘quando caí no segundo ano’. Em meio a isso, ela se sentia sobrecarregada com incontáveis tarefas – esposa, mãe, aluna, dona de casa e coordenadora numa igreja – não sendo reconhecida pelo marido. Sacrificava-se, desejando ser a dona de casa perfeita e mãe-mão de obra útil – para ser amada, valorizada e reconhecida por ele. Com isso, pôs em perigo sua saúde. Por um lado, ela se submetia ao poder dele; por outro, ela o atormentava. Como uma criança dependente e birrenta, ela o torturava, até que ele lhe proporcionasse algum conforto material e pequenas regalias. Porém, ela perdia crédito junto a ele, ao ameaçá-lo e não cumprir as ameaças. Nesse contexto, em um ato falho, ela substituiu o ‘tempo duro’ de sofrimento com seu marido por ‘tempo bom’.

Suas reiteradas crises com o marido produziam, nela, o desejo de morrer. Quanto a isso, ela referiu que: ‘meu marido morreu também’. Um forte montante de raiva – antes oculto nela – emergiu nesse momento de sua análise. Nessa conjuntura, ela falava ‘a gente’ ao invés de falar ‘eu’ e ocultava o ‘me’ – em suas frases. Nesse conflito, ela repetiu algumas vezes: ‘tudo cai na minha cabeça, desmorona, desaba, fico sem saída’.

Além disso, ela afirmava ser desprezível, insignificante, descontrolada e louca. Enquanto ela se desvalorizava em ‘sou ninguém, sou nada, tenho nada, é impossível me realizar’, exaltava seus irmãos: ‘eles são sucesso financeiro’. E, ainda, dizia: ‘sou desgraçada’. Contudo, teve a graça de ser ajudada por um irmão, quando passou por uma grande dificuldade financeira. Sua graça foi receber o retorno do afeto por parte desse irmão, do qual cuidou quando criança. Ademais, ela tem a graça da palavra que afaga, aconchega e une a família – e outras pessoas – em suas relações atuais.

Nessa ocasião, surgiram duas cenas catastróficas – em sua mente. Numa, ela se viu presa a um poste por correntes, tal como uma escrava; noutra cena, ela era prisioneira junto às estacas de uma barraca. Essas cenas parecem se associar a ser coisa: sem consciência de si como sujeito e sem desejo quanto a prazer pessoal.

Com a análise, ela se posiciona de um modo novo, junto ao marido. Realiza, em ato, aquilo que se propusera a fazer e fala em ‘eu’ ao conversar com ele. Contudo, ao tentar realizar seus projetos de vida, ela é boicotada por ele – inclusive por meio do controle do dinheiro. Então, ela se afasta dele ou não fala com ele, sem encontrar outras possibilidades de lidar com isso. Pergunta-se: ‘quem sou eu’ e ‘o que faço nessa relação?’ Apesar disso, diante dos líderes da instituição religiosa em que trabalha, ela fala em ‘eu’ – ao propor alguns limites para suas tarefas e argumenta, sem criticá-los. Contudo, paradoxalmente, diz ser louca e descontrolada; portanto, se desqualifica perante eles.

Nesse período de sua análise, outras representações e afetos foram surgindo nas sessões: ser senhora de seu desejo, ser livre, ser inteligente, ser lúcida e ser sensível – investidas por amor. Sendo assim, elas dialogaram com as representações e afetos do início do trabalho analítico, abrandando seu sofrimento psíquico.

Discussão

Nesta seção, examina-se a relação entre a formação das representações e afetos do sujeito em sua família – com seus traumas – o sistema das representações e a mudança desses conteúdos numa análise. Quanto a isso, o recurso metodológico do itálico visa destacar as representações da paciente e suas mudanças ao longo da análise.

Dada sua herança psíquica familiar, o sistema representacional da paciente foi alterado por várias perdas traumáticas ao longo de sua vida e por sua identificação traumática com o desejo parental − ser homem para seus pais, ser o companheiro de seu pai e ser o marido-irmã de sua mãe. Ademais, coube-lhe ser a mãe-irmã de seus filhos- irmãos. Para cobrir essas faltas de seus objetos de amor, coube-lhe reprimir facetas importantes de seu desejo como sujeito e como mulher.

Num estágio intermediário entre o equilíbrio e o colapso do sistema, suas crises sinalizavam suas tentativas de emergir como sujeito e como mulher. Visavam resgatar aspectos psíquicos imprescindíveis para ela realizar seu desejo, até então projetados no marido. Porém, nessa trajetória de reconquista de seu eu, à medida que seu marido se elevava, ela desmoronava; quando ela se elevava, ele desmoronava. A esse respeito, retoma-se Racamier (1994) que investigou os paradoxos mentais. Essa formação psíquica liga duas proposições opostas, de maneira indissociável. Ele advém de uma agressão ao eu, que suscita forte ódio no sujeito e o paralisa mentalmente.

Nessa paciente, o sujeito em queda – desmoronei, caí – e o mundo em queda – ‘tudo cai na minha cabeça, desmorona, desaba, fico sem saída’– configuram representações espaciais de si no mundo. Essas representações de queda se ligam às suas perdas amorosas, dado o deslocamento de seu amor e valor narcísico para amor e valor de seu marido/objeto tanto idealizado quanto persecutório. Essas perdas – no investimento de amor e de valor em si mesma – sequestram de si as representações de seus dons, talentos e capacidades, retomando as distorções de si como sujeito e como mulher, desde sua infância. Elas se radicaram, há muito, nos recessos de seu sistema representacional (Almeida, 2016).

No plano das representações do sistema, ser escrava e ser prisioneira a posicionavam numa categoria de menor valor como ser humano. Ser muleta remetia a carregar um peso maior do que ela podia carregar e a ser coisa, interligada a ser escrava. Ser ninguém, ser nada e ter nada ocultavam que, para ela, ser alguém era ser cuidadora do outro e ser endinheirada. Ser desprezível e ser insignificante se associavam a ser louca e a ser descontrolada. Contudo, ser louca encobria seu medo de assumir seu desejo como sujeito e como mulher. São representações autodepreciativas investidas por ódio, que dificultavam realizar seu desejo no mundo – quando adulta (Almeida, 2005).

Com a análise, apareceram representações coerentes com seu desejo e investidas por amor – ser competente, ser útil e ser perfeita – que propiciavam realizar seu desejo. Contudo, essas representações de seu valor subordinavam-se ao valor que seu marido deveria reconhecer nela. Sendo assim, ser competente, ser útil e ser perfeita visavam ser amada e ser valorizada por ele. Ser útil a colocava na condição de ser instrumento para satisfazer o desejo dele. Ser perfeita encobria ser sacrificada para ser amada por ele. Não obstante ser competente e ser autossustentada – em seu estado de origem – constituírem representações de seu eu, ser dependente e ser suporte do marido prevaleceram no novo estado do país.

Outras representações coerentes com seu desejo tiveram origem em sua identificação com o objeto primário/pai. Ser apaziguadora, ser organizada e ser a guardiã – da ordem familiar – a apontam. Em consequência disso, ela se sobrecarregava ao visar satisfazer o desejo dos objetos e agradá-los – ao pai e ao marido. Aquelas representações ilustravam a armadilha mental de ela por em primeiro plano o desejo dos objetos, escondendo o seu. Abdicava, assim, de ser sujeito-mulher.

Nessa linha identificatória, sua identificação com a caçula da primeira família de seu pai produziu estar morta/enterrar-se no porão. Sua identificação com sua mãe implicou estar morta, ter um marido morto e sofrer com ele. Assim, por um lado, suas crises constituíam tentativas de emergir como sujeito e como mulher, por outro, evocavam seu desejo de morrer. Ao lado disso, suas sensações de cair e desmoronar remetiam a desmaiar, dada sua identificação com sua mãe. Logo, ser forte cabia ao homem e ser fraca cabia à mulher. Por sua vez, estar viva implicava ser homem ou viver para um homem. No tocante a isso, Freud (1900) pontua a transmissão inconsciente por identificação com o objeto ou com o desejo do objeto. Também, Käes (2001) designa a identificação como o processo mais importante da transmissão da vida psíquica na família.

Nas frases da paciente, ‘por mais que faça’ e ‘por mais que a gente faça’, o pronome ‘eu’ era elidido por ela e seu eu estava escondido. Esta supressão de seu eu remetia à sua identificação com o eu de seus vários objetos – ‘a gente’. Esse processo se ligava a ser esforçada e a ser sacrificada para ser valorizada pelos objetos amados.

Desde sua família de origem até a família de seu marido, sua dupla herança foi de sofrimento na relação com seu cônjuge. Sua mãe rogou-lhe uma praga, quando ela/filha tentou tirá-la da posição de irmã-esposa: ‘quando seu marido morrer, você vai sofrer muito...’ Seu sogro tentou protegê-la de seu próprio filho, por meio de um aviso-prognóstico: ‘você vai sofrer muito com seu marido’. Na praga de sua mãe, ela sofreria sem ele e no aviso de seu sogro, sofreria com ele. Fixada entre essas profecias, ela vivia um paradoxo sem saída.

No que concerne a isso, Racamier (1994) define o paradoxo como a formação psíquica, que liga duas proposições opostas, de modo indissociável. Deriva de uma agressão ao eu, que suscita forte ódio no sujeito e o paralisa. Essa herança familiar destrutiva se somou à força destrutiva das pragas familiares. Assim, Eiguer (1997) aborda o ‘maldito’ como a maldição do ancestral e como palavra maldita, sem estatuto de palavra, que atua no inconsciente.

Premida entre a praga e a suposta proteção de seus familiares, que a restringiam como sujeito e como mulher, ser sofredora – junto ao seu cônjuge – fixou-se em seu sistema representacional. Isso envolvia as representações paradoxais dessa relação: ao erguê-lo, seu eu desmoronava. Sinalizavam que seu retrocesso pessoal e profissional ligava-se ao progresso pessoal e profissional dele e vice-versa. Destarte, a realização de seu desejo se situava entre o tempo do quase e do nunca. O tempo do quase a aprisionava entre o passado – carregado de sofrimento e ódio − e o futuro – saturado de terror, que paralisava seu desejo. Seu terror diante do futuro aparecia na frase: ‘quando tudo cair, desabar, desmoronar’. Perpetuando o quase, ela projetava representações sobre-investidas de amor no objeto idealizado/marido: ser poderoso, ser o máximo, ser um déspota, entre outras. Em contraste com isso, seus atributos eram desvalorizados e investidos de ódio: ser desprezível, ser insignificante, ser a escrava, ser a coisa, p. ex. Por sua vez, o tempo do nunca define a realização do desejo da paciente como impossível e inatingível (Almeida, 2016).

Quanto a esses processos, Kaës (2016) pontua que eles são formados em virtude das alianças inconscientes, enquanto base dos conteúdos que cada sujeito do grupo deve reprimir, negar ou rejeitar. Parecem apontar o predomínio de sua vertente alienante, importante obstáculo ao pensamento. Nesse âmbito, funcionam como organizações defensivas patogênicas, que implicam sintomas compartilhados entre seus membros.

Não obstante seus recuos, os avanços na capacidade representativa do sistema se fizeram presentes em sua análise. Ser desgraçada foi contraposta a ter a graça da palavra benfazeja e do cuidado ao outro. Ser senhora de seu desejo se contrapôs a ser escrava e ser livre suplantou ser escrava. Ser inteligente, ser lúcida e ser sensível se opuseram a ser louca e a ser descontrolada, em suas crises. Nesse contexto, o investimento de amor nessas representações se contrapôs ao de ódio nas anteriores.

Com a análise, ela adquiriu certo equilíbrio quanto ao impasse entre seu próprio desejo e o do objeto idealizado, revendo o valor de ser homem e de ser mulher. Contudo, ela precisa resgatar outros sentimentos, sensações e pensamentos da menina traumatizada por perdas e identificações nocivas para seu eu. Desse modo, sua posição de sujeito-mulher poderia superar a de objeto-menina do desejo de seus pais. Entretanto, sua parada na análise dificultou seu desenvolvimento.

A despeito disso, a análise permitiu a mudança de representações autodepreciativas da paciente – ser desprezível, ser insignificante, ser a escrava, ser coisa, ser louca, ser incompetente, ser desvalorizada – para representações coerentes com seu desejo – ser senhora, ser inteligente, ser lúcida, ser sensível, ser competente, ter valor – que permitem a realização de seu desejo no mundo (Almeida, 2005).

Considerações finais

A produção de representações e afetos no sistema das representações, que atuaram na construção do desejo da paciente, se deu a partir de sua relação familiar. Seus objetos primários foram fundamentais nesse processo, de raízes transgeracionais. Eles transmitiram desejos, mal-ditos e paradoxos que repercutiram sobre o desejo dela. Sua identificação com o desejo parental respondeu à confusão entre desejos na família. Esses processos dificultaram a realização de seu desejo em sua singularidade.

Em seu sistema representacional, a princípio, prevaleciam suas representações autodepreciativas com seu aporte de ódio. Por sua vez, aquelas representações coerentes com seu desejo – com seu quantum de amor – estavam submetidas ao desejo de seus objetos. Dessa maneira, a efetivação de seu desejo no mundo situava-se num tempo entre o quase e o nunca. Assim como no caso dessas representações de tempo, suas representações de espaço estavam alteradas. Além disso, suas representações paradoxais na relação com a mãe e o sogro convergiram para o paradoxo vivido com o marido/objeto idealizado-persecutório. Seu discurso composto, em boa medida, por frases incompletas revelava seu drama: seu eu estava submetido ao do marido.

Esses processos colaboraram para a estase do sistema representacional, que fixou seu sofrimento psíquico. Apesar dessa paralisia, a mudança do sistema foi mobilizada pela análise. Esta permitiu realocar o foco das representações e dos afetos − dos objetos – para a paciente. No vértice de seus afetos, seu ódio às representações de si foi dando lugar ao amor. À medida que novas representações e afetos – condizentes com seu desejo mais genuíno – foram trazidos ao estrato consciente do sistema, sua integração foi se consolidando. Isso lhe facultou transformar a menina em mulher, visto que a menina foi objeto do desejo parental e a mulher pode ser sujeito de seu desejo. Ademais, cabe-lhe elaborar a primazia do desejo/valor masculino em direção ao desejo/valor feminino. Seu foco no passado e no futuro precisa ser mobilizado para o presente, para que suas capacidades, suas realizações e seu orgulho de ser a si mesma sejam integrados por ela. Desse modo, seu desejo – em seus alicerces mais genuínos – pode ser vivido no mundo das relações renovadas com os demais.

Por fim, as hipóteses heurísticas sugeridas – desejo e sistema representacional, com seus conteúdos, seus processos, seus traumas e seus estratos – dialogam com o corpus teórico da psicanálise e podem preencher lacunas do conhecimento psicanalítico acerca desses aspectos, da mente humana e do sofrimento psíquico que ela pode abrigar. Ao lado disso, as limitações desse estudo demandam novos trabalhos que possam aprofundá-lo e/ou ampliá-lo.

Referências

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 21/01/2021
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