memórias
MEMÓRIAS
Sentado em uma pracinha de Goiânia, comendo um cachorro-quente na barraquinha, tive a certeza de que esta cidade é o Rio de Janeiro de antigamente. Aqui, o povo senta-se em uma praça pública despreocupadamente, sem que haja a presença ostensiva da polícia militar.
Recordei-me de que no Rio antigo, as pessoas sentavam-se à porta de suas residências para bater papo com os vizinhos. Ao lado da minha casa, no bairro do Estácio, morava um português que, sobretudo em noites quentes, trazia sua cadeira para calçada, portando com ele uma cerveja preta barriguda e um prato de tremoços. Em volta dele, reuniam-se outros moradores para ouvir suas histórias e provar da sua bebida. A certa altura, a conversa parava e a atenção de todos se voltava para a novela que era transmitida pelo rádio do patrício. Eram momentos de silêncio que a situação exigia.
Terminada a novela, após os comentários sobre o capítulo, a conversa se esvaziava e pedia uma boa noite de sono. Noite após noite, esse ritual se repetia numa gostosa e ansiosa espera por novas emoções no dia seguinte. O mundo parecia girar mais lentamente e as pessoas tinham tempo de se conhecer e de se querer bem. Amizades sinceras esses encontros proporcionavam.
A garotada vivia na rua. Futebol com bola de borracha ou de meia, era todo dia. Havia tempo de pipa, nos meses em que ventava mais. Nas festas juninas, era tempo de balões. Bola de gude sempre, toda noite. Balanço, só em volta do poste, improvisado com uma corda. Muitos doces na festa de Cosme e Damião. Frutas tiradas do pé. Jogo de botões roubados das capas de chuva e o goleiro feito de caixa de fósforos. A molecagem o máximo que se permitia era tocar as campainhas das casas e fugir correndo. Quanta alegria, quanta camaradagem, quanta energia e quanta inocência.
O Rio sempre foi sinônimo de Carnaval, mas não saíamos do bairro. Brincávamos na rodinha, uma calçada transformada em salão, onde cantávamos as marchinhas e as primeiras paqueras aconteciam. Pela manhã saía o bloco de sujo, com meninos fantasiados de mulher.
Nossa família morava numa casa incrível, com teto muito alto. Tinha vários quartos e um corredor totalmente fora de prumo, torto que nem ele. A casa parecia que ia desabar a qualquer momento. Durou muitos anos e só foi demolida, quando da construção do Metrô. Daquela casa, eu gostava de uma área interna onde tomava banho de borracha no verão e de um quintal com árvores frutíferas, que mais tarde meu tio Brandão ocupou com uma oficina.
Mudei-me dali e fui morar no Maracanã, depois de passar por uma casa de vila, no Estácio também. Fiz novos amigos e companheiros para assistir aos grandes jogos no maior Estádio do Mundo. Lá, tive a oportunidade e o privilégio de assistir a grandes craques como Pelé, Zizinho, Ademir, Garrincha, Nilton Santos, Puskas, Tostão, Coutinho, Rivelino, Zico e tantos outros. Qualquer clássico era uma desculpa para ir ao Maraca. Havia brigas, mas não havia tumulto nem criminalidade. Era o tempo do bonde, que retratava bem o jeito carioca de ser, sem pressa, meio desleixado com a aparência, fazendo piada dos seus problemas, um tanto leviano e despreocupado, porém divertido e alegre.
Era uma cidade linda e acolhedora. Centro da cultura e da Arte. Meta de turistas em direção a Copacabana, aos nossos hotéis e aos nossos casinos. Grandes atores do cinema americano e fantásticos cantores internacionais nos frequentavam e adoravam nossos hábitos, nosso samba, nosso calor e o nosso povo.
Hoje, o Rio de Janeiro continua lindo como sempre, mas o progresso e péssimas administrações públicas transformaram-na numa cidade diferente daquela do passado. Aqui e ali nota-se uma tentativa de revitalização de alguns bairros. Louvável, mas insuficiente para quem nasceu carioca, como eu, e ali viveu grandes momentos da sua vida. Continuo apaixonado pela cidade Maravilhosa e me emociono cada vez que ouço o seu hino. Hino, aliás, irreverente como o próprio carioca, é, na verdade, uma marchinha de carnaval.
Rio de Janeiro das minhas lembranças, da minha família, do externato São José, das peladas do aterro e do meu Vasco da Gama.
Rio, eu te amo.
ABC Das Letras