A vivência do vazio, o desejo e o trauma do absoluto no sistema representacional

'E assim é o ser humano: tão vazio

que se preenche com qualquer coisa,

por mais insignificante que seja.’

Pascal

Introdução

No senso comum, a sensação de vazio parece ligar-se a uma ‘carência’ de amor do sujeito, a ser suprida por seu objeto de amor. Segundo a linguagem popular – típica do senso comum – as sensações de falta, de buraco e de vazio interior precisam ser preenchidas e completadas pelo outro.

Na literatura psicanalítica contemporânea, a clínica do vazio tem sido incluída dentre as patologias atuais, que desafiam os psicanalistas. Nessa perspectiva:

Brum (2004) diz que as patologias do vazio incluem os transtornos de personalidade borderline, narcisista, falso self e autista, marcados pelo estado mental de desistência. Seu único desejo é não desejar. Seus vazios são derivados de falhas precoces no primitivo vínculo mãe-bebê.

Outros psicanalistas têm explorado os desvãos inconscientes da patologia do vazio. As representações mentais e as atividades compulsivas são denominadores comuns às ideias de dois teóricos. Trabalhar com suas ideias justifica-se pelo tratamento teórico dado – pela autora – ao vazio em sua relação com as representações mentais e aos atos compulsivos.

Singer (1997) define o vazio a partir da experiência subjetiva equacionada com a sensação de fome, sua representação mental e uma fantasia. Classicamente, o vazio decorre de distúrbios dos impulsos libidinais e as defesas incluem fugas maníacas para atividade, promiscuidade, drogas. Estes actings ou objetos, temporariamente, preenchem o vazio interior via suprimentos externos. Por outro lado, na teoria das relações objetais o vazio é visto como um distúrbio do senso de self. Segundo Kernberg (1985), quando a relação entre o self e o mundo interno é perturbada, surgem experiências subjetivas patológicas. Dentre elas, a vivência subjetiva do vazio revela a perda da relação do sujeito com suas representações objetais. Para escapar do vazio, ele se lança ao acúmulo de atividades, às interações desenfreadas, às drogas, ao sexo, à agressão, à comida e às compulsões.

Ao lado dessas importantes contribuições sobre o tema, a especificidade do vazio – no domínio transgeracional – demanda apresentar as concepções de dois psicanalistas sobre ele.

De acordo com Kaës (2001), na transmissão psíquica vigoram a falha, a falta e o que não adveio ‒ seja pela ausência de inscrição e de representação, seja por meio de uma cripta ‒ bem como o material psíquico em estase e não inscrito. Por sua vez, Eiguer (1998) diz que a representação de objeto transgeracional coexiste com a falta de representação, o vazio. Na clínica, o irrepresentável relativo ocorre na falta de representação, que um dia será conhecida – na análise.

Essas relevantes bases teóricas, a seu tempo, permitem pensar o caso clínico examinado.

O desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

Ainda sob o prisma psicanalítico, a questão do vazio pode ser assentada no plano teórico-clínico do desejo, do trauma do absoluto, do sistema representacional e da transmissão da vida psíquica na família.

O desejo caracteriza-se como um conjunto de representações e de afetos, que organiza as forças psíquicas do sujeito. Potencialmente, ele gera movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação, até se efetivar no mundo. Contudo, as inibições na satisfação do desejo do adulto derivam de sua fixação em certas representações e afetos, que impedem sua realização no mundo. Essas inibições do desejo do sujeito e de seus antecessores estão radicadas no material psíquico que atravessa sua família. Assim, vivências familiares muito arcaicas marcaram o desejo do sujeito. Nesse contexto, seu sistema representacional foi formado.

O sistema das representações do sujeito constitui um dispositivo psíquico com potencial para representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar as diversas vivências psíquicas se desenvolve a partir dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se assujeita ao seu desejo. Esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança têm relação com os conteúdos psíquicos de seus pais e antepassados. Esse sistema é constituído por diferentes camadas ou estratos psíquicos. Seus elementos fundamentais são as representações e os afetos do desejo que, a priori, dirige-se ao mundo das relações humanas. Esses processos tem relação direta com a engrenagem das gerações da família.

Nessa engrenagem familiar, as questões do desejo e do vazio podem ser articuladas ao ponto de vista econômico sobre o funcionamento psíquico. Quanto a isso, Freud (1915/2006) afirma que o enfoque econômico considera as vicissitudes nas quantidades de excitação. No inconsciente, há conteúdos investidos com maior ou menor força.

Tal conceito metapsicológico articula-se às ideias propostas a seguir, visto que se associa ao investimento, sobre-investimento e subinvestimento das representações: conteúdos psíquicos investidos com diferentes quantuns de afeto: amor, ódio, horror, medo, entre outros.

As representações do desejo do sujeito, o vazio de certas representações e as alterações no exercício desse desejo têm sua gênese nas primeiras relações organizadoras do eu. Nestas, o filho recebe diferentes gradientes de amor e ódio dos objetos primários, em sua formação. Além disso, eles satisfazem ou frustram seu desejo, em maior ou menor grau. Quando da supremacia das frustrações sobre as satisfações, as representações de seus dotes físicos e psíquicos – inteligência, beleza, persistência, dedicação, dentre outras – são investidas por ódio. Ao investir as representações dos objetos primários com uma voltagem de amor ou de ódio próxima a recebida por ele, ele investe as representações de seu desejo com essa mesma carga. Desse modo, suas representações são investidas, subinvestidas ou sobreinvestidas por amor e ódio. Esses fenômenos de ordem econômica têm efeitos sobre seu desejo, favorecendo sua realização ou sua inibição. Assim, o desejo se realiza de modo ‘fluido’ ou se paralisa com base nas representações e afetos parentais projetados por seus pais, nele, quando criança. Nesse contexto, seus traumas com os objetos primários deflagram diversos gradientes de ódio ao seu desejo, impedindo-o de atualizá-lo no mundo – quando adulto.

No sistema das representações, o trauma do absoluto se revela mediante certas representações: ser abandonado, desamparado, rejeitado, não-amado, excluído, um nada, um zero, um desastre, para sempre, sem lugar no mundo. Elas são sobreinvestidas por ódio e horror, contrárias à realização do desejo do adulto e inibem de forma maciça sua potência de se efetivar na realidade e no mundo das relações. Coexistem, igualmente, no sistema, as representações autodepreciativas: ser incompetente, desastrado, burro, dentre outras. Elas são investidas de ódio e também impedem o fluxo do desejo do sujeito – no sentido de dificultar sua realização, de forma mais branda que as do absoluto. Em contrapartida, ser amado, competente, dedicado, persistente, bem-sucedido, conquistador e merecedor de bens preciosos constituem representações coerentes com seu desejo. Elas são investidas por amor, favorecendo a força do desejo do adulto.

De raízes ancestrais, o trauma do absoluto designa um sofrimento psíquico intenso em pacientes com organização neurótica. Constitui uma hipótese investigativa ‒ com fundação empírico-clínica ‒ acerca de um fenômeno da clínica psicanalítica contemporânea.

Para se pensar outro tipo de representação do absoluto, cabe recorrer a outro psicanalista. Racamier (1991) define o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas proposições inconciliáveis.

A incompatibilidade entre elas se mantém secreta e sob a interdição de ser percebida por sua vítima, mas produz intenso ódio nela.

Parte das representações do trauma do absoluto, os paradoxos articulam vivências mentais opostas, mas indissociavelmente ligadas: ganho e perda, inclusão e exclusão, cheio e vazio. Numa análise, os paradoxos ilustram o ‘fato’ psíquico de que certos objetos de seu desejo, quando conquistados pelo paciente, produzem vivências mentais ilógicas nele. Pela lógica da razão, suas conquistas deveriam engendrar: ser ganhador, ser incluído e estar satisfeito. Paradoxalmente, ele vivencia: ser perdedor, ser excluído e sentir-se vazio. Estas últimas representações detém a primazia sobre as primeiras no sistema das representações, em virtude da força daquele trauma.

No sistema das representações do sujeito, a partir de traumas com seus objetos primários de amor, pode instaurar-se o vazio e o projeto inconsciente de ‘preenchê-lo’ de três maneiras. Numa versão radical de sua relação com o vazio, ele tenta se desligar de seu desejo e de suas interações com o mundo. Vive o desejo do não-desejo e não tenta elaborar seu vazio. Numa variante menos radical, busca preencher seu vazio mediante compulsões: comida, aquisições materiais consumidas com avidez, projetos intelectuais que visam ao acúmulo de saber, produção artística exacerbada, hiper-atividade sexual, trabalho frenético e exercício do poder/domínio do outro. Noutra versão igualmente nociva, busca preencher o vazio mediante um objeto humano idealizado – sob a forma de fascínio do sujeito por ele.

Esclarecendo melhor as ideias anteriores, o vazio do sujeito com seus objetos primários faz com que ele busque ‘preenchê-lo’ em sua vida adulta − de modo fictício − por objetos secundários: imateriais-simbólicos, humanos idealizados e humanos subvalorizados. Os objetos imateriais-simbólicos compreendem: poder, saber, sexo, dinheiro, alimento, trabalho, arte, entre outros. O objeto humano idealizado detém forte carga de investimento amoroso/idealizado e certa carga de investimento de ódio/persecutório. A construção psíquica desses objetos secundários visa ‘preencher’ seu vazio de amor e defendê-lo de seu ódio a si e aos objetos primários. Então, o sistema pode mobilizá-los de modo circular, de modo que ele investe ora um ora outro objeto – para ‘preencher’ seu vazio. Mediante esse investimento circular, o sujeito continua fixado a tais objetos e ao vazio. Nesse logro de seu eu, ele fica preso a um estado mental torturante, paradoxalmente vivido como vazio cheio de dor. Ele está paralisado psiquicamente, não podendo realizar seu desejo – em suas nuances mais recônditas e mais originais.

No sistema representacional, a sobrecarga de ódio em representações do trauma do absoluto contrárias ao desejo – ser abandonado, ser desamparado – se conecta com a ausência de outras representações coerentes com ele – ser amado, ser bem-cuidado. E, ainda, no sujeito, o sobre-investimento de ódio nas representações do absoluto tem dois reversos no sistema: o sobreinvestimento de amor no objeto idealizado e o subinvestimento de amor naquelas coerentes com seu desejo. O sobre-investimento de amor nas representações do objeto idealizado ‒ ser magnífico, ser o máximo, ser perfeito ‒ esconde o sobre-investimento de ódio nas representações dos objetos primários e de si ‒ ser insignificante, ser um nada, ser um erro. Em outras palavras, o amor em demasia ao objeto idealizado esconde/revela o ódio do sujeito a si e a seus pais. Esse ódio favorece o vazio funcional de representações coerentes com seu desejo. Em suma, a vivência do vazio, no sujeito, se deve ao vazio funcional de representações e afetos solidários ao seu desejo – no sistema das representações.

Além disso, o fluxo ou a inibição do desejo ‒ quanto a sua realização no mundo ‒ decorre da distribuição diferencial de afetos nas representações. Como exemplo disso, ser competente, ser desastrado, ser um desastre e ser um nada atestam diferenças nos investimentos de amor e ódio nas representações. Ser competente é uma representação de si investida de amor, que valoriza o sujeito e favorece a realização de seu desejo. Em contrapartida, ser desastrado, ser um desastre e ser um nada recebem gradientes de ódio progressivamente maiores. Nessa escala, ser um nada – representação do absoluto – contém um quantum de ódio maior do que ser um desastre, que detém um montante maior de ódio do que ser desastrado. Quanto maior a carga de ódio ligada a uma representação, maior a dificuldade de atualização do desejo do adulto, no presente.

Os traumas que atingem o sistema representacional mesclam vivências ancestrais, parentais e filiais, tendendo a gerar ódio ao seu desejo – em seu herdeiro. Dentre eles, no trauma do absoluto o excesso de ódio – no estrato inconsciente do sistema – provoca falhas em sua função representativa das vivências do sujeito. Associa-se à sobrecarga de ódio nas representações do absoluto em seu estrato consciente, que impede o curso das representações favoráveis ao desejo: ser amado, ser inteligente, ser competente, entre outras. Logo, o investimento de amor nessas representações propicia sua circulação no estrato consciente.

A partir dessa mobilidade das representações, a integração entre os estratos consciente e inconsciente do sistema pode ocorrer. Nessa medida, o desejo do adulto pode se concretizar no mundo.

Passa-se, a partir de agora, a investigar o vazio e suas nuances na clínica psicanalítica. Visa-se, desse modo, ilustrar algumas questões abordadas anteriormente.

Histórias clínicas

A relação entre a vivência do vazio, o desejo, suas representações mentais e seus afetos – no sistema representacional – desvela-se no solo de prospecção da clínica psicanalítica. Nesta, a princípio, a vivência do vazio em três pacientes parecia remeter às falhas de investimento de amor por parte de seus genitores. Em meio a isso, eles tentavam lidar com seu vazio por meio de objetos secundários, que supostamente os preencheriam. Porém, os três vivenciavam um crescente vazio em seu eu. Um exame mais atento da questão articulou esse vazio ao vazio de certas representações, que permitiriam efetivar seu desejo no mundo.

Uma paciente vive um incomensurável vazio em seu desejo de ser uma grande pintora. Quando criança, ela foi nomeada como sapa, feia e gorda pela mãe, enquanto sua irmã foi designada como a grande e a única pintora da família. Ela sente um imenso vazio quanto ao amor materno, cujo suposto preenchimento caberia a seu objeto atual de afeto. Assim, ela demanda a reparação mágica e onipotente de seu vazio por parte de seu marido. A falta de um preenchimento perfeito – que deveria ser realizado por ele – é vivida como roubo por ela. Isso favorece sua incapacidade de ganhar seu próprio dinheiro com a pintura, bem como o roubo do dinheiro dele. Em contrapartida, ela faz da filha adotiva a depositária suprema de sua doação de amor. A esse objeto idealizado, ela presta uma vassalagem masoquista. Negando o vazio vivido com seu objeto primário/mãe, sua maníaca doação e oferta amorosa ao objeto idealizado ‒ filha adotiva ‒ oculta seu desejo de ser amada. Projeta nela as ideias de ser rainha e ser magnífica, ao passo que se representa como vassala e insignificante na relação. Nessa trama psíquica, ela subvaloriza sua filha legítima.

Dotada do mesmo dom para a pintura que sua irmã, ela não se apropria dele como seu. Ainda que invista dedicação, tempo e dinheiro – do marido – na pintura, não integra como suas as representações: ser amada, ser dedicada, ser competente, ser determinada, ser vencedora e ser uma boa pintora. Estas representações de si – facilitadoras do exercício de seu desejo – lhe dariam sustentação para se amar, assumir seu valor, ganhar dinheiro e usar seus talentos para materializar seu desejo, em sua vida adulta. Todavia, ela vivencia vazios crescentes e intermináveis – nunca preenchidos pelos objetos secundários: marido, filha e pintura. Assim sendo, seu vazio parece, a princípio, articular-se ao vazio de amor de sua mãe por ela. Porém, posteriormente, ele se associa ao seu ódio a si, à sua mãe e à sua irmã, bem como à falta de representações correntes com o desejo.

Noutra paciente, a experiência de um contínuo vazio parece ligar-se à falta de investimento amoroso por parte de sua mãe. Tão somente seu pai e sua avó materna investiram-na com amor – em sua infância. Desde o início de sua vida, o amor materno foi direcionado ao irmão da paciente – que nasceu adoentado e frágil. Quando adulto, sua mãe compra apartamento e carros para ele, enquanto que à filha resta pagar aluguel e andar com um carro velho. Assim, a rejeição e o abandono de sua mãe juntaram-se às mortes precoces de seu pai e de sua avó. Tal como vividas por ela, essas perdas incomensuráveis aumentaram mais e mais – numa espécie de soma paradoxal de seus vazios. Esses vazios diminuíram seu valor pessoal junto às demais pessoas.

Negando a falta de sua mãe, ela faz de sua sogra a substituta daquela. Deixa-a interferir na educação de seus filhos e depende de seu dinheiro para viver. No início da análise, ela subvalorizava seus filhos, pois projetava neles seu desvalor somo filha e suas dificuldades/seu desinteresse na escola. Com a análise, assume a educação dos filhos e abre uma micro-empresa. Porém, nela esvaem-se seu trabalho e seu esforço. Sente que seu vazio emocional nunca é preenchido por essa atividade. Desiste da empresa e inicia uma faculdade, resgatando seu desejo e o desejo de seu pai de que ela estudasse. Esforça-se muito para conciliar a faculdade com cuidados para com o marido, os filhos e a casa. Ainda que ela seja uma aluna exemplar e com boas notas, não se apropria dessas representações de si: ser dedicada, ser perseverante, ser capaz, ser inteligente. Numa sessão, relata que após muitas brigas com sua mãe, esta se aliou a ela – numa batalha judicial – para que a paciente herdasse a casa da avó amada. Todavia, ao herdá-la, ela sente uma tristeza e um vazio intensos e paradoxais – e não grande alegria e forte satisfação. Seu vazio a impede de integrar os significados dessa nova empreitada – ser amada, ser proprietária, ser bem-sucedida, ser perseverante, ser capaz, ser conquistadora. Logo, seu vazio revela sua dificuldade de integrar tais representações solidárias com seu desejo mais essencial. Na sessão seguinte, um longo silêncio liga-se, igualmente, à sua sensação de vazio. Este escamoteia suas representações de autovalorização e paralisa sua capacidade de representar suas vivências prazerosas. Por fim, na sessão posterior, transbordam afetos inéditos: seu ódio à sua mãe, bem como seu ódio, sua inveja e seu ciúme do irmão – enunciados por ela com forte ênfase nessa ocasião. Ao fazê-lo, ela pode integrar as representações de seus méritos, relativos a seus empreendimentos bem-sucedidos na vida.

Em certo paciente, o imenso vazio do abandono, do desamparo e da rejeição de seu pai parece unir-se às suas vivências paradoxais com seus avós paternos. Seu amado avô ficava com ele nas férias tão somente: amava-o, desde que ele reprimisse sua agressividade para com sua sádica avó. Esta fazia comidas gostosas para ele, que ele comia com avidez. Contudo, ela o chamava de gordo, balofo e guloso depois. Em meio a isso tudo, ele sofreu intensamente.

Quando adulto, ele tenta preencher seu vazio mediante uma torturante relação com a comida, o roubo de dinheiro e o desejo insaciável de saber mais e mais. Nessa esteira de sofrimento psíquico, faz várias tentativas de ‘tampar’ seu vazio – supostamente associado ao desamparo e abandono paternos. A despeito disso, ele se sente mais e mais vazio. Dentre suas tentativas, sua urgência de emagrecer é bem-sucedida – porém, mesclada com forte tortura mental. Além disso, sua boa colocação profissional e financeira não lhe basta. Assim sendo, ele rouba dinheiro numa empresa. Ademais, emprega-se em outra empresa, a seis horas de sua casa, perdendo tempo e dinheiro nas viagens até ela. Todavia, adquire seu apartamento e seu carro graças aos roubos do dinheiro de seu pai e da primeira empresa. Numa instituição de ensino, vive o terror de que o aluno saiba mais do que ele, que lhe pergunte coisas que não sabe e que roube seu lugar. Subvaloriza os alunos menos inteligentes e menos dotados intelectualmente que ele. Entretanto, sua condição de ser bem dotado intelectualmente não lhe traz qualquer conforto mental. Tais movimentos visam preencher seu vazio, mas o esvaziam. Logo, eles evidenciam seu paradoxo mental de ganho-perda e do cheio-vazio. Sua vivência imperiosa de perda e de roubo interno por seu pai, bem como seu roubo do dinheiro alheio – suposto ganho e preenchimento de seu vazio – deve-se às dificuldades de integração do sistema. Assim, ser amado, ser bem-sucedido, ser competente e estar satisfeito são representações condizentes com seu desejo, mas não integradas por ele. Elas entram em conflito com ser abandonado, ser desamparado, ser rejeitado por seu pai – representações do trauma do absoluto sobre-investidas por ódio. Seu imenso ódio à figura paterna e seu forte horror às demais relações dificultam essa integração de representações condizentes com seu desejo no estrato consciente do sistema representacional.

Discussão

Esses casos clínicos revelam a vivência do vazio, bem como a questão do desejo, do trauma do absoluto no sistema das representações. A história de vida dos pacientes parece apontar que eles foram depositários de diversas intensidades de amor e ódio, por parte de seus genitores.

O recurso metodológico de itálicos almeja destacar as representações e afetos, bem como suas mudanças ao longo da análise.

A primeira paciente parece ter sido diretamente odiada por sua genitora, inclusive mediante atribuições, que diminuíam seu valor. Ser sapa, ser feia e ser gorda são representações depreciativas conscientes legadas a ela, por sua mãe. Por sua vez, ser abandonada, ser desamparada e ser rejeitada são representações do trauma do absoluto, que marcam seu eu. Ser rainha e ser magnífica atribuídas, por ela, à filha adotiva se associam a ela ser vassala e ser insignificante junto à garota. Ser decepcionada e ser roubada pelo marido favorecem ser ladra do dinheiro dele e de seu potencial de ganhá-lo como pintora.

A segunda paciente relata o abandono e a rejeição maternos, atenuados pelo amor de seu pai e de sua avó. Ser abandonada, ser desamparada, ser rejeitada e ser excluída por sua mãe – representações do absoluto – foram suavizadas pelas de ser amada, ser especial e ser valorizada por seu pai e sua avó. Contudo, seu discurso não revela que ela foi diretamente odiada pela mãe.

O terceiro paciente refere-se ao abandono e à rejeição paternos, ao sadismo da avó paterna e, ainda, ao amor condicional e temporário de seu avô paterno. Ser abandonado, ser desamparado, ser rejeitado e ser um sábio isolado numa montanha inexpugnável são representações do absoluto, marcantes nele. Todavia, ele não foi diretamente odiado por seu pai – distante e pouco amoroso com ele. Contudo, o montante de ódio e horror em seu sistema representacional era notório.

Nos três pacientes, o sobre-investimento de ódio nas representações do absoluto faz com que perdessem força aquelas que sustentam seu desejo mais genuíno: ser amada(o), ser bem-sucedida(o), ser perseverante, ser capaz, ser conquistador(a), entre outras. As representações dos paradoxos mentais surgem na segunda e no terceiro analisandos. Na paciente, estar feliz e estar satisfeita – com sua micro-empresa, sua herança benfazeja e seus méritos – são subjugadas pelo paradoxo de estar triste e estar vazia. No paciente, estar satisfeito com suas conquistas ‒ apartamento, trabalho e carro – não adquirem força psíquica, haja vista suas representações de sentir-se vazio e ser perdedor. Em meio a isso, sentir-se cheio com a comida confronta-se com sentir-se vazio de bem-estar e sofrer muito, depois (Almeida, 2010).

Nomeados segundo uma clave inconsciente de maior ou de menor desvalorização de si por seus pais, assim eles se representam. Eles odeiam seus objetos primários e seu próprio desejo. Vivenciam-no como uma falta ou um vazio de dimensões desmesuradas. Como reação a isso, os objetos buscados por eles – em sua vida adulta – supostamente vedariam seu oco n’alma – desde crianças. Ao tentarem ‘completar’ seu vazio por meio desses objetos secundários, parecem preenchê-lo temporariamente, equivocam-se nessa tentativa e voltam a se sentir vazios, mas continuamente repetem esse engodo de seu eu. Assim, eles vivenciam vazios representacionais reiterados e angustiantes, dado o ódio votado às representações propícias ao seu desejo. Em geral, três gerações da família estão envolvidas em seu sofrimento psíquico.

Os vazios nas representações são pensados, no âmbito transgeracional, por Kaës (2001) e Eiguer (1998) e dialogam com os vazios em representações coerentes com desejo (Almeida, 2010).

Considerações finais

A experiência subjetiva do vazio faz parte da clínica psicanalítica contemporânea. Nesta, muitas vezes, o vazio é associado aos distúrbios das personalidades narcísicas e borderlines. Não obstante, ele é relatado por pacientes com organizações neuróticas e pode ser analisado com base na relação com seu desejo e o trauma do absoluto. Seu sistema representacional se torna vulnerável em sua potência representativa – devido a esse trauma com os objetos primários - criando objetos secundários para escapar ao vazio.

A falsa resolução do vazio mediante os referidos objetos revela ódio do sujeito a si. Seus desdobramentos incluem sua relação com esses objetos: idealizados e subvalorizados. Assim, ele se posiciona muito além dos objetos desvalorizados – num triunfo maníaco sobre eles – e muito aquém do objeto idealizado. Esse posicionamento ambíguo se liga à sua relação conflitante com seu desejo. Por ex, a primeira paciente se situa muito aquém da irmã pintora e muito além da filha legítima, enquanto o terceiro paciente se posiciona muito além dos alunos menos inteligentes, mas muito aquém de seu ideal de professor que sabe tudo. Porquanto, nessa relação oscilante com seus objetos, o sujeito ora se aproxima, ora se afasta das modalidades mais verdadeiras e essenciais de seu desejo. Elas se referem às suas características mais singulares e originais de seu desejo.

Esse movimento oscilante quanto ao seu desejo e aos seus objetos revela suas dificuldades de integrar as representações favoráveis a seu desejo: ser amado, ser competente, ser importante, entre outras. Elas são projetadas ‒ num grau máximo ‒ no objeto idealizado, depositário de seus dotes psíquicos e da potência de seu desejo. Nesse objeto, as representações favoráveis a seu desejo são maximizadas: ser idolatrado, ser magnífico, ser o máximo, ser grandioso. Em contraste com isso, as representações desfavoráveis ao seu desejo são atribuídas a si mesmo ‒ ser desvalorizado, ser insignificante, ser desprezível, ser um nada ‒ sendo, em parte, projetadas nos objetos subvalorizados por ele.

Todavia, com sua carga paradoxal de idealização e de perseguição, o objeto idealizado inclui seu valor e sua insignificância, seus cheios e seus vazios, bem como seus ganhos e suas perdas nos vínculos primários. O objeto idealizado parece ser um simulacro de um objeto ideal imaginário, que resolveria suas faltas, de maneira absoluta.

Esses processos configuram um modo primitivo do sistema representacional do sujeito de tentar minimizar seu ódio ao seu desejo. O ódio às figuras parentais e o horror às demais relações o fixam às vivências do absoluto e do vazio de representações harmônicas com seu desejo. Intensifica-se nele a representação de ser um nada, dada a contínua e crescente perda de representações de seu valor – ao recorrer aos objetos secundários para lidar com seu vazio. A parte saudável de seu desejo – representações valorizadas de seu eu – está projetada no objeto idealizado e nos objetos imateriais-simbólicos. Arremedos da resolução de seu sofrimento, paradoxalmente, esses objetos reiteram seu vazio, ao negarem-no. Prendendo-o a uma circularidade de ideias e afetos, ocasionam novas fraturas no trabalho representativo do sistema. A integração à consciência de representações favoráveis ao desejo constitui um ganho, mas esbarra em reiteradas perdas com os objetos primários. Suas representações de ser desvalorizado e de ser perdedor nos primeiros vínculos impedem que se tornem conscientes ser valorizado e de ser ganhador nos vínculos atuais. Em suma, o ódio bloqueia a integração de seu valor e de seus ganhos psíquicos e materiais.

Portanto, a análise do vazio se revela muito complexa e demanda mudanças em várias vertentes. Em sua elaboração, os vários elementos do sistema sofrem modificações importantes.

No plano representacional do sistema, a magnitude dos investimentos do sujeito em si e em seus objetos é remanejada. Suas representações de autodesvalorização – investidas e sobreinvestidas de ódio – são desinvestidas desse afeto. Seu sobreinvestimento de amor nas representações do objeto idealizado é dissolvido. Em consequência disso, as representações de valor do sujeito são investidas de amor. Com isso, rompe-se a paralisia de seu desejo, cuja força de empuxo para sua satisfação encontrava-se, principalmente, no objeto idealizado. Seu desinvestimento é central para essa reconstrução identitária do sujeito. Envolvendo mudanças na economia e na dinâmica do sistema, o trabalho com as suas representações e a mudança quantitativa e qualitativa das cargas de ódio para as de amor ressignificam o vazio.

No registro temporal do sistema, este se fixava nas representações do passado do sujeito, não integrava representações de seus méritos no presente e as depositava num futuro remoto, cujo desfrute se encontrava adiado para sempre. Dessa maneira, inibia o uso de seus dons e méritos no presente. Para o sujeito assumí-los como seus, deve romper a brecha temporal entre um presente fugidio e um futuro dirigido ao infinito. Com isso, amor e ódio deixam de estar fixados em situações do passado e são mobilizados para o presente.

Dessa forma, o sistema das representações desestabiliza-se, muitas vezes, ao redistribuir investimentos dotados de tamanha intensidade. Ao final da análise, a fixação das representações verte-se em mobilidade entre elas e a paralisia do sistema dá lugar à eficiência de seu trabalho com os seus conteúdos. As perdas inexoráveis nos vínculos passados dialogam com as possibilidades de ganhos em vínculos novos e inéditos. Vários objetos de satisfação apresentam-se ao desejo do sujeito, superando a anterior exclusividade de um único objeto. À medida que o sujeito se investe de amor, seus objetos revelam-se em sua real dimensão: capazes de uma satisfação temporária e faltante de seu desejo. Disso derivam criatividade no uso de recursos psíquicos e força construtiva para realizá-lo. Ele escapa, afinal, de um trauma arcaico, que gerava um vazio ininterrupto no sistema das representações. Produzir novos sentidos de seu eu permite-lhe ultrapassar seu sofrimento psíquico, pondo fim à inibição mental quanto ao uso de seus dons e recursos psíquicos. Por fim, ele presentifica seu desejo em suas relações adultas.

Junto a essas ideias, outras questões devem ser consideradas.

Em sua essência, o vazio remete ao desejo em sua constante busca de objetos de satisfação. Por sua natureza, o desejo é sempre satisfeito de forma provisória e parcial. Disso resta certo dissabor para o sujeito, pois o objeto mais ardentemente desejado por ele, logo deixa de ser magnífico ao ser desfrutado por ele. Desse modo, o desejo pode ser considerado sob dois aspectos.

Numa vertente saudável, o desejo mobiliza certo vazio que funciona como motor do sujeito em direção ao outro e ao mundo. Nesse sentido, ele constitui um vazio que promove o saudável movimento psíquico do sujeito, para além de si mesmo. Este vazio recuperável pelo movimento do desejo remete à sua potência de efetivação, ao seu vigor no sistema e à criação de obras culturais.

Numa vertente psicopatológica, o desejo constitui um vazio angustiante, cuja atualização no presente esbarra nos conflitos do sujeito com seus objetos primários no passado. Esse vazio vivido no nível sensorial – vazio na boca do estômago ou fome – é o reverso do vazio gerado pelas falhas representacionais do sistema. Como vazio ‘irrecuperável’ pelo movimento do desejo, aparece sob a forma de urgência de satisfação e da busca repetitiva por objetos ilusórios de satisfação. Inexoravelmente, eles voltam a evidenciar a sensação de vazio no sujeito. A ser resolvido numa análise, esse paradoxo se junta à outra questão bastante contundente.

Conquanto o vazio possa ser experimentado como vivência sensorial, suas origens psíquicas remontam à falência representativa do sistema, diante da força desorganizadora do ódio. Nessa via, o vazio deve-se à primazia do ódio sobre o amor em seu estrato inconsciente. Há outros derivados do ódio nesse sistema: afetos como horror, terror, inveja; processos como a fixação de representações e a formação de representações paradoxais; disfunções econômicas como: sobre-investimentos e subinvestimentos de afetos; vicissitudes narcísicas como a autodesvalorização do sujeito, a supervalorização de certo objeto e a subvalorização de outros, bem como inibições no uso dos recursos psíquicos. A ineficiência do sistema revela-se na impotência do adulto em utilizar seus atributos para satisfazer seu desejo hic et nunc.

O vazio sensorial e psíquico envolve os vazios das representações de natureza econômica, dinâmica e funcional do sistema representacional. Econômica, pois envolve os investimentos, os sobreinvestimentos, os subinvestimentos e os desinvestimentos das representações do desejo; dinâmica, pois envolve conflitos entre os estratos consciente e inconsciente do sistema e funcional porque esses distúrbios em sua função representativa podem ser elaborados por meio da análise. Em contraposição às falhas no sistema, a primazia do amor em relação ao ódio o organiza e o amor investido em suas representações estimula o desejo em direção a sua realização no mundo.

Por fim, as hipóteses relativas ao vazio, ao desejo, ao trauma do absoluto e ao sistema representacional podem contribuir para com a teoria psicanalítica. Porquanto, seus tipos de representação e de afeto, seus processos e seus estratos podem suprir lacunas nesse campo do conhecimento. Ademais, a questão das falhas representativas do sistema articula-se ao pensamento psicanalítico contemporâneo sobre os desafios de sua clínica.

Referências

Almeida, M. E. S. (2003) A clínica do absoluto: representações sobre-investidas que tendem a deter o encadeamento associativo. Tese de doutorado em Psicologia Clínica, PUC-SP.

Almeida, M. E. S. Uma proposta sobre a transgeracionalidade: o absoluto. Ágora. Rio de

Janeiro, v.13, n.1, 2010, p.18-30.

Brum, E.H.M. Patologias do vazio: um desafio à prática clínica contemporânea. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n.2, 2004, p. 48-53.

Eiguer, A. A transmissão do psiquismo entre as gerações. São Paulo: Unimarco, 1998.

Freud, S. Repressão. (1915) Rio de Janeiro: Imago, 2006. Ed. standard brasileira das obras completas.

Freud, S. O ego e o id. (1923). Rio de Janeiro: Imago, 2006. Ed. standard brasileira das obras completas.

Herrmann, F. A. O método da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 2001.

Kaës, R. Transmissão da vida psíquica entre as gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo: Mestre Jou, 1981.

Kernberg, O. Desórdenes fronterizos y narcisismo patológico. Buenos Aires, B. A: Ediciones Paidós, 1985.

Singer, M. The experience of emptiness in narcissistic and borderline states. The International Review of Psychoanalysis, v. 4, n. 4, 1997, p. 459-479.

Racamier, P-C. Souffrir et survivre dans les paradoxes. Revue Française de Psychanalyse, 55(4), 893-909, 1991.

Zimerman, D. E. (2013). Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. P. A: Artmed.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 26/12/2020
Código do texto: T7144699
Classificação de conteúdo: seguro