O mundo mental de um homem sem-teto

Introdução

Este trabalho visa estudar certos aspectos do mundo mental de um homem sem-teto do ponto de vista psicanalítico, primordialmente. A princípio, apresentam-se a definição conceitual e informações gerais sobre essa condição. A seguir, conceitos antropológicos, psiquiátricos e psicanalíticos são acrescentados àquelas. Na próxima seção, alguns dados biográficos acerca de um morador de rua, que rompeu drasticamente sua relação com o mundo – familiar e capitalista – são fornecidos. Em seguida, formulações psicanalíticas mais específicas sobre essa ruptura são oferecidas ao leitor.

De antemão, algumas considerações de natureza antropológica permitem compreender o contexto que favorece a formação da população sem-teto.

Nesse âmbito, Glasser (1994) conceitua a pessoa sem-teto, sem-abrigo ou morador de rua como aquela que não possui moradia fixa, residindo em locais públicos de uma cidade. Ele pode viver em abrigos de associações sem fins lucrativos ou instituições de solidariedade social. Há diferenças entre as causas da formação da população de rua nos países industrializados e em desenvolvimento. Nos industrializados, essa questão envolve o déficit habitacional quanto às moradias de baixa renda, a desestruturação familiar, a dependência do álcool e de drogas, bem como a desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos. Naqueles em desenvolvimento, deve-se à migração da população rural para as cidades, ao desemprego e ao subemprego, ao aumento de refugiados e às vítimas de catástrofes. Para a formação desse complexo gerador da população sem-teto, concorrem macrofatores – política econômica, de emprego, de moradia e de saúde – e microfatores – drogadicção, transtornos mentais, violência doméstica e outros.

A adaptação da pessoa sem-teto aos espaços das ruas ocorre em três momentos: cair na rua, estar na rua e ser da rua. Essa variação semântica sinaliza a adaptação que vai do estado transitório ao permanente na relação com o espaço público. Ao cair na rua, a pessoa ainda preserva alguns vínculos com o outro lado da sociedade, que lhe permite trabalhar e manter contato com colegas e parentes. Morando em albergues, pensões e alojamentos, ela fica na rua, mas preserva essa rede de suporte. Com o tempo, sua progressiva identificação com pessoas em condição de rua a liga a uma nova rede de relações. Sua familiarização com o novo ambiente diminui seu sentimento inicial de ameaça e vulnerabilidade, pois as alternativas de sobrevivência nesse espaço urbano compõem seu novo cotidiano. Os demais moradores de rua tornam-se referências mais importantes para ela, sua desvinculação gradativa das antigas redes sociais de suporte e sua adesão aos códigos das ruas a vinculam a esta nova realidade. O espaço das ruas se constitui como local de moradia e de trabalho, de modo que ela passa a ser da rua. Dessa forma, ela progressivamente vive o processo de desfiliação. Este deriva da crise contemporânea das relações de trabalho – alto índice de desemprego – promovendo uma transição da inclusão social – moradia, saúde e trabalho – para a perda de direitos sociais e de rupturas de redes sociais (Castel, 1995).

Esse contexto multifacetado pode atrair pessoas com transtornos de personalidade – inclusive borderlines. No que se refere a isso, a biografia do referido homem sem teto favorece essa compreensão diagnóstica. Nessa medida, os enfoques psiquiátrico e psicanalítico subsidiam o entendimento de sua ruptura com o mundo.

Contribuições psiquiátricas e psicanalíticas relativas ao transtorno borderline

Dois pensadores relevantes nessas áreas de conhecimento permitem pensar esse transtorno de personalidade.

Dalgalarrondo (2008) aponta no sujeito borderline severos problemas de identidade; instabilidade emocional intensa; sensação crônica de vazio; relacionamentos intensos, mas muito instáveis, oscilando entre curtos períodos de grande paixão e amizade e outros de profundos ódio e rancor; esforços excessivos para evitar abandono; automutilação repetitiva, inclusive intoxicar-se com substâncias ilícitas; atos suicidas repetitivos e ideação paranoide associada a sintomas dissociativos intensos. Ele apresenta reações impulsivas, explosivas e agressivas às frustrações e aos limites, que se opõem ao seu desejo. Esse padrão comportamental repetitivo faz parte de seu ambiente familiar, no qual a reação explosiva e agressiva constitui uma forma de comunicação e de obtenção de algo desejado.

De acordo com Zimerman (2007), esse transtorno é marcado pela alteração do senso de identidade. A dissociação excessiva de aspectos contraditórios da personalidade gera uma organização ambígua, instável e compartimentada, angústia intensa e constante, vazio crônico e sexualidade sadomasoquista. Ao não integrar esses aspectos, ele não forma uma imagem integrada, coerente e consistente quanto a si próprio.

Além de essas teorizações acerca do transtorno em pauta complementarem-se entre si, alguns aspectos são relatados em ambas: conflitos de identidade na relação com o outro, instabilidade emocional, sensação de vazio e intenso sofrimento psíquico.

Contribuições psicanalíticas relativas ao mundo mental de um homem sem-teto

Para pensar o mundo mental da pessoa sem-teto sob outra perspectiva psicanalítica, trabalha-se com hipóteses de trabalho pertinentes ad hoc: o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional.

O desejo consiste em um conjunto de representações e de afetos, que organiza o conjunto de forças psíquicas. A princípio, ele promove movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação até se realizar no mundo. Os bloqueios na satisfação do desejo do adulto decorrem de sua fixação em certas representações e afetos, que limitam sua efetivação no mundo. Assim, vivências parentais e ancestrais bloqueiam o desejo do sujeito e podem gerar o trauma do absoluto (Almeida, 2003; Almeida, 2010; Almeida, 2016).

O trauma do absoluto deriva de enigmas e impasses observados na clínica da autora. Caracteriza-se por representações sobrecarregadas de ódio e horror: ser abandonado, desamparado, rejeitado, fracassado, derrotado, devedor, não-amado, para sempre, sem lugar no mundo, sofredor ao infinito, amaldiçoado para sempre. E, ainda, ser o zero, ser o nada, ser impossível realizar seu desejo e estar absolutamente proibido de realizá-lo. Essas representações e afetos – ódio e horror – fazem parte do sistema representacional (Almeida, 2003; Almeida, 2010; Almeida, 2016).

O sistema das representações do sujeito é composto por representações e afetos associados às suas vivências com as figuras primárias/pais – que lidam com seu desejo. Esse sistema constitui um recurso psíquico capaz de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar essas vivências é bastante alterada pelos traumas. Além do mais, sua capacidade de representar os diversos conteúdos psíquicos não se desenvolve por si só. Interliga-se aos sistemas representacionais de seus objetos primários/pais e, assim, se submete ao seu desejo. A partir disso, a criança pode ser designada conscientemente por seus pais como: inteligente ou burra, flor ou verme, especial ou insignificante. Estas representações se juntam às projeções inconscientes de seus pais sobre ela. Como exemplo, conquanto ela possa ser habilidosa e criativa – na esfera das habilidades manuais – ela pode se sentir, se representar e se comportar aquém de sua capacidade, devido às representações introjetadas por ela e investidas por ódio – desastrada e estúpida. Essa trama de significados se deve à identificação do filho com seus genitores, que atravessa as gerações da família (Almeida, 2003; Almeida, 2010; Almeida, 2016).

Quanto a esse processo, Freud (1900/2006) aponta a transmissão inconsciente por identificação com o objeto ou com a fantasia e o desejo do outro. A transmissão psíquica abarca a relação do sujeito com sua herança psíquica e cultural, bem como com seu Édipo. E, ainda, Kaës (2001) aponta a identificação como o processo maior de transmissão da vida psíquica na família – em suas gerações.

No sistema das representações, o sujeito, seus objetos primários/pais e seus objetos secundários estão profundamente ligados em termos de representações, afetos, traumas e paradoxos. Seus objetos secundários são aqueles eleitos por ele quando adulto: humanos – idealizado ou não – e (i)materais-simbólicos – arqueologia, ciência, música, literatura, cinema, matemática, entre outros. Esses objetos secundários podem ser investidos por amor e ódio (Almeida, 2010; Almeida, 2016).

No sistema representacional, há, ainda, as representações das vivências de ganho, de perda e dos paradoxos lógicos sobre elas. A vivência de perda associa-se aos traumas envolvendo catástrofes naturais e relacionais. As catástrofes naturais incluem enchentes, maremotos, secas devastadoras, entre outros. As catástrofes relacionais também podem atingir sua vida psíquica: a prisão de um membro da família, o estupro de um deles, p.ex. Igualmente, as perdas sofridas pelos pais em sua infância e aquelas vividas em seu casamento podem ser transmitidas ao filho. Nesse âmbito, sua catástrofe psíquica se deve à violência perpetrada contra ele por essas pessoas significativas e às suas reações violentas a elas (Almeida, 2015). Além do mais, o trauma do absoluto favorece a formação do paradoxo mental que reúne representações contraditórias no sistema: tudo e nada, ganho e perda, cheio e vazio, exclusão e inclusão. Elas mantêm o sujeito preso mentalmente a uma compreensão da experiência, que o deixa ‘sem saída’ (Almeida, 2010; Almeida, 2016).

Para tais vivências se perpetuarem nas gerações de uma família, outro processo mental deve estar presente: a contra-identificação. Esta pode ocorrer junto com a identificação discutida por Freud (1900/2006) e Kaës (2001).

Na transmissão da vida psíquica na família, a contra-identificação é um processo de formação do eu. O sujeito pode, pois, se opor/contra-identificar com características odiadas de seus pais em sua infância, aos quais atribui seu sofrimento. Contudo, elas propiciam a satisfação de seu desejo em sua vida adulta. Assim sendo, certo filho se contra-identificou com a determinação, o empreendedorismo e o sucesso de seu pai – sádico e insensível. A essas características paternas, ele atribuiu seu abandono e seu desamparo em sua infância. Ao sobrecarregar de ódio ser abandonado e ser desamparado, não investe de amor ser empreendedor, ser determinado e ser bem-sucedido como seu pai. Porém, essas representações e afeto favorecem a efetivação de seu desejo no presente, permitindo superar o trauma do absoluto de seu passado.

Passa-se a seguir para a apresentação da biografia de um homem sem-teto.

A vida psíquica de um homem sem-teto

Nesta seção, parte-se de um estudo biográfico sobre Stuart Shorter – um homem sem-teto – feito por Masters (2011). Na descrição de sua vida, utilizam-se as aspas simples para

retratar frases emitidas por ele, bem como pelas pessoas que conviveram com ele. O uso de travessões visa deixar o texto mais claro para o leitor.

‘O que matou o garoto que eu era?’ constitui a pergunta central que norteia a presente investigação, tendo sido formulada por ele em seu encontro inicial com Masters.

Em sua trajetória de vida, destacam-se os traumas que ele sofreu desde a infância: incontáveis estupros – por parte do irmão mais velho, que utilizava uma garrafa nesses atos, por sua babá e por um professor da escola para crianças especiais. Além disso, ele nasceu com uma distrofia muscular amena, mas, na escola, foi inserido entre as crianças com deficiências físicas severas e foi alvo de brincadeiras cruéis por suas ‘pernas de espaguete’. Quando aos onze anos, ele cabeceou um dos garotos que o humilhavam, descobriu o poder da violência e liberou um novo e incontrolável aspecto de sua personalidade. A partir disso, inicialmente, ele experimentou a ‘libertação’ que seu lado violento lhe proporcionou, mas ‘... por outro lado, vi que eu estava perdendo o controle do meu eu original e melhor e estava incorporando meu segundo e pior eu’ (p. 52).

Considerando-se suas relações familiares, de acordo com sua mãe, ele foi ‘um garotinho feliz, sortudo e muito considerado até os doze anos’. Contudo, o pai de Stuart era ausente, egoísta e violento. Quando criança, a violência do seu pai o horrorizava, mas ele oscilava entre o ódio e a admiração por seu genitor. Seu irmão mais velho estuprou tanto ele quanto sua irmã. Esta tentou se matar várias vezes e aquele irmão se matou, ao ser denunciado por Stuart. Este atacou outro irmão e ameaçou sua própria mãe com uma faca. Além disso, ele ameaçou sua namorada com uma faca, ameaçou matar seu próprio filho e tentou se matar, várias vezes. Tendo grande atração por tal objeto, seu modo de expressar o desprazer com as pessoas era correr atrás delas com ele. Fica evidente, assim, o ciclo destrutivo presente em sua família.

Na esteira disso, Stuart se tornou ladrão, sequestrador e psicopata, sendo que ‘seu comportamento na prisão foi diabólico’. Perguntado sobre o motivo de tanta confusão, ele respondeu: ‘Eu não sei, às vezes fica tão ruim que você não pensa em nada melhor do que torná-lo pior’. Seu quadro mental incluía forte sensação de ser observado e de ser ouvido pelos outros à sua revelia – junto com grande confusão mental. Em suas palavras: ‘a bebida e as drogas estavam governando a minha vida, então eu tinha que sair e roubar para pagar por elas, aí eu gastava esse dinheiro para pagar pelo vício, que era enorme, por causa do dinheiro que eu tinha obtido. Um grande estúpido, um grande estúpido é o meu nome do meio’ (p. 77). Contudo, segundo seu biógrafo, Stuart era um homem com forte senso de justiça e de honra, além de ser franco, divertido e pensativo. Ele tinha uma mente perspicaz e sede por conhecimento, refletidos em seu ávido interesse por documentários de arqueologia. E, mais, ele falava suavemente, sendo, ora convencido, ora benevolente (p. 78).

Na sequência de seus revezes, ele foi achado no subterrâneo de um estacionamento de carros de múltiplos andares. Tampouco os sem-teto regulares se aproximavam dele, chamando-o de ‘o homem da faca’ ou ‘aquele bastardo louco’. Ele foi um sem-teto caótico, uma categoria que não consegue encontrar um trabalho, um quarto ou uma garota, para colocá-lo nos eixos. Geralmente, os sem-teto caóticos são ex-detentos e ex-combatentes de guerra, mas não criminosos. Nesse universo, as overdoses de drogas, a hipotermia e as falhas do fígado e dos rins são comuns. Sua expectativa de vida é de quarenta e dois anos e eles tem trinta e cinco vezes mais probabilidade de cometer suicídio do que o restante da população. Eles lidam com os perigos da vida na rua – uns ameaçando os outros com agulhas hipodérmicas – tendo um frágil senso de fraternidade. Sem capacidade de se autogovernar e deixados sozinhos, eles estão constantemente à beira do colapso mental. Além do mais, os serviços de caridade são bastante duros com eles, por serem vistos como a pior parte dos sem-teto e por serem os mais odiados dentre eles (Masters, 2011).

Nesse contexto, como homem desempregado – com distúrbio físico, mental e dependência de álcool e drogas – ele recebia uma quantia considerável de dinheiro dos serviços sociais. A partir desse benefício, Stuart utilizou cola, álcool e heroína, se automutilou com navalhas e vidros quebrados, inclusive para cortar sua garganta, bem como injetou ácido cítrico em si mesmo. Com relação a esse percurso, ele diz: ‘Fui para as ruas, eu já estava roubando dinheiro da minha mãe para pagar as drogas, então, depois que eu perdi meu emprego e roubei, fui para a prisão’ (p.78). Este foi seu único roubo, com o objetivo de tornar-se rico rapidamente.

Ainda segundo seu biógrafo, durante cinco anos, ele respondeu a cada dificuldade significativa em sua vida com a intensidade de uma bomba explodindo. Seu senso de identidade estava dilacerado: ele oscilava entre o caos e o desejo de controle, entre o ódio a si e o ódio ao sistema – escola, prisão, tribunais. Sempre tentando impor ordem em sua vida, vivia entre o desejo de uma vida comum – comprar uma casa na Escócia – e o desejo por uma overdose, que lhe garantisse esquecer e se libertar de seu passado. Pois, sua vida era ‘desagradável e muito controversa’ (p. 80). Em face disso, as drogas eram um modo de bloquear suas memórias e sentimentos violentos, além de supostamente ajudá-lo a se aprumar na vida. Ele tinha vivido extremo horror e, então, ele aprendeu a se separar de sua infância. Ele falava sobre eventos anteriores como se fossem uma fotografia danificada: parte da imagem sempre parecia estar perdida, enquanto outros fragmentos eram recordados com forte intensidade de detalhes, mas eram cortados do contexto.

Outras facetas de sua vida mental se revelaram quando seu pai ficou doente e sua mãe saiu de casa para cuidar dele, Stuart teve medo de que seu padrasto partisse. Em seu relato: ‘... tive muito respeito pelo meu padrasto nessa época, pela maneira que ele cuidou de minha mãe e manteve a família unida, apesar de todos os problemas que eu tinha causado a eles’ (p. 79). Depois do funeral de seu pai, ele organizou – por ordem de importância – todas as coisas que ele iria fazer, tão logo se recuperasse da ressaca, após ser solto da prisão: ‘seguir em frente, tornar-se mecânico, seguir em frente e comprar um apartamento, seguir em frente, fumar um baseado, ao lado de outros planos’ (p.82).

No que se refere a isso, Masters (2011) ressalta que ‘uma coisa notável e extraordinária ocorreu nesse período’, quando Stuart não esteve tão envolvido no mundo das drogas. Ele se separou da comunidade de rua, foi a um conselho municipal de moradia, começou um programa de desintoxicação, renegociou questões nos tribunais, comprou um computador com desconto e tornou-se advogado dos sem-teto. Sua determinação era admirável, ao se arrastar até a unidade de tratamento de drogas toda semana, apesar da crescente fraqueza em suas pernas. Portanto, ao fazê-lo, ele ainda tinha um número suficiente de células cerebrais não destruídas pelas drogas e pelo álcool. Entretanto, dadas suas oscilações de humor, ele acabou se atirando na frente de um trem.

Discussão

Nesta seção, o uso de itálicos visa ressaltar as representações e os afetos que marcam o mundo mental do biografado.

De início, as teorizações psiquiátrica e psicanalítica acerca do transtorno borderline complementam uma à outra. Além do mais, alguns aspectos são relatados em ambas: conflitos de identidade na relação com o outro, instabilidade emocional, sensação de vazio e intenso sofrimento psíquico. Para isso, suas relações com a família, a escola – alunos e professores – e com outros moradores de rua são cruciais.

Primeiramente, a traição de Stuart por familiares que deveriam protegê-lo – mas que foram predadores mentais e sexuais – revela relações familiares altamente patológicas. Aliás, a afirmação de sua mãe de que ele era feliz e sortudo até aos doze anos é desmentida por sua história de vida. Nesse sentido, tal afirmação revela a negação da realidade feita por ela, agravada pelo fato de ela não ter protegido os dois filhos – estuprados pelo irmão mais velho. A violência psíquica e física presente nesses estupros repetitivos é desmedida e altamente cruel. Nessa medida, seu irmão e sua mãe devem ter sido representados, por ele, como traidores desprezíveis. A isso, se soma a traição da babá e do professor, novos estupradores, que deveriam tê-lo protegido do sofrimento – pois ele era portador de necessidades especiais. Dessa forma, esses objetos humanos predadores foram altamente destrutivos de seu eu.

Além disso, a violência paterna lhe causava horror e favoreceu sua identificação contraditória com seu pai – ora admirado, ora odiado por ele; ora atraente, ora repulsivo para ele. Com esses elementos psicológicos impactantes, sua oscilação e sua instabilidade mentais – típicas do transtorno borderline – se agravaram (Dalgalarrondo, 2008; Zimerman, 2007). Junto com isso, sua identificação com seu irmão violento teria favorecido as representações de ele ser violento e ser incontrolável com as pessoas. Diferente dos demais, seu padrasto/objeto secundário teria sido o único modelo de identificação positivo para ele, talvez amenizando sua identificação contraditória com seu pai/objeto primário e seu irmão (Freud, 1900/2006; Kaës, 2001). Logo, seus modelos de identificação – masculinos e femininos – foram devastadores para seu eu e seu ódio e horror a eles parece inequívoco. Assim, ele vivenciou extremo ódio e horror na infância, que o transformou em um violento fugitivo – de si, das relações e do mundo – devido às violências e traições afetivas incomensuráveis impostas a ele, desde criança (Almeida, 2010).

Além disso, os paradoxos vividos nessas relações denotam a destrutividade em sua família e em sua escola. Com essa herança, prevaleceram seus comportamentos autodestrutivos e destrutivos na relação com os outros, que se juntam aos paradoxos em seu sistema representacional. Nesse aspecto, sua resposta sobre o motivo de seu comportamento violento na prisão retrata um pensamento paradoxal: ‘não sei, às vezes fica tão ruim que você não pensa em nada melhor do que torná-lo pior’. Quanto aos paradoxos, suas perdas imperaram sobre seus ganhos, bem como sua exclusão superou sua inclusão nos grupos. Nessa medida, mantiveram-no preso a uma compreensão da experiência, que o deixou ‘sem saída’ (Almeida, 2010; Almeida, 2016).

Paradoxalmente, sua atração por objetos secundários (i)material-simbólicos destrutivos – drogas e álcool – visava atenuar seu sofrimento psíquico com os objetos humanos destrutivos. Em meio a isso, a arqueologia constituiu seu único objeto secundário (i)material-simbólico não destrutivo.

Suas vivências mentais de ser humilhado, ser inferiorizado e ser excluído na escola – em virtude de sua distrofia muscular – se somavam as de ser excluído por outros excluídos – homens sem-teto – e por pessoas do serviço social. Assim sendo, apesar de ele tentar impor ordem à sua vida mental, ele oscilava entre o caos e o desejo de controle de seu eu, entre o ódio a si e o ódio ao mundo, entre o desejo de uma vida comum e o desejo por uma overdose, para se libertar de seu passado. Essa descrição retrata a dissociação de seu eu, igualmente presente em seu relato acerca da ‘libertação’ – proporcionada por seu lado violento – à custa da perda do controle de seu ‘eu melhor e original’ e com o ônus de incorporar seu ‘segundo e pior eu’.

Representações do trauma do absoluto – ser abandonado, ser desamparado, ser rejeitado, ser excluído, ser sofredor para sempre e sem lugar no mundo, investidas por forte ódio e horror – retratam seu profundo sofrimento psíquico. Quanto a isso, seu biógrafo relata que ele tinha vivido horror suficiente em sua vida e que aprendeu a se separar de sua infância. Nessa medida, Masters (2011) descreve, mais uma vez, as defesas psíquicas da repressão e da dissociação de seu eu. E, mais, a fragmentação de seu eu aparece em: ‘ele frequentemente falava sobre eventos anteriores como se estudasse uma fotografia danificada; parte da imagem sempre parecia estar perdida, enquanto outros fragmentos eram recordados com forte intensidade de detalhes, mas cortados do contexto (p. 48).

Entretanto, como Stuart não pode trabalhar as representações de si e de seus objetos – com sua forte carga de ódio e horror – e tampouco seus paradoxos mentais, não lhe foi possível realizar seus desejos no mundo das relações. Estes desejos incluíam: ‘comprar uma casa na Escócia, seguir em frente, tornar-se mecânico, seguir em frente e comprar um apartamento, seguir em frente, ao lado de outros planos’ (Almeida, 2010; Almeida, 2016).

Considerações finais

Uma série de fatores trágicos marcou toda a vida de Stuart Shorter. Esses fatores compreendem: sua herança genética no plano cerebral – transtorno borderline – e no plano físico – distrofia muscular agravada com o tempo – bem como seu convívio em ambientes caóticos. Esses fatores ambientais caóticos incluem: família extremamente agressiva e destrutiva – irmão estuprador, pai violento, mãe incapaz de proteger os filhos, babá estupradora – e escola – professor estuprador. Outros grupos como assistentes sociais e pessoas sem-teto, igualmente, contribuíram para seu sofrimento mental.

As relações violentas em sua família parecem decorrer de traumas que atravessaram suas gerações e produziram intensos ódio e horror. Logo, sua catástrofe psíquica se deveu à violência perpetrada contra ele por essas pessoas significativas e às suas reações violentas a elas. Os limites de sua – e de qualquer mente – para lidar com essa carga favoreceram seu colapso mental. Nessa sequência de revezes, a única pessoa amorosa que valorizou Stuart foi seu biógrafo, que, infelizmente, só teve contato com ele no período final de sua vida.

Referências

Almeida, M. E. S. (2003). A Clínica do Absoluto: Representações Sobre-investidas que tendem a deter o Encadeamento Associativo. (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Almeida, M. E. S. (2010). Uma proposta sobre a transgeracionalidade: o trauma do absoluto. Ágora Revista de Psicanálise, vol.13, n.1, pp.93-108.

Almeida, M. E. S. (2015). O ganho, a perda e os paradoxos no enfoque transgeracional. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, vol.8, n.1, pp 37-50.

Almeida, M. E. S. (2016). Constituição especular do desejo e a atualização no adulto. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, vol.9, n.1, pp. 17-31.

Castel, R. (1995). Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Gallimard.

Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.

Kaës, R. (1998) "A parte maldita da herança", in EIGUER, A. (org.) A transmissão do psiquismo entre gerações, São Paulo: Unimarco, p. 21-84.

Glasser, I. (1994). Homelessness in global perspective. New York: Hall & Co.

Masters, A. (2011). Stuart: a life backwards. New York: Harper Collins.

Zimerman, D.E. (2007). Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clinica. Porto Alegre: Artmed.

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Se vc quiser conversar sobre este ou qq outro texto, vou adorar.

Bj Maria Emilia

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 17/11/2020
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