Lulismo e bolsonarismo
Dizem os cientistas políticos, o lulismo veio inaugurar a consciência de classe no Brasil. Classe no sentido daqueles que ganham a vida com o próprio trabalho, e que vivem constante risco de desemprego ou de aviltamento dos salários e perda das condições de ter uma vida digna. A grande maioria dos que pertencem a esta classe é de operários. O lulismo surgiu justamente da organização sindical de operários metalúrgicos das grandes fábricas paulistas.
Esta consciência de classe só prosperou graças à possibilidade de organização sindical nas grandes fábricas e a um líder carismático. Os sindicatos viraram partido político, o partido político cresceu, conquistou prefeituras, estados, a presidência da república. A consciência de classe e o lulismo espalharam-se pelo Brasil. O apoio popular, acrescido da parte progressista das classes privilegiadas, cresceu. O Partido dos Trabalhadores tornou-se o maior do país, Lula ensejou o lulismo. No governo, o PT escolheu um rumo ainda a ser bem analisado e compreendido: procurou uma reforma lenta, melhorou aos poucos as condições de vida dos mais pobres, mas sem ameaçar os privilégios dos mais ricos. Diminuiu a miséria, mas não logrou aprofundar o engajamento e a consciência política da classe trabalhadora.
Isto não impediu que o segregacionismo e o medo fizessem os privilegiados atacarem ferozmente o PT e Lula: sequestradores de Abílio Diniz com camisetas do partido enfiadas pela polícia, imputação de toda a corrupção do país ao PT, massacre midiático, sabotagem do governo Dilma e golpe, prisão de Lula, o insano que esfaqueou Bolsonaro também com camisa vermelha enfiada pela polícia, são só algumas das tramoias para destruir o lulismo. Se conseguiram de fato fazê-lo ou não, o tempo dirá. Lula e PT ainda têm muita força.
Sem o prever, as elites engendraram Bolsonaro e o bolsonarismo. A criatura surpreendeu, e assusta, seus criadores. Claro, eles não queriam bem um Bolsonaro, este se mostrou um oportunista sagaz, respaldado pelas mesmas forças já não ocultas que antes viabilizaram o Brexit e Trump: a disseminação de mentiras nas redes sociais. Bolsonaro, embora não fosse o preferido, ao mesmo tempo que distrai a atenção da população com patetadas diárias, vai avançando na pauta que vai destruindo o Estado, loteando o país e aprofundando o fosso entre a multidão de empobrecidos e os privilegiados cada vez mais ricos. Um fantoche, está cumprindo bem o papel que os privilegiados desejavam que um governo pós-lulismo cumprisse.
O fenômeno Bolsonaro trouxe o bolsonarismo. Os apoiadores e votantes do capitão reformado não estão só na direção das federações e grandes corporações, na classe média retrógrada que enche as ruas das grandes cidades com bizarras manifestações, na malta de lambe-botas que cerca o mito em suas aparições públicas, nos comandos militares acostumados às ordens sem questionamento, nos politiqueiros sanguessugas. O bolsonarismo fanático está também na família de agricultores e de operários despossuídos, nos desempregados e subempregados, nos profissionais do sucateado sistema de ensino, nos militares de baixa patente, nos fiéis evangélicos, nas mulheres assediadas, nas segregadas minorias étnicas, de gênero, etc.
Como explicar o bolsonarismo e sua virulenta e indiscriminada disseminação? Decerto em parte é resultado da poderosa campanha de demonização contra o PT e Lula, regiamente financiada pelos ricos que não querem compartilhar seus privilégios. Decerto é pela falta de um entendimento mais firme de consciência de classe e política da população explorada. Decerto é pela ilusão de um outro caminho capaz de trazer prosperidade e justiça social ao país. Mas só isso não explica tudo o que caracteriza o bolsonarismo, que inclui no sua prática a discriminação, a violência, o negacionismo, a boçalidade e a mentira vulgarizadas. Qual o algo mais que justificaria o bolsonarismo?
Há analistas que explicam que a capilaridade do bolsonarismo dentro das várias camadas econômicas e sociais está alicerçada em fatores psicológicos, e não sociais. Os bolsonaristas na verdade identificam-se com a truculência, o despotismo, a ignorância e a chulice do seu mito. São indivíduos assombrados por seus fantasmas pessoais que não conseguem estender sua compreensão para além de si mesmos, para a complicada dimensão dos problemas sociais. A identidade do bolsonarismo não estaria, então, numa classe social, mas num traço de personalidade.
Afinal, parece que voltamos ao velho dilema humano, que Buda, Cristo, Maomé e tantos outros tentaram elucidar: entre o egocentrismo e a solidariedade, só esta última salva.