A DITADURA DA DEMOCRACIA TUPINIQUIM

Quatro segundos. Este foi o tempo que a jogadora de vôlei Carol Solberg utilizou em rede nacional de TV fechada, para despertar, com seu grito de “Fora Bolsonaro!”, mais uma polêmica que figurou entre os assuntos mais comentados e debatidos do país, nos últimos dias. As consequências para ela, para o modo como fazemos e enxergamos Política e especialmente, para o esporte, ainda são incógnitas.

Em 2018, os jogadores Maurício Souza e Wallace, da seleção masculina de vôlei, também expressaram suas preferências políticas, durante uma competição oficial, após vitória no tie-break sobre a seleção francesa, pela segunda rodada do Mundial Masculino de Vôlei daquele ano: numa foto – que inclusive fora publicada e posteriormente apagada pelo perfil oficial da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV)-, Maurício aparece fazendo o número um com o dedo, enquanto Wallace, ao lado, o imita, fazendo o número sete, numa referência ao número (17) do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro. Neste caso, as consequências para os jogadores não passaram de uma tímida e indireta reprimenda da CBV, por meio de nota oficial, afirmando que, a partir daquele episódio, tomaria providências para coibir e punir eventuais manifestações políticas de seus atletas em competições oficiais.

Tomando como base recente denúncia, pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), em desfavor da jogadora Carol Solberg e a previsão de que, em caso de condenação, a multa infligida possa chegar aos R$ 100 mil, a promessa foi cumprida.

O caso da atleta gerou mais uma infindável polêmica, pincelada com as recentes e preocupantes matizes políticas do “se está contra o meu político/minha ideologia, é meu inimigo”: veículos de imprensa, desportistas de várias modalidades e até mesmo populares que até então não tinham traço de interesse sobre esportes, entraram no debate. Afinal de contas, todos exercemos a Política, ainda que a maioria de nós cometa o crasso erro de confundi-la com a nociva e recorrente Politicagem.

Entre os argumentos calcados por aqueles que defendem o direito – para alguns, dever – de Carol se posicionar politicamente, mesmo durante a prática de seu ofício, estão acusações de sexismo (na comparação com o caso dos atletas masculinos), contra a jogadora.

Por outro lado, os que discordam da atitude de Carol defendem que atletas devem restringir suas manifestações a temas relativos ao seu ofício, enquanto estiverem exercendo-o, sob pena de incitar paixões e criar problemas que não têm nada a ver com aqueles típicos do esporte, como – alegam- acontece agora.

Há umas boas décadas, o Brasil acompanha uma escalada das tensões políticas, com lados “A” e “B” denominando-se “arautos de boas novas” e supostamente movidos pelas melhores intenções para o país e, consequentemente, para nós, povo.

Começando com Collor x Lula no século passado, e chegando ao mais recente “Resto do Mundo” x Bolsonaro, as tensões afloraram ao antes inimaginável ponto de famílias, amigos e amantes protagonizarem separações efetivas (torço para que não duradouras), com base em divergências políticas que, ao invés daquilo, deveriam enriquecer nossa capacidade de argumentação e análise sobre fatos.

A perfeitamente racional Dialética Hegeliana passa longe de nossos dias, enquanto Nação. E a Democracia começa a definhar, sendo implodida por dentro, ironicamente por todos que usam-na como mote para seus inflamados discursos contra “o outro lado”.

Outro aspecto intrigante da jovem e confusa democracia brasileira, é aquele que recentemente começou a ditar uma suposta “obrigatoriedade” à manifestação pública dos silentes por opção, sob pena de serem taxados como “apoiadores do outro lado” ou até mesmo como qualquer “-ista” do modismo vigente: “fascista” tem sido o preferido de um dos lados, enquanto “comunista” emplaca do outro.

O fato de interesse é que ambos os lados esquecem que aqueles que guardam silêncio sobre determinadas questões estão exercendo o democrático direito de abster-se dos debates, por razões personalíssimas e que não nos cabe questionar; que as ininterruptas e muitas vezes até violentas cobranças por manifestações das ditas “figuras públicas” - famosos por qualquer motivo- sobre qualquer tema, ainda que de interesse coletivo, em nada se coadunam com os fundamentos basilares da Democracia que dizem defender.

Naquela que ficou conhecida como Era da Informação, estamos vivenciando situações paradoxais: o acesso à comunicação de modo geral nunca foi tão difundido em milênios de existência da Humanidade, mas para além da aparente cacofonia que impede a compreensão mútua, nunca nos sentimos tão isolados, deprimidos e propensos ao suicídio; ao tempo em que, por maiores que sejam as facilidades de acesso à informação e ao conhecimento, optamos por nos atermos às notícias falsas (popularizadas pelo termo “fake news”), na ânsia de nos municiarmos de argumentos contra nossos inimigos (?) políticos, ainda que sabidamente falsos: os fatos deram lugar à guerra de narrativas, na disputa pelas cognitivamente prejudicadas mentes de uma significativa parcela dos brasileiros. E estes, conhecemos como “militantes políticos”.

A recém-criada “Cultura do Cancelamento”, um dos últimos modismos binários exaustivamente exercido e difundido na Terra Brasilis, vem no bojo de tais bizarrices digitais: nos tornamos juízes sumários e algozes instantâneos do desafeto da vez, num tribunal de milhões de anônimos, que não prevê direito à ampla defesa e ao contraditório (um dos pilares do Estado Democrático de Direito), influenciados por um punhado de ditos “influenciadores” - sejam políticos ou nossos pretensos pares do dia a dia. Ironicamente, muitos dos quais criticam os programas policialescos que sempre promoveram o mesmo movimento, com suas matérias muitas vezes sensacionalistas.

Assim, aqueles que não se posicionam ou o fazem da forma “errada”, na visão de um dos lados, estão condenados a sofrer as agruras impostas por uma turba predominantemente irracional: boicotes comerciais, perda de patrocinadores, reputação, bens e, em alguns casos, a própria sanidade, não raro descambando em sofrimento patológico do apontado “réu”: a sanha justiceira dos fantoches binários fora servida...por enquanto.

Quem sabe, resida naquela necessidade punitiva, estimulada por aquele punhado de “influenciadores”, a gênese de boa parte de nossa estupidez social atual: alguém que cometemos o erro de admirar e concordar sem ressalvas ou filtros afirma o que devemos fazer, como pensar, agir e até mesmo viver, provocando um efeito manada que transforma todos os “seguidores” em munição direcionada – ainda que não declarada - contra aqueles que discordam ou simplesmente preferem não opinar.

Talvez seja por isto que tantas pessoas sentem a necessidade de expressar (em algumas vezes, até criar) suas revoltas, ojeriza, antipatia, contra esta ou aquela figura pública, ideia, conceito, sistema político ou econômico, numa ânsia pela aprovação social que parece se tornar mais valiosa que nossa particular consciência pessoal, ou até mesmo nossa essência.

Não conheço sua posição sobre os temas aqui abordados, não sei se você fez um (ou vários) muxoxo (s) enquanto lia, se entendeu, concordou ou não com minha proposta de raciocínio, tomando como base a situação elencada nos primeiros parágrafos e seus desdobramentos.

O que importa é que você entenda que não tem obrigação de expressar e eu – ou qualquer outra pessoa, neste país- não tenho o direito de exigir que você se manifeste sobre este ou qualquer outro assunto, uma vez que opiniões são de cunho estritamente pessoal e, reitero: ainda que sobre temas que influenciam a coletividade.

Ao contrário do que muitos imaginam ou fingem esquecer, o exercício da abstenção encontra cristalina guarida na tão decantada Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso II, quando afirma que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Se os lados “A” e “B” afirmam “defender a Lei e lutar pela Democracia”, soa no mínimo contraditório o desejo de forçar que todos opinem sobre todos os assuntos que lhes interessam, todos os dias, ou quando convém à visão de mundo/política que defendem.

Lembrar que temos e podemos exercer nossa capacidade de discernir sobre o que são demandas legítimas ou manipulações disfarçadas de “empoderamento”, pode nos auxiliar a fugir de tais maniqueísmos políticos, das cordas daqueles que nos julgam fantoches descerebrados.

Pense sobre isto e chegue às suas próprias conclusões.

Gustavo Marinho
Enviado por Gustavo Marinho em 04/10/2020
Reeditado em 05/10/2020
Código do texto: T7079783
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