A perspectiva da existência

Quando escrevemos automaticamente como medida de compreensão, tentamos nos conectar ao Outro. A escrita, em si, é tomar a liberdade de dizer o que é silenciado por diversas vezes, é fazer jorrar as palavras não ditas pelo temor de, ao dizê-las, sofrer no corpo a retaliação por ter coragem.

A exclusão, o afastamento, a indiferença, o estigma da preta “problemática”, “beligerante”, “persona non grata” recai sobre o corpo de quem sofre, e sofre calada, mas que, não por poucas vezes, sente vontade de falar. Só falar... falar. Mas cala. Cala, calada. Silencia, o silêncio dela chia. Mas chia com revolta, perguntando o porquê ele ainda se mantém preso na garganta dela, que, ao contrário dele, quer falar.

Do que eu tanto narro, e digo que não falo, e calo, na escrita e na narrativa?

É a dor, a vontade de ser ouvida. Ouvida por si mesma, que de tanto pelejar com observações externas já está cansada de só reparar.

O ego de quem se esbanja nos privilégios sociais se impõe. A forma de lhe medir, passando os olhos fiscalizadores pelo corpo negro, traduz-se num tom de investigação, de suspeita... Como se o defeito já fosse inerente à natureza do que é negróide. Como se a regra fosse encontrar fundamento para dar razão ao velho pretexto de que negro é incômodo, é torto, é errado, é descontextualizado, é desnaturalizado, é naturalizado para ser... somente negro.

Se negro for substantivo que emerge do comportamento subalterno, eu me nego a ser negra. Se negro for adjetivo atrelado ao que não se enquadra ao branco, por ele não me qualifico.

Se ser negro for geografia de autorreconhecimento em meio a um espaço que categoriza a raça por sobreposição de poder, eu não me ponho. Não posso, não tenho como... A quem pertence a minha identidade étnica? Aliás, a quem interessa me identificar enquanto negra?

Preta sou para os meus, significante de mútuo reconhecimento, símbolo de dignidade. Nega sou para os titubeantes, que entre a vontade de se referir ou ao menos perguntar pelo prenome que consta no meu registro civil, prefere me chamar por um vulgo que nem a mim cabe e que, por obséquio, não cabe a nenhuma mulher negra, a não ser que queiram abraçar os estereótipos sob o falacioso argumento de que é só mais uma forma carinhosa (sic) de nos apelidar.

Doutora é mais questionável quando dirigida a uma pessoa negra, já que, não basta ter de chamar pelo nome, ainda tem de lembrar que faculdade não é mais um rígido privilégio e que, hoje, há letradas negras, há escritas negras, há intelectualidade negra e que, por sinal, sempre existiu, conquanto, hoje não silenciam mais.

Mas você tem doutorado? Só é doutor quem tem! Basta uns fios dourados, ainda que tingidos, que o respeito se impõe e nem precisam mais de títulos comprovados, até aulas podem dar sem ter de dar explicações.

Entram livremente nos espaços letrados, sem crachá, sem ter de calcular como bem se comportar para NÃO aparentarem serem suspeitos... suspeitos de vários estereótipos, suspeitos por nada terem feito, suspeitos porque podem fazer algo a qualquer momento, suspeitos porque são propícios ao crime, suspeitos porque são dignos de todos os tipos de suspeições, suspeitos até para ressignificar o significado de suspeito, suspeito a tal ponto de suspeição virar sinônimo de condenados.

As palavras “suspeito” e “negro” são postas lado a lado. Juntas essas significam condenação. Já nascem condenados a serem suspeitos, já morrem declarados culpados.

Olhos atentos, todos prestem atenção, reparem se não irão cair, derramar, sujar, cuspir, pisar fora, exagerar, xingar, esbravejar, badernar, matar, descumprir, gritar, desobedecer... Aquele mesmo padrão de plateia te espera e te espreita. É assim que eles nos olham. É assim que aguardam com a etiqueta do estereótipo na mão, cuja outrora era o ferro que marcava, como eles chamavam, o “escravo fujão”, prontos a colarem nos corpos negros os seus discursos de ódio, o racismo disfarçado de opinião, o repúdio mascarado com um sorriso falso que só é dado para não ser apontado como vilão.

É assim que somos vistos. A qualquer pulo fora da cerca, gritam o capataz para capturar o negro de volta à... senzala? Não. Seria injusto com nossos irmãos que, infelizmente, passaram por ela. Mas, digamos que, tentam nos capturar de volta à prisão mental da submissão, de volta à manutenção da postura cabisbaixa, do olhar receoso, do pescoço curvado, dos ombros concavados indo de encontro ao chão.

Tentam prender-nos pelos corpos, e assim ainda fazem, mas, prestem atenção, na mente também nos sabotam. É só demonstrar intelectualidade, sapiência, eloquência... Eles dão de costas, tergiversam... fingem que você não falou, atropelam sua fala no desespero para tomar a rédea do discurso, para comprar a conversa, para não alforriar o verbo decoloniado, para não reconhecer a liberdade de ir e vir, a liberdade de SER HUMANO, a liberdade de se expressar do não-branco.

Como pode, aquele em quem alimento meu ego, aquele que serve de parâmetro, suprimento, provisão e mantença da minha vaidade, da minha suposta superioridade, do meu pacto narcísico, ousar a se libertar das correntes do pensar inferiorizado que dele possuo?

Quando lemos automaticamente buscamos algum modo de compreensão, tentamos nos conectar ao que está sendo transmitido, quanto mais melanina em ti houver, maior compreensão deste artigo.

02/10/2020 – 20:33h

Maisalobo
Enviado por Maisalobo em 02/10/2020
Reeditado em 17/11/2020
Código do texto: T7078098
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