Livros na fogueira

Não faz muito que uso celular. Não gosto do exagero com que se abusa das ditas mídias sociais, procuro usá-las o menos possível. Ainda assim, recebo muita coisa que me faz pensar que estamos regredindo na capacidade de nos comunicarmos, de forma inversa ao prodigioso avanço na tecnologia de comunicação. Ou seria tecnologia de doutrinação?

Recebi um vídeo no qual uma encanecida senhorinha, com ares de uma bondosa avozinha, junto com o senhorinho queimavam livros de Paulo Coelho na churrasqueira. Ela não estava para as ternuras das vovós. Estava enraivecida. Com palavrões indizíveis diante de netos ofendia o autor dos livros, acusando-o de canalha, comunista, petista que fala mal do Brasil e pede para boicotarem os produtos do país. A furiosa avozinha dizia ter lido já dez livros do Bruxo, enquanto, arrancando as páginas de um deles, ia jogando-as sobre as labaredas e desfiando seu rosário de imprecações. E finaliza esconjurando o autor para o inferno.

Nunca curti Paulo Coelho. Li o primeiro livro, para não encompridar motivos, digo que não gostei do estilo, não gosto do gênero. Como diria uma estimada e saudosa amiga "-- Gosto não se discute; se lamenta!" -- Não vi o que ele andou falando para enfurecer tanto a senhorinha, mas suspeito que se o Capiroto tiver que escolher entre o autor e o casal de incendiários avós para ter a seu lado lá nas profundezas, não vai ter dúvida. Pobres avós, parece que chegaram à velhice sem que a vida tenha-lhes acrescentado sabedoria e bondade. E suspeito que na verdade o Bruxo não falou mal do Brasil, nem dos brasileiros. Deve, sim, ter dito diabruras do irresponsável desgoverno que anda arruinando o país.

Mas que vídeo intrigante, incita à reflexão! O que teria feito o casal de velhinhos passar a odiar tanto o antes apreciado escritor? Paulo Coelho não é a primeira celebridade brasileira fustigada pela ira de antes supostos pacíficos cidadãos. Junto com ele estão Chico Buarque, Paulo Freire, Marilena Chauí e tantos outros. O que anda acontecendo? A senhorinha do vídeo incendiário diz ter lido dez livros do Bruxo. Por certo viu algo de proveitoso. O que a teria feito mudar de opinião tão radicalmente?

É possível que nossa opinião nunca antes tenha estado tão à mercê da tecnologia de informação que sabidamente nos manipula, nos doutrina. Se alguém ainda duvida disso, veja o documentário “O dilema das redes” (2020, direção de Jeff Orlowski), que revela como nossas escolhas têm sido governadas pelos onipresentes sistemas de controle da informação. Deixamos de ser usuários ou consumidores, passamos a ser o produto que é oferecido aos verdadeiros consumidores: os fazedores de opinião.

O casal incendiário gostava do Paulo Coelho, leu dez livros dele. Mas o autor passou a receber deles os qualificativos de canalha, f.d.p. e outras baixarias. E, no dizer dos idosos, é um comunista, petista, que deveria mudar-se para Cuba, Venezuela ou a China, e não viver no bem-bom da Suíça.

Trata-se de uma revisão de entendimentos, que vem com a acrescentada sabedoria da velhice? Não me parece. O que tem mudado nas últimas décadas é o poder de manipulação das tecnologias midiáticas. Até idosos com gostos consolidados mudam suas convicções, e queimam na fogueira as referências anteriores. Talvez não tenham aprendido nada com elas? Queimar livros é um histórico símbolo de incompreensão e retrocesso obscurantista.

O que mais preocupa é constatar como somos vulneráveis à manipulação. Não soubemos controlar as tecnologias de informação. Então estamos sendo controlados por elas.