NÃO FOI APENAS UM CASO ISOLADO
Adianto que este não é um assunto tipicamente escrito para as redes sociais, pois salvo poucas exceções, é um lugar onde quase sempre se prevalece o senso comum, a generalização e pouco aprofundamento do senso crítico, embora também não seja um texto acadêmico. Destaco também que não vejo este momento como uma oportunidade de jogar confetes e rasgar elogios aos militares, pois o momento é de profunda reflexão, não somente sobre o trabalho destes importantes profissionais, mas também sobre o comportamento da nossa sociedade.
Permitam-me discordar de quem pensa diferente, mas a agressão do policial militar contra a pedagoga Eliane Silva, de 39 anos, (ocorrida na cidade de Macapá-AP em 18/09/2020) não foi apenas um “caso isolado” como alguns insistem em dizer publicamente. Isolado mesmo talvez seja a coincidência de se tratar de uma mulher, negra, professora e ter tido a sorte de ter toda a agressão registrada em vídeo.
Se fosse o único caso não haveria motivo de tanta reação e comoção da sociedade. Não teríamos razão alguma para continuarmos nos manifestando se tivéssemos certeza de que isso não iria acontecer outras vezes. No fundo, quando pedimos paz para todos, estamos também tentando nos livrar individualmente da violência que sabiamente a repelimos.
Também não há como dizer – baseando exclusivamente nas imagens - que não houve excesso por parte do PM, ao dar uma rasteira e um soco na cabeça da mulher quando ela já estava no chão em completa desvantagem. Até em esportes mais violentos como o MMA, o juiz costuma interromper a luta em circunstâncias idênticas!
Se não foi um caso isolado, por outro lado também não há razão de generalizarmos e passarmos a ter receio de todos os policiais, afinal, são eles a quem nos socorremos sempre quando estamos em perigo e a maioria realmente é composta de profissionais competentes e equilibrados emocionalmente.
Envidar esforços para tapar o Sol com a peneira neste momento tentando nos convencer publicamente de que situações como aquela não ocorrem no cotidiano das pessoas é mais um agravante, pois no nosso consciente ou inconsciente há sempre o medo de que aconteça conosco algo tão grave ou até pior do que vitimou a professora. As vítimas das agressões policiais estão sempre à espera – mesma que ela não venha – de uma retaliação nada amistosa.
Mirabete (1998) e Guimarães (1999) apontam que a atividade militar não se resume ao serviço diário, a função implica em constante estado de alerta, mesmo quando o profissional está em momento de descanso. A profissão do policial requer que este indivíduo atue no confronto contra a conduta irregular ou criminosa da sociedade, defendendo cidadãos.
Apesar das fortíssimas evidências, inclusive com os insultos, também não há certeza absoluta de que o policial tenha agido daquela forma motivado exclusivamente pelo racismo. Não deveríamos condenar sumariamente toda a biografia de uma pessoa baseada apenas em uma atitude, portanto, é preciso avaliar toda a vida pregressa do agressor, sua conduta e comportamento no cotidiano. Há pessoas muito boas que também surtam e fazem as piores besteiras. Seria justo condená-las para o resto da vida por uma “ação isolada”?
Utilizo-me das palavras de Shakespeare: “Você descobre que se levam anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante das quais se arrependerá pelo resto da vida”.
Antes de escrever esse texto, tive o cuidado de conversar informalmente com policiais militares que são meus amigos e também com pessoas que em algum momento da vida se sentiram desrespeitadas, insultadas e agredidas pelos profissionais da segurança pública. É interessante destacar que alguns militares assumiram que se sentem incomodados com pessoas filmando ou fotografando suas abordagens, entretanto, também acreditam que é uma nova realidade com a qual terão que aprender a lidar.
Confesso que mesmo sendo jornalista, nunca gostei de fazer registro das abordagens policiais sem a devida autorização dos mesmos. Acredito, sinceramente, que a minha presença ali já é algo que pode contribuir para amenizar possíveis exacerbamentos. E mesmo com a autorização deles, nunca fui um repórter ávido por imagens, especialmente aquelas que sejam violentas e que possam causar choque nos leitores.
Entre aqueles que conversaram comigo, foram unânimes em assumir que, por uma questão de sobrevivência (não exatamente de vida e morte, mas de manutenção do emprego e boa relação com os poderosos), são obrigados a reproduzirem a discriminação e segregação social, ou seja, muitas vezes o policial precisa fazer vista grossa e atenuar os procedimentos de praxe em algumas abordagens por se tratar de autoridades, grandes empresários e pessoas poderosas. “Quem garante que dentro de um carro importado luxuoso não existam grandes quantidades de armas ilegais e entorpecentes? Fazer esses procedimentos de forma diferenciada dói na nossa consciência, mas não podemos ir o tempo todo contra o sistema”, confidenciou um deles.
Assim como a frase célebre do livro de Orwell: “todos iguais, mas uns mais iguais que os outros” – que também foi usada numa canção da banda Engenheiros do Hawaii – tem sido as nossas relações sociais. De fato, nem a polícia e praticamente ninguém dá as pessoas o mesmíssimo tratamento. A polícia, que busca ter todos os cuidados na abordagem com as altas autoridades, é exatamente a mesma que invade as casas da periferia e entra em confronto com bandidos ou simplesmente suspeitos, diante das famílias, crianças e idosos. Cabendo ressaltar que sempre há exceções.
Sendo aquela pedagoga uma jovem loura, linda como as modelos que atendem aos padrões de beleza atuais, a reação do policial seria exatamente a mesma? Perdoe-me pela ousadia, mas é uma pergunta que inquieta meu coração. Aliás, a crítica não é direcionada ao militar apenas, mas uma reflexão à nossa sociedade que naturalmente quando uma pessoa jovem e bonita morre utiliza expressões que parecem de praxe tais como “era tão jovem, linda e tinha toda vida pela frente...”
Silva e Leite (2007) chamam atenção para o fato de que, muitas vezes, os policiais são tidos pela população como violentos e imprevisíveis. Muitos cidadãos, sobretudo aqueles que vivem em áreas periféricas e violentas ou em contextos de favelas, não confiam no policial, pois julgam que os mesmos apresentam conduta discriminatória e, por vezes, duvidosa diante da comunidade. Desse modo, a figura do policial fica prejudicada, especialmente quando se considera que diversos policiais demonstram uma conduta profissional respaldada na ética e na responsabilidade de seus atos.
Espero sinceramente que, movida pela comoção social e o apelo de autoridades e famosos, a justiça não puna o agressor com uma pena além da prevista na lei e no código de conduta, afinal, como afirmei no princípio desse texto, não se trata de um caso isolado. Difícil é a missão da polícia, que é cobrada maciçamente pela sociedade para que seja dura com os bandidos e ao mesmo tempo é severamente criticada quando comete falhas ou quando simplesmente os bandidos são os nossos parentes ou amigos.
No fundo, somos todos seres humanos, passíveis dos mesmos erros, acertos e desequilíbrio emocional. Nunca haverá um sentimento de justiça de todas as partes envolvidas em um crime, pelo contrário, sempre haverá um queixume. Espero que casos como este sirvam de aprendizagem para todos nós, inclusive para que a polícia reveja seus procedimentos e abordagens, e que os cidadãos de bem – que nada devem a ninguém – também sejam mais receptivos às ações dos agentes e percebam que eles só estão cumprindo com as suas funções.
O ser humano é naturalmente paradoxal. O que é bom para um parece fazer muito mal para o outro! Eu, talvez por andar sempre com o veículo e carteira de habilitação regulares, fico feliz em ver os agentes de trânsito e a polícia atuando, porém, há pessoas, inclusive autoridades, que ficam muito chateadas com as blitzes. Pode parecer mentira, mas já vi vereadores ensandecidos com as blitzes da polícia!
A paz que tanto exigimos dos outros, também deve receber a colaboração de cada um de nós, a começar pela tentativa de compreender o outro e com a prática de pequenos gestos de carinho e gentileza.
______________________________________________
*Professor, Licenciado em Pedagogia e Letras, pós-graduado em Gestão e Docência do Ensino Superior e formando em Jornalismo.
REFERÊNCIAS:
MIRABETE, J. F. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1998.
SILVA, L. A. M.; LEITE, M. P. Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? Sociedade e Estado, v. 22, n. 3, p. 545-591, set./dez. 2007.