O pensamento e ação em Josué de Castro

O Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável elaborado por vinte entidades da sociedade civil, apresentado no ano de 2017, sobre o desempenho do Brasil nos cumprimentos dos objetivos para o desenvolvimento sustentável, já alertava o risco enorme do país voltar ao mapa da fome. Entre os principais motivos destacados no documento, estão: o aumento do desemprego, os cortes de benefícios como o Bolsa Família e o congelamento dos gastos públicos nos próximos 20 anos. Soma-se a isso, a pandemia global do novo Coronavírus que pode agravar ainda mais a situação de pobreza e desigualdade social no país e no mundo.

Nesse complicado cenário atual, conhecer mais sobre a trajetória do médico, sociólogo e geógrafo Josué de Castro, pioneiro no combate à fome no Brasil e no mundo, passa a ter ainda maior relevância. O esforço de “pensar o pensamento” (BRANDÃO, 2007) de Castro pode auxiliar na reflexão sobre os dilemas nacionais de ontem e de hoje.

“Uma das formas de que podemos lançar mão para construir um futuro é estudar o pensamento e ação de homens públicos, de cientistas e de políticos que dedicaram a vida enfrentando maiores resistências tentando alcançar tal fim” (ANDRADE, 1997, p.169).

osué Apolônio de Castro nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, no ano de 1908. Durante a grande seca de 1877, seu pai mudou-se com a família de Cabaceiras, alto sertão da Paraíba, para a capital de Pernambuco, onde tornou-se proprietário de terras e mercador de gado e leite. Sua mãe, Josepha Carneiro, era filha de senhor de engenho da Zona da Mata pernambucana e tornou-se professora.

De acordo com Andrade (1997), no início do século XX Recife era uma cidade com pouco mais de 200 mil habitantes e possuía um centro administrativo e comercial de grande relevância. Nesse ambiente, a descoberta do fenômeno da fome na infância por Castro tornou-se um fator crucial para sua formação intelectual. Conforme o próprio Castro evidenciou (CASTRO, 1967), não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade que tomou conhecimento desse fenômeno, mas através dos mangues do Capibaribe e nos bairros miseráveis do Recife:

Esta é que foi minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens, meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: Seres humanos que se faziam irmãos de leite dos caranguejos (CASTRO, 1967, p.12).

Nesse contexto, deparou-se com seres humanos que procuravam sobreviver no meio da lama dos manguezais, alimentando-se de caranguejos. Foi levado a ter grande ternura por esses habitantes dos mangues. Posteriormente, seu engajamento viria a ser dedicado principalmente à causa dos famintos e excluídos em diversos âmbitos.

A partir da obra Geografia da Fome, escrita em 1946, Josué de Castro denunciou que o fenômeno da fome nacional e internacional não era exclusiva- mente biológico, mas possuía um complexo caráter multidimensional: cultural, social, político e econômico. Segundo o autor, o tabu da fome foi propiciado pelos preconceitos morais de uma cultura ocidental que historicamente buscou impor de todas as maneiras o predomínio da razão e, simultaneamente, negou refletir sobre os fundamentos básicos da vida e da conduta humana. Para ele, fenômenos como a fome não foram devidamente discutidos e esclarecidos.

Em 1947, Castro se tornou membro da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), exercendo entre 1952 e 1956 a Presidência do Conselho Executivo desse órgão internacional. Foi deputado federal pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Sua atuação parlamentar foi tão marcante que se reelegeu com a maior votação do Nordeste. Em 1958, no segundo mandato, pro- pôs o Cupom Alimentação, baseado em uma política pública implementada nos Estados Unidos em 1939, conhecida como Food Stamp Plan. Contudo, o projeto foi deixado para segundo plano após a construção de Brasília e outras propostas tidas como prioritárias. Segundo Nascimento (2012), em 2003 essa experiência norte-americana foi retomada no governo de Luís Inácio Lula da Silva, quando implementou o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA). Através do MESA, se criou o cartão alimentação, depois reformulado e transformado no programa Bolsa Família, que agregou programas como o Bolsa Escola, do Ministério da Educação, e o Bolsa Alimentação, da Saúde.

Dando continuidade a estes estudos através da obra Geopolítica da Fome (1951), Castro criticou a teoria de controle de aumento populacional, do economista britânico Thomas Malthus e dos neo- malthusianos, assim como, denunciou e analisou o fenômeno da fome não só no âmbito nacional, mas também no internacional, inclusive nos países desenvolvidos. Os dois livros definiram de forma incontestável seu engajamento e posição política contra o flagelo da fome.

Ao lado do tema relativo às questões alimentares e à fome, Castro procurava destacar os aspectos fundamentais das possíveis estratégias de desenvolvi- mento para o nosso país. Ele, ao analisar a ocorrência do flagelo da fome no Brasil e no mundo, buscava demonstrar a conexão entre as carências nutricionais e alimentares e as dificuldades de construção de estratégias de desenvolvimento. O fio condutor do argumento do autor pernambucano passava pela defesa de um desenvolvimentismo social, antes que apenas focado no crescimento econômico. Portanto, Castro era favorável a um desenvolvimento mais humanista, contraposto à perspectiva de lucro desenfreado presente no modelo capitalista.

Durante sua trajetória, Castro exerceu o papel de cientista, intelectual e membro da burocracia estatal. Desse modo, seu pensar e agir o caracterizou como “homem da medicina e das ciências sociais, da tribuna parlamentar e das associações e dos centros de pesquisa que fundou e dirigiu, da literatura e do cinema” (MELO, 2007, p. 110). Castro não foi apenas um intelectual acadêmico, seu engajamento contra a fome contribuiu para a formação do pensamento desenvolvimentista do país e, particular- mente, abriu caminho para os estudos futuros sobre nutrição e alimentação no país. Sua militância nacional e internacional contra a fome, à frente de diversos órgãos de Estado, instituições diplomáticas e organizações mundiais, como a FAO da ONU, foi reconhecida em todo o mundo e, especialmente, na França, como um dos mais importantes pensadores do século XX. O reconhecimento internacional da luta de Castro para erradicar a fome no mundo lhe rendeu a dignificação de receber uma indicação para o prêmio Nobel de Medicina e duas indicações para o prêmio Nobel da Paz.

Visto pelos militares como ameaça, em face de suas posturas consideradas ‘subversivas’, como no caso da defesa da reforma agrária, Josué de Castro teve seus direitos políticos cassados pouco depois do golpe militar de 1964. O intelectual foi destituído do cargo de embaixador no Brasil junto aos organismos internacionais ligados à ONU. Este fato tornou Castro um “ilustre desconhecido” em seu próprio país, “mesmo depois do regime militar em que os livros de Castro foram considerados subversivos, predominou o silêncio sobre suas obras, sobretudo nos cursos de Ciências Sociais do Nordeste” (NOGUEIRA; SANTOS, 2012, p.96). Exilado, morou na França, onde continuou sua luta contra a fome, vindo a falecer em Paris após um período de depressão seguido de um enfarte, aos 65 anos de idade, em 1973.

A retomada do pensamento social e político de Josué de Castro se mostra relevante não somente devido sua importância histórica, mas também pelo motivo da persistência dos problemas relacionados a fome e dos desafios para o desenvolvimento do país que tornam ainda atuais suas ideias e seus projetos para a sociedade.

Referências:

ANDRADE, Manuel Correa de. Josué de Castro: O homem e cientista e seu tempo. Estudos Avançados, São Paulo, v.11, n.29, p.169-194, 1997.

BRANDÃO, GILDO. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro do pão e aço. Rio de Janeiro: Antares /Achiamé, 1980.

CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome. São Paulo: Brasiliense, 5ª Ed, 1959.

CASTRO, Josué de.Homens e Caranguejos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1967.

MEDEIRO, Inã Cândido de. A práxis de Josué de Castro: dilemas e estratégias para o desenvolvimento do Nordeste açucareiro. 2015. 80 f. Monografia (Especialização) – Curso de Ciências Sociais, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes., Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.

MELO, M. M.; NEVES, T. C. W. (Orgs.). Perfis Parlamentares 52: Josué de Castro. Brasília: Plenarium, 2007.

NASCIMENTO, Renato Carvalheira. Josué de Castro: cientista social in: MAGNO, Tânia Elias (org.) Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012 (memória do saber).

NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes; SANTOS, Mercês. Sociedade dos Mangues: Josué de Castro sempre in: MAGNO, Tânia Elias (org.) Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012 (memória do saber).

Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável: Síntese. Disponível em: <http://actionaid.org.br/wp-content/ files_mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf> acesso em10/03/2018.