Somos ogros ou gente?
Ogros (ou orcs, morlocks) são aqueles seres míticos imemoriais, que desde as mais antigas culturas têm encarnado os monstros sombrios que emergem das profundezas. Funduras da Terra? Do subconsciente? Da alma? Este tema há muito tem sido um prato cheio para os antropólogos e psicanalistas.
Já foi dito, um país é feito de seu povo. Como isto é verdade no Brasil! O gigante continental com riquíssimos recursos naturais, deitado eternamente em berço esplêndido. Deve estar a lhe faltar o povo que o faça despertar. Neste instante próximo do clímax da pandemia do COVID-19, somos motivo de escárnio e de aguda preocupação em todo o mundo: os esforços de enfrentamento e de contenção do vírus, que são de todos os países, veem-se ameaçados pela insensatez que emana do que se faz por aqui. Arriscamos continuar propagadores do vírus para o resto do mundo, a despeito das medidas sérias e bem sucedidas de erradicação que tenham tomado por lá. Hoje já somos os principais transmissores para o Paraguai, a Colômbia e outros vizinhos sul-americanos menos ensandecidos.
A insanidade dentro do nosso território tem ares de festim diabólico, que dá vida aos ogros. Os números de contaminados e mortos só fazem crescer, mas uma parte da população teima nas manifestações ruidosas, agressivas, contagiosas, de apoio a uma liderança que ameaça endurecer as regras rumo ao totalitarismo. Quem são essas gentes unha e carne com o líder mitificado sem rumo, que elegeram e defendem como uma matilha a remedar seu agressivo alfa?
Há quem compare as gentes que têm se aglomerado semanalmente vestidos de verde e amarelo para proferir insultos contra todos que discordam, agredir jornalistas, profissionais de saúde, funcionários públicos, professores, artistas, com os ogros monstruosos desenterrados das profundezas. Onde sempre estiveram, à espera do momento de descuido para revelar-se e vir subjugar as gentes simples a quem ainda resta um laivo de consciência, de humanidade, de dúvida. Para os ogros não resta dúvida. Estão certos da sua verdade, ainda que ela contradiga a ciência e os cientistas, os organismos mundiais de saúde, a experiência de outros países, os dados crescentes de contaminados e mortos entre nós, os alertas de desapaixonados e experimentados profissionais aqui dentro de nosso país.
Os ogros emergiram das trevas, libertaram-se das amarras do frágil contrato social que nos dá ares de civilizados. Estão à vontade para dar vazão à bestialidade antes reprimida, mas que existe latente em todo ser humano. Mas onde andam as pessoas que têm logrado resistir à irrupção do ogro, cuja civilidade ainda domina a tentação de entregar-se à bestialidade? Estão assustadas e confinadas? Estão confusas? Seria enfim preferível extravasar o ogro adormecido dentro de cada um de nós? Estará certo o líder da potência armada que não reluta em destruir ou sufocar economicamente os países que se negam a submeter-se ao seu projeto de hegemonia mundial? O lema de Tio Sam é “nós primeiro”, um bordão sinistro de destrutivo egocentrismo e furiosa competitividade que contraria a solidariedade imprescindível para a sobrevivência e o progresso da humanidade. Bordão copiado por nosso inqualificável presidente e seu governo.
O Brasil está voltando a ser o quintal explorado do tempo de colônia. As gentes não ogros que porventura ainda restem por aqui estão estarrecidas. Urge superar a indecisão, a imobilidade, a frouxidão. Talvez o país nunca antes tenha tido tanta precisão do brio de sua gente.