O coronavírus não veio nos dar uma lição

Recentemente, encontrei um conhecido que afirmou que o coronavírus (assunto que está rendendo bastantes textos no Recanto das Letras) veio para dar uma lição à humanidade: mostrar que não valemos nada, que o dinheiro para nada serve nessas ocasiões. Escutei calada, perguntando-me se ele não estava pensando que, em ocasiões como as que estamos vivendo, os que estão sofrendo mais são justamente os mais pobres. Está certo que dinheiro não nos protege, não põe uma redoma contra os problemas e perigos do mundo, porém, será que quem afirmar que isso é castigo divino não vê a situação dos pobres dependentes do auxílio emergencial que, por não estarem trabalhando, não estão podendo ganhar o mínimo necessário para prover seu próprio sustento?

Como posso afirmar que o coronavírus veio nos ensinar uma lição? Que lição precisam aprender os médicos e profissionais da saúde que trabalham em regime exaustivo, expondo-se ao risco de contrair a doença, colocando as próprias vidas em perigo? E os que prestam serviços funerários? Em Manaus, chegou a faltar caixões para enterrar tanta gente. Dizer que o vírus veio para nos castigar é uma crueldade e um contrassenso. Se for castigo, é um castigo muito ineficiente porque, como já vimos, outras epidemias atingiram antes a humanidade, que aparentemente não se tornou melhor por causa disso. Façamos outra pergunta: os pobres que, como sempre, são os mais atingidos, precisavam aprender alguma lição? Pessoas que dependiam unicamente de seus empregos – com parcos salários – ou de seus pequenos negócios, viram-se obrigadas a ficar sem trabalhar e dependentes de um auxílio que mal dá para as despesas básicas. E vale salientar que muitas ainda não conseguiram essa ajuda do governo.

Enquanto nosso presidente, com sua peculiar sensibilidade, referia-se ao vírus como uma gripezinha e outros diziam que tudo não passava de histeria coletiva, vimos gente morrer à míngua, médicos sem condições de atender a tanta gente que não tem condições econômicas de ir a um hospital particular. Cadê a lógica no argumento de quem diz que um vírus desses veio para ensinar à humanidade a ser mais humilde se são justamente os mais humildes que estão sofrendo? A empregada da minha vizinha me falou que o marido dela teve de sair do emprego e a família está dependendo exclusivamente dela. Eu falei com ela que não adianta compararmos nosso sofrimento ao dos outros, pois isso só nos deixará mais angustiados. Sempre há quem sofre mais ou menos do que a gente e pensar em quem sofre acabará por nos revelar o óbvio; que o mundo não é justo. Aliás, nunca o foi.

Vírus não é castigo porque esse mundo não foi feito para nós. A natureza é cruel e hostil. Espécies têm que comer umas às outras no jogo da sobrevivência. Nós, seres humanos, somos totalmente insignificantes diante do universo hostil. Desarmados, que condições temos contra uma onça, um leão ou um tigre? Nenhuma. Nós somos frágeis, não temos condições de sobreviver no fundo do oceano ou nas regiões mais inóspitas como desertos e a Antártida. Precisamos criar habitações e vestimentas para sobreviver e armas para nos defender de outras espécies que poderão ameaçar nossas vidas. A natureza não é um Éden, mas um lugar perigoso para nossa sobrevivência.

O mundo é perigoso mas nós soubemos adaptá-lo a nós. Entretanto, existem os vírus e bactérias, seres minúsculos que necessitam de hospedeiros para sobreviver e o acaso faz com que muitas pessoas tenham a má sorte de se encontrar com esses parasitas. Alguém não lembra do Ebola, febre amarela, dengue, malária e peste bubônica? Nós somos contaminados por essas doenças quando entramos em contato com os parasitas. O Ebola, que surgiu na África, - aliás, muitos acharam que o mundo estava para acabar quando houve a epidemia de Ebola – existe na natureza e os seres humanos se contaminaram por entrarem em contato com ele. Foi assim com a Aids, assim como foi com a peste bubônica, transmitida por pulga de ratos. Podemos nos contaminar em qualquer lugar, porque há vírus e bactérias em qualquer lugar. Você pode pegar dengue ou zika ao ser picado por um mosquito.

O coronavírus é apenas um entre todos esses agentes infecciosos que nos acometem quando entramos em contato com eles na natureza. Começou na China, como a Aids começou na África e se espalhou com grande rapidez. Não veio como instrumento de punição divina. Todos nós podemos ser atingidos e ser ou não contaminado é questão de ser cuidadoso ou até de sorte. Alguém já leu sobre uma moça chamada Aimee Copeland. Era uma jovem americana que levava uma vida normal como estudante universitária até que, um dia, indo passear de barco com amigos, sofreu um acidente e levou um corte na perna. Ela levou pontos e achou que estava tudo bem até que desenvolveu febre e, em pouco tempo, descobriram que ela fora contaminada por uma rara bactéria que come carne e teve de amputar mãos, pernas e perdeu uma parte do intestino. A moça sobreviveu e hoje tem um canal onde tenta inspirar pessoas no Youtube. O que podemos dizer? Foi uma lição para ela aprender a dar valor à vida, para que visse que a gente pode sofrer surpresas do destino? Com certeza, foi um desses muitos tristes acontecimentos que podem acontecer com qualquer um e não se trata de merecimento.

Até em casa podemos sofrer acidentes ou encontrar agentes infecciosos. Eu li a história de um rapaz que estava cuidando do jardim, acompanhado do seu pastor alemão e, num acidente, o rapaz se machucou e o cachorro, instintivamente, lambeu seu ferimento. Horas depois, ele teve febre alta e precisou ser hospitalizado com grave infecção. Sobreviveu, mas por pouco. Como vemos, não estamos livres de nenhuma desgraça.

Falar que o coronavírus veio para nos ensinar algo soa cruel e insensível principalmente se alguém disser que ele serve para ensinar às pessoas a dar valor ao que é mais importante, visto que familiares, obrigados a conviver 24 horas por dia, têm brigado muito mais e pessoas têm entrado em desespero por não saber quando essa pandemia irá acabar. Também não ensinará humildade, pois os mais pobres, como sempre, são os mais atingidos.