Consequências do confinamento

A gente já deve ter assistido a muitos filmes e seriados em que pessoas que não se dão bem, obrigadas a conviver, precisam fazer de tudo e acabam por se dar melhor no fim da trama. Isso é muito comum em filmes de aventuras nas quais os personagens se veem perdidos em ilhas desertas, obrigados a enfrentar inimigos ou quando sobrevivem a desastres. Costuma-se usar isso para ensinar valores como amizade e solidariedade.

Na vida real, porém, não é assim tão fácil. E temos visto esta situação com o isolamento social causado pela quarentena a que estamos sujeitos devido ao coronavírus: as relações entre familiares que já não se davam bem têm se visto em situações insuportáveis. Se antes as pessoas tinham seus trabalhos e compromissos sociais, o que permitia que não tivessem que passar tanto tempo em casa, agora estão sendo forçadas a conviver 24 horas por dia e isso está levando muitas ao seu limite.

Sabemos bem que nem sempre o ambiente familiar é um lugar de amor e acolhimento e que muitos familiares mal se falam entre si. Alguns se sentem mais sozinhos ao lado dos seus parentes do que se estivessem sozinhos no sentido literal. Quantas vezes não estamos falando com uma pessoa à mesa e ela dá mais atenção ao celular do que ao que estamos dizendo? Sentimo-nos postos de escanteio.

Se num ambiente familiar não há amor e respeito, o fato das pessoas serem obrigadas a conviver por tanto tempo não fará com que se deem bem de repente. Pode acontecer do confinamento fazer com que pessoas passem a se dar melhor e aproveitem os momentos juntos, isso não é uma regra. As relações humanas são extremamente complicadas e isso se observa principalmente no meio familiar. Um escritor já disse que família é um monte de pessoas que se odeiam e são obrigadas a viver juntas. Por mais que gostemos de idealizar as relações familiares, temos de admitir que muitos lares estão longe de ser saudáveis e os noticiários sobre pais que matam filhos ou filhos que matam pais nos têm ensinado que laços de sangue não significam, necessariamente, que as pessoas irão se amar.

Aliás, tem havido um aumento de casos de violência doméstica e feminicídio. Maridos abusivos, obrigados a ficar em casa por tempo indeterminado, estão descontando suas frustrações nas esposas, espancando-as. Até Jair Bolsonaro tem usado isso como argumento para defender o fim do isolamento social. E um amigo meu, italiano, andou me dizendo que aumentaram os pedidos de divórcio, o que mostra que o confinamento está contribuindo para deteriorar muitas relações familiares. Outro conhecido meu, que trabalha em um hotel, tem falado que os casos de depressão e suicídio estão aumentando. E, de fato, ser obrigado a ficar em casa, ainda mais quando você não se dá bem com aqueles com quem divide o mesmo teto pode ser uma verdadeira tortura.

É necessário falar das consequências negativas do COVID-19 na vida pessoal das pessoas, citando o aumento da violência doméstica, principalmente para refutar recantistas aqui no Recanto das Letras que têm dito que o coronavírus foi enviado por Deus para tornar a humanidade melhor, para ensiná-las a ser humildes, mostrar as consequências de se afastar de Deus e até para diminuir a criminalidade. Um recantista disse que a quarentena ajudou a diminuir os casos de violência urbana. Mas então o aumento de casos de violência doméstica faz parte de algum plano divino para tornar a humanidade melhor? Isso não soa como um efeito colateral bastante desagradável? Pelo visto, os maridos que espancam as esposas não se tornaram melhores.

Outro absurdo foi ouvir uma moça dizer que isso é um castigo por causa do que foi feito no Carnaval: pegaram uma mulher nua para fazer o papel de Jesus Cristo. Porém, lembremos que essa pandemia começou na China, país sem Carnaval e cheio de tabus em relação a sexo. É uma pena que, como consequência do isolamento, tenhamos de ouvir pessoas falando coisas como se fossem donas da verdade. Eu não sei a verdade e, portanto, não posso sair falando essas coisas de forma tão insensata. Ninguém sabe a verdade. Então, todos deveriam se abster de dar opiniões baseadas em simples senso comum.

Uma história que mostra bem como o isolamento pode piorar relações já desgastadas é O iluminado, em que Jack Torrance, homem em crise pessoal e familiar, vai com sua mulher e seu filho para passar o inverno cuidando de um hotel. Ele acha que isso servirá para restabelecer suas relações familiares e acalmar sua mente para escrever sua peça e acalmar sua cabeça. Se você, além de assistir ao ótimo filme de Stanley Kubrick, ler o livro de Stephen King, verá como os personagens são calejados pelo alcoolismo de Jack e pelos problemas familiares que tanto ele quanto sua esposa Wendy carregam de seus passados. Aos poucos, os conflitos vão se acirrando, culpas começam a vir à tona e Jack, possuído pelos fantasmas do lugar, vai enlouquecendo. Danny, seu filho, que tem dons paranormais, percebe que seu pai está sendo dominado pelo hotel e prevê uma grande tragédia.

Portanto, o que podemos ver? Que a convivência humana é complicada mesmo e nem sempre situações assim tornam as pessoas mais tolerantes para lidar com os seus próximos.